Caçador

O caçador fechou seu notebook com um sorriso no rosto. As ofensas a ele vinham do mundo todo, mas quem se importava? Não sabiam eles que a caça era um esporte? Na verdade o esporte mais antigo da humanidade, e se não fosse pela caça no início dos tempos os seres humanos não teriam passado das primeiras eras glaciais, quer os protetores dos animais e os ambientalistas gostassem ou não o ser humano era um predador, um predador alfa, imbatível.

Tolos, todos eles eram tolos, mentes vazias sem espírito esportivo.

- Eles não entendem que os fracos devem ser caçados pelos fortes, este é nosso papel natural – falou ele para si mesmo enquanto admirava seus troféus na parede de sua casa. Ali dispostos estavam as cabeças empalhadas de alces, zebras, bisões, búfalos e toda sorte de ruminantes.

No chão abaixo, estendidas como tapetes, as peles de um grande urso pardo ao lado das de um tigre de bengala e de um jaguar. Em uma antessala, empalhados em corpo inteiro, repousavam a carcaça de dois lobos cinzentos lado a lado e junto a eles as valiosas presas de marfim de um elefante africano e o chifre de um raro rinoceronte negro.

- Infelizmente aqueles hipócritas não permitiram que eu viesse com nada mais além disso – falou ele retirando do bolso uma pequena trança de pelos grossos, retirados da juba de um leão africano, seu último “troféu”.

- Mas haverá um tempo em que homens como eu estarão livres para agir!

O homem deixou a pequena trança junto a um belo arco na parede, instrumento com o qual fizera sua última caçada. Depois dirigiu-se a seu equipamento favorito, um rifle .270, arma com a qual abateu a maioria de suas presas de grande porte.

- Minha belezinha – disse ele acariciando a arma como uma mãe acaricia a cria – chegará um dia em que nada nos impedirá, andaremos por aí e mostraremos ao mundo a força de um predador.

Assim, sorrindo e orgulhoso de seus feitos e conquistas, o caçador se retirou para seu leito, apesar de caçar como seus ancestrais não dependia, como eles, da caça para sobreviver, seu estilo de vida era ganho consertando a arcada dentária cariada de seus semelhantes, outro trabalho onde o sangue, maior objetivo de sua sede, podia escorrer a vontade e alguma dor, mesmo que pouca por conta dos anestésicos, poderia ser provocada. Afinal, na cadeira de dentista ele também imperava e sua presa não podia fazer nada a não ser espernear enquanto passava por um implante, canal ou obturação.

Então o homem se deitou em sua cama, fechou os olhos e dormiu...

O ar era frio, muito mais frio que o normal. No céu, estrelas alienígenas e uma Lua prateada brilhavam enchendo a Via-Láctea de uma luminosidade ofuscante, luminosidade que se refletia numa distante muralha ao norte, uma muralha alva e inabalável, formada pelo avanço de grandes geleiras.

O caçador logo sentiu não estar mais em sua casa, de início achou estar sonhando, mas a dor causada pelo frio era real demais.

- Mas o que diabos está acontecen...

Não terminou sua frase, ao longe seus ouvidos treinados ouviram o quebrar de galhos e o amassar de folhas, algo se aproximava em passos vagarosos, metódicos, de uma forma tão silenciosa que só poderia ter um objetivo: surpreender. Pois era assim que ele próprio agia em suas caçadas.

- Merda! – falou ele baixo e se pôs a andar na direção contrária ao ruído.

Mas a marcha era difícil, ele se descobriu nu em pelo, andando por um terreno seco, com arbustos espinhentos e gramíneas até a altura da cintura. De tempos em tempos parava, se abaixava e se colocava a escutar: algo ainda o seguia na noite.

- Está se aproximando, tenta me cercar... mas não vai conseguir.

O caçador não se entregaria sem luta, manteve seu marcha, abaixado e tateando o chão, até que suas mãos encontraram um pedaço de galho mais grosso, mais longo e mais retilíneo. Colocando-o sob o pé ele o quebrou, produzindo uma ponta mais ou menos protrusa, agora, armado com aquela lança rudimentar ele poderia ao menos lutar e assim ter alguma chance.

- Devo estar no norte, só pode, aquilo lá a frente parece ser gelo. Será que estou no Ártico, na Sibéria ou no Alasca? E como vim parar aqui, será que fui drogado e sequestrado por esses ecoxiitas idiotas?

Sua cabeça estava confusa, não conseguia pensar em outra coisa. Sim, os ambientalistas estavam querendo dar o troco, o colocaram ali como presa, para se sentir como elas.

- Mas eles vão ver só! Ah se vão! Acham que um lince, ou um bando de lobos, me metem medo?

Linces, sim, o pequeno felino do norte, talvez fosse um que estivesse em seu encalço, se fosse desistiria com sua simples visão, ele era grande demais para um lince. Mas talvez fossem lobos, nesse caso seria uma luta mais ferrenha, mas ainda assim teria alguma vantagem se conseguisse ferir alguns da matilha, era só não ser pego de surpresa.

Crraaackk...

Novo barulho no bosque. E não vinha de apenas uma direção, vinha de várias, formando um círculo.

O caçador conhecia bem aquele método de caça, não era um lince que fazia aquilo, só poderiam ser lobos, pois só os lobos caçam em bando tentando cercar sua presa, só os lobos e os leõ... não, tentou não pensar naquilo, de todo modo os leões viviam na África subsaariana, a milhas de distância do norte gelado.

- São definitivamente lobos! – concluiu ele.

Certo de que logo seus inimigos se revelariam o caçador parou, ergueu a cabeça, esticou o corpo, armou a lança, deu um grito de desafio:

- Venham logo seus malditos!

E esperou.

A sua frente o capim alto se remexeu em um, dois, três, vários pontos.

- Venham logo – grunhia o caçador rangendo os dentes.

Então, um a um eles surgiram, seus corpos pardos, seus pelos eriçados, suas presas enormes e brilhantes a luz das estrelas.

E o caçador entendeu que não fora sequestrado, que não estava no norte, e muito menos na África, pois seus perseguidores não eram leões, muito menos lobos.

Sentindo a derrota e a morte se aproximar o caçador largou a lança primitiva se ajoelhou e abandonou seu posto, desta vez ele era a caça.

E sem esperar mais nenhum momento, os grandes tigres dentes-de-sabre, extintos desde o alvorecer da humanidade, atacaram, cortaram, mastigaram e mataram. Era o fim de um caçador.

Milênios mais tarde, numa casa em Minnesota, nos Estados Unidos, as autoridades tentavam explicar o desaparecimento repentino de um dentista que se tornou conhecido após a caçar e matar um famoso leão de uma reserva ambiental no Zimbábue.

Alicia Alves
Enviado por Alicia Alves em 02/08/2015
Código do texto: T5332686
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