Máscaras derretidas - Dtrl 24

"Quero saber se, aceitando viver sem apelação, pode-se também consentir em trabalhar e criar sem apelação, e qual é a estrada que leva a essas liberdades. Quero livrar meu universo de seus fantasmas e povoá-lo apenas das verdades de carne cuja presença não posso negar." Albert Camus - O mito de sísifo.

Alucinação?

Tenho medo dos mistérios que minha cama e travesseiro revelam. Somente o silêncio total é capaz de me ligar a esses sinais. Por isso sou sempre muito afobado, falante e extrovertido. Sinto que preciso ser assim para escapar da imensa dor flamejante em meu coração. Há pavores piores de quaisquer lástimas nessa vida. Pois eles são lentos, matam a cada segundo. Entretanto, não é possível evitá-los, uma vez que você os buscou. Em uma insônia desprezível você percebe que nada têm sentido... que a existência é escura e o choro é demasiado sofrido, porque deles lágrimas não caem. Meu peito é vazio, assim como muitas das minhas escolhas. Eu sou só.

Dizem que a solidão é o mal do século. Eu defino-a como o mal da humanidade. Sei bem... estou falando de outros a partir de mim. No entanto, sinto, e após o que irei revelar suponho que me entenda e, concorde com a minha afirmação. Desculpe te assustar dessa maneira com um assunto assim tão sombrio. Sentia a necessidade de expressá-lo. E penso que não é um tema novo e também não difícil para a sua compreensão. Deixe-me apresentar... Eu sou Adalberto Nunes, capitão da marinha de guerra. Voz presente no país. Chefe de uma família tradicional, filho de pais corretos e, cidadão de bem. Porém, só.

Traio constantemente minha esposa com algumas prostitutas do bairro. O bar é a minha morada de finais de semana. Posso parecer um sujeito sem escrúpulos... é que na verdade, desde aquele noite, em que olhei o céu escuro, sem estrelas, pela primeira vez... as imagens nunca mais fugiram de minha cabeça... Não são alucinações, elas são revelações e, sei a qualquer momento essa peste poderá se proliferar por toda a humanidade. Embora a bebida e as mulheres sejam distrações eficientes, ao final da noite as imagens voltam. Mais sinuosas do que nunca.

Nem Cristo, nem qualquer outro Deus me fez esquecer. Porém, eu sei... sou o culpado. Eu escolhi este caminho. Você pode definir como aberração, mas isso seria tolo de sua parte e prova de seu desconhecimento. Eu ouvi e vi, hoje revelo os acontecimentos da fatídica noite em que a existência parecia mero acaso de uma nota musical.

***

O mistério

Mesmo depois de tudo, quando achei que não o veria mais. Ele lá estava com aquele olhar que não era o seu... me observando, me fitando. Sim, talvez eu tenha medo de sua fúria. Mas, uma artista não teme um ausente. Nunca temerá. Estamos em guerra. Em que lado você está?

***

A revelação

O ar era pesado naquela noite. Pela falta de chuvas, diminuiu a humidade e, as cachoeiras do distrito estavam a ponto de secar. Aquele silêncio comunal transmitia uma sensação maior do que insegurança... um indefinido medo. Era uma estrada de mão dupla e asfalto fino, as fracas luzes penduradas aos postes de energia iluminavam apenas o caminho principal... As margens, onde havia o matagal e algumas árvores, era de uma escuridão quase total, além de ser deserto. Mistérios rondavam ali, mas talvez se ele passasse com indiferença nada o atacaria.

Johnny ia guiando e pedalando, com a característica calma, a sua bicicleta nova. Um tanto que alheio aos perigos de uma estrada vazia e silenciosa. Ventos frios percorriam por todo o seu corpo. Tolamente se lembrou do casaco que deixou em sua cama. Aquela noite fazia muito frio e, estar de bicicleta, apenas de camiseta e bermuda, apurava ainda mais a sua sensibilidade. Novamente o rapaz cometia novas asneiras. Entretanto, nada valia mesmo, morrer de hipotermia seria um favor que os seres do universo fariam a ele... o ódio e a mesmice já afetaram a sua existência de forma irreversível.

Cansou do clima irrequieto em sua vidinha medíocre. De sua família, da já aparente eterna companheira solidão. Deveria ter partido como um cigano pelo mundo. Vivendo por si e escolhendo o que a sua vontade desejar, sem se preocupar com opiniões contrárias. No entanto, era preguiçoso e acovardado. Viver faz parte de uma decisão, era nítida a escolha a qual se sujeitava... aos seus pais autoritários, as orações totalmente mecanizadas e a todos os desconfortos, não havia amor naquele lar, apenas uma pretensa vontade de parecerem reais em um mundo construído em mentiras. Tudo parecia desprovido de um sentido. As vozes do mundo com todas as suas verdades petulantes o perturbavam. Todos queriam dominar, falar, entretanto, eram poucos os capazes de escutar sem olhar aos seus relógios. A solidão era um lembrete de sua morte... mas, ele vivia e temia por ter de continuar a manter essa condição.

Um dos momentos que o fazia se sentir em plenitude era esse... com o vento lhe abrasando. Atiçando seus pelos, causando a leve sensação de tremor... o cabelo esvoaçando com o vento, o sussurro do ar em seus ouvidos, a impulsão que seus pés faziam e o leve deslocar... Ele era feliz, pelo menos agora poderia assim se definir. Feliz por meios segundos em compensação de vinte e um anos jogados em um poço de lama.

Algo se locomovia no matagal a beira da pista, o que tirou de súbito a sua concentração... Não era capaz de decifrar o que poderia ser, porém, imaginou ter visto uma figura branca, coberta de sangue, o encarando. “O frio está me causando alucinações!” Calculou, mentindo para si mesmo. Seria preferível retomar seus pensamentos. O celular ao som de Big Guns. A música e um maior esforço mental poderiam o fazer voltar.

Todavia, nada mais do que fazia poderia tirar aquela figura de sua mente. Sentia medo e também uma volúpia exploradora... A bicicleta estava pesada, a estrada parecia não ter fim. Ele, anteriormente alheio ao silêncio mortífero pareceu se incomodar de maneira real. Algo estranho estava para acontecer, sentia em seu intimo, isso seria bom? Somente o acaso o responderia.

Parou sua bicicleta largando-a no chão. Entrou no matagal, suspeitando que algo estivesse errado. Tinha medo, um medo que o machucava, mas mesmo assim continuou, pois uma dúvida ainda pairava em sua mente... Precisava saná-la, conviver com uma dúvida é como ter uma faca virada para cima por baixo de seu colchão. Precisou da tela do seu celular para clarear o ambiente. Por onde ele passava os matos altos roçavam em sua pele, carrapichos grudavam em sua calça. Ouvia e presumia que alguma coisa se movimentava muito ligeiramente naquele mesmo local. Seu coração fugiu para boca quando sentiu o vento de um corpo correndo e, a sombra se deslocando de maneira que só poderia ver vultos. Uma trilha de sangue se estendia pelo solo marrom e algumas vestimentas estavam jogadas ao redor. Jhony sabia que havia algo muito errado, criminoso, por isso a sensação era de desespero. Pensou e já programou a sua fuga. Na mesma hora, levantou os olhos para vasculhar pela última vez o ambiente... foi quando se viu a frente de um homem albino, de olhos vermelhos, pelado e nu... Este que se escondia no mato, riu de forma grotesca, com seus dentes amarelos e um sangue grosso escorrendo por seus lábios, banhando todo o seu corpo. O horror fazia Jhony perder todo o seu calor interno, a respiração saia com uma dificuldade tremenda... só pensava em gritar e nada mais. Entretanto, ele desconhecia a máxima aprendida pelos sábios... “A noite é incapaz de escutar gritos, salve-a ti mesmo, porque ninguém está por ti.” Correu sem olhar para trás a fim de voltar à estrada.

Entretanto, ele havia chamado e algo o esperava...

Uma luz intensa vinda da estrada ofuscou a sua visão. A luz era profundamente forte e seus raios queimavam os braços do jovem, que como último recurso tentava proteger seus olhos. Dificultoso demais seria continuar daquela mesma maneira... foi quando escutou, de início muito baixo, porém a cada segundo aumentava e se tornava ainda mais atraente. Agora ele já tinha a total certeza.

Na manhã seguinte, sua mãe, preocupada pela demora do caçula, fez o mesmo trajeto que seu filho fazia... não o encontrou, antes fosse não ter achado nada, pois o que viu foi apenas as roupas de Jhony, sua bicicleta e seu celular descarregado, atirados ao chão.

***

Entre cegos e desenganados

Um sol, belo e estonteante, parecido com uma casca de laranja reinava no alto... pena que ninguém o poderia ver sem antes danificar seu globo ocular. O clima quente era bem atípico comparado ao restante do mês. O céu estava limpo, quase sem nenhuma nuvem. Naquele município havia alguns vários médios estabelecimentos aglutinados e avenidas tumultuadas. Dois homens se encontravam sentados em duas cadeiras e apoiados a uma mesa de plástico do lado de fora de um bar comum. Afora eles havia um jovem branco com um casaco longo e um chapéu, o que era um absurdo visto pelo calor que a cidade de Piabetá emitia. Música agradável tocava... um samba antigo da casa dos bambas. O primeiro homem, Zelir, era porteiro da escola estadual do centro. Os cabelos grisalhos, a barriga de chope e o bigode engraçado chamavam a atenção de imediato. O outro homem, Valdeir, aparentava ser mais novo, porém igualmente acabado pelos maus cuidados estéticos. Mais pessoas ocuparam as mesas dispostas na calçada. O fluxo aumentara. Agora as rosas exalavam perfume no som ambiente.

“Alguma notícia daquele garoto... como chamava mesmo?” Zelir puxa assunto após o silêncio costumeiro, enquanto seu companheiro enchia o copo com a bebida de sempre. Valdeir derramou um gole e respondeu:

“É João parece... mas João de inglês, alguma coisa tipo John... sei lá. Tenho notícia nenhuma não, foi algo bem maluco isso tudo.” Valdeir bebe a primeira golada de sua bebida, Zelir, ainda disposto a conversar, continua:

“Talvez o homem tenha fugido com a garota dele né?” Valdeir meneia a cabeça de maneira afirmativa e diz:

“Bom pra ele, é jovem! Tem mais é que curtir a vida dele.” O copo de Valdeir, já estava vazio e ele o enchia novamente, mas o de Zelir parecia ainda intacto, ele não parava de falar e Valdeir já estava farto. Aquele velho que o veio seguindo, não queria a sua companhia, não queria ninguém. O único desejo para aquela tarde monótona era a solidão e a bebida. Zelir, ainda emenda uma frase para concluir o diálogo curto:

“Tá certo sim... aquele rapaz era bem estranho, desconfiava que era viado.” Zelir sorria, cheio de si em suas ideias. Valdeir ainda estava alheio, pensando nos filhos que não o respeitavam. Na mulher que o vivia criticando e em seu pai que nunca reconheceu o seu valor, na verdade nem ele havia reconhecido. Zelir coçava seu bigode com cara de besta... ele ficou com seu sorriso banguela por certo tempo. Pois, Valdeir estava visivelmente abatido. Seu amigo não comentou e provavelmente nem ao menos notou a diferença... só tinha olhos para birita e o noticiário esportivo na TV.

O cálice de Chico Buarque derramou após a interrupção abruta. Uma música sem voz tomou o ambiente, parecia algo daquelas orquestras da elite cultural que ninguém ali conhecia. O som era belo, porém melancólico ao extremo. A Tevê desligou tirando Zelir do transe. Suas pernas travaram, seu coração pulsava lento e a mão estava mais pegajosa do que o costume. O rapaz excêntrico e muito branquelo fitava-o diretamente... seus olhos eram vermelhos, cor de sangue. Entretanto, aquele seu sorriso de canto de rosto era o que o mais perturbava. Ninguém parecia notar, mas algo bizarro ocorria: uma flauta flutuava no ar e dela as notas musicais saíam... todos pareciam hipnotizados pelo som... apenas Zelir não.

Os dentes do rapaz se esticaram a Zelir e seu escárnio fez gelar a espinha do homem. O velho porteiro tentou cutucar seu companheiro de mesa, para alertá-lo do que estava acontecendo. Porém, mais um estranho sinal aconteceu... Valdeir com as mãos pálidas e tremidas levou mais um gole em sua boca... enquanto bebia sangue escorria pelas bordas do copo de vidro, o porteiro olhou ao lado: todos pareciam mortos com a cabeça caída nas mesas...

“Va... va... deir?” Balbuciou Zelir, já visivelmente apavorado. O que aconteceria então de nada acalmaria aquele velho. Valdeir lentamente encarou o antigo amigo: tinha a mesma fúria vermelha no olhar do que o jovem esquisito. Sua face estava mais pálida e era estranho, pois parecia tomar contornos mais finos. Passou a língua negra por entre os lábios, sangue escorria do canto de sua boca, nela o mesmo ar sarcástico era mantido. Um ar diferente que o velho nunca notou em seu amigo. Valdeir era outro homem, se é que assim poderia se definir. Parecia uma criatura alienígena, um corpo morto e frio, porém ainda andando. Não era mais o seu amigo, embora, ele pouco o notara... algo havia tomado o seu corpo.

O jovem que ao longe observava a cena aproximou a passos lentos da mesa. Por mais que quisesse, Zelir não conseguia se levantar. O rapaz, pois a mão no outro ser sentado a sua frente: as duas criaturas o encaravam com um sorriso de canto debochado, a flauta ainda flutuava e a música persistia, no entanto, Zelir parecia imune a ela. Os seres gargalharam daquela mesma maneira anterior, o porteiro estava petrificado. Sangue congelado corria em suas veias, os olhares furiosos dos monstros pareciam o engolir. Era demais para ele... Queria gritar, mas não tinha voz em sua garganta. Queria correr, mas seus pés estavam grudados ao chão. Queria deixar de olhá-los, mas não conseguia. O som parecia querer fazer efeito nele, porém lutou, com os dedos enterrados nos ouvidos e os olhos cerrados começou a rezar. Um deles o agarrou pelo ombro, a língua da criatura buscava abrir suas pálpebras. Outro o mordeu na mão, o que o que o fez descuidar de um dos orifícios e uma voz envelhecida dizia coisas estranhas em seu ouvido, alternando entre os escárnios... Valdeir chorando, caiu ao chão tentou se arrastar como pode. Antes um deles o alcançou, abriu os seus olhos pela última vez, seu coração parecia estar parando, não conseguia respirar. Saliva, muco e lágrimas próximos a sua face. Sentia seu corpo entregue a morte, pensou em seus filhos e sua família... o que seria deles? O que o noticiário iria contar? Ainda pensou em seu amigo, pela primeira vez, temia por sua alma. A sua já abandonara o corpo morto, nunca mais veria um jogo do Flamengo.

***

Atuar para viver

“Eu estou vivo e quero continuar vivendo!” Dizia Laerte com um meio sorriso no rosto, ele o mais novo entre os três sentados no sofá, cabelo curto, pele morena clara com um rosto repleto de buracos de espinhas e pequenas sarnas insistentes.

“Concordo, Laerte a gente quer ser feliz. Mas é impossível esquecer.” Ruth com um semblante fundo fitava Laerte com um olhar de censura. O garoto parecia indiferente e pronto para fazer uma abjeção, para ele ter ou não ter Jhony na família era a mesma coisa que um quintal no fundo da casa... não faria diferença alguma. O chefe da família, temendo inicio de mais um conflito, interviu:

“Pobre Jhony, eu prefiro que ele tenha nos abandonado. Pense no que pode ter acontecido com ele? Foi tudo muito esquisito...” Adolfo terminava pensativo em mais uma conversa sobre o desaparecimento de seu filho. Exceto por Laerte, todos se sentiam órfãos pelo desaparecido.

Inês permanecia olhando quieta, longe do sofá, sabia... tinha quase certeza que Jhony tinha partido, e sabia os motivos disso. Aquela família opressora com suas orações e regras... a mesma hipocrisia moralista, Jhony não aguentara e já tinha avisado que não suportaria mais... Entretanto, ela não entendia porquê tinha acontecido daquele modo... Por que ele não conversou antes com ela, sua única confidente?

A família continuava a conversar sobre Jhony... Risos sem graça tomavam às vezes o ambiente. Inês se mantinha austera e ereta, na mesma posição, observando seus pais e seu irmão. Talvez fosse um erro julgá-los daquele modo, de certa forma tudo nasce de um ponto: a incompreensão. Todos possuem suas próprias convicções de um mundo. E na maioria das vezes essa convicção é encarada como única verdade. Muitos homens desejam impor uma verdade, muitos homens são escravos das verdades... No fim das contas o mundo do etnocentrismo é uma das primeiras causas de um grande mal que se alastra pela humanidade.

Um barulho de maçaneta chamou à atenção. A porta principal da casa se abriu de maneira abrupta. Entre o brilho forte da rua e as rajadas de um vento frio um rapaz alto, magricelo, de pele esbranquiçada, nu, surgira assustando a todos. Aquele gesto de levantar a cabeça duas vezes ao alto e o descontrolado piscar denunciava quem poderia ser...

- Jhony?! - berrava desesperada Ruth, a mãe do até então desaparecido. O rapaz nada respondia, mas o sorriso no canto da boca era quase uma afirmação. Todos na sala estavam afobados com a aparição inesperada e ainda naquelas estranhas condições. Parecia abissal.

Jhony trancou a porta da casa com uma calma bem característica. Todos ainda estavam atônitos diante a sua presença. Os olhares de pavor e dúvida pareciam não incomodá-lo. Desde que tinha chegado o rapaz não havia pronunciado uma só palavra. Parecia alheio, sombrio, com um ar de superioridade.

“Jhony, por que você não fala nada filho? O que fizeram com você?” Ruth tentava ainda, inutilmente, imprimir um diálogo. O garoto respondeu com uma risada macabra, mantendo o mesmo ar de indiferença, de sua boca escorria um líquido vermelho, semelhante a sangue. Jhony se aproximou de sua mãe, mantendo contado visual, durante segundos a cena se estendeu até o inesperado o ocorrer... Ruth caiu inerte no chão frio, seu olhar era fundo, desfocado e sombrio, mas parecia ainda viva.

O que ocorreria a seguir era doentio... Adolfo e Inês caíram de imediato. Laerte ainda correu para a cozinha, mas a criatura semiviva o seguia sem apressar o passo... As mãos de Laerte tremiam, encontrou uma faca próxima do seu alcance. Pegou empunhando-a em sua mão. Ainda estupefato com tudo esbravejou inseguro:

“Monstro esquisito! Qualquer coisa que tenha feito a meu irmão é melhor se arrepender”, e ainda continuou, “Por que isso? O que você quer?” O monstro não respondia, apenas mantinha o sorriso sarcástico de canto de rosto “Nem mais um passo ou eu te mato.” O monstro com os braços cruzados debochava das ameaças do garoto. Ele, utilizando a faca como único recurso, alcançou de forma certeira na criatura, não foi suficiente para mata-lo. Pois, ele havia arrancado à faca do peito lambendo o sangue que nela foi banhado. Laerte tentou ainda fugir, mas o monstro chegava mais perto, tentou chamar pelo irmão, porém ele não existia ali dentro.

"Jhony por... por favor!" Jhony era imune aos pedidos. E mesmo que estivesse escutando era para ele o mesmo que nada as súplicas daquele moleque egoísta. Aproximou-se de seu irmão. Uma música em uma flauta era tocada, o objeto sozinho fazia as notas... O som era intenso e depreciativo. Laerte esqueceu de todo o cenário e flutuava em um mundo desconhecido, nele observava cidades destruídas, choros, gritos e guerras. Entretanto, isso fazia o sentir bem. O homem branco se aproximou mais agora, a flauta ainda tocava sozinha... Laerte voltou a si... o pavor voltara ao ver a figura se aproximar. Não podia evitar que aquela boca imunda chegasse ao seu ouvido. Começou a chorar ao ouvir as primeiras palavras da voz rouca, mesmo sem entender o que estava dizendo. Entretanto, no mesmo momento Inês golpeou o homem na cabeça... Laerte aproveitou o momento para se arrastar ao chão e fugir pela janela deixando sua irmã sozinha com o bicho que antes foi o seu irmão.

Inês estava sem chão... a criatura branca, similar a Jhony, sorria. Seu olhar era de um vermelho intenso, com uma ira sem precedentes. Ela, a pessoa que mais compreendia seu irmão não o podia entender naquele momento. Sempre buscou justificar maldades cometidas, sempre buscou perdoar, encontrar causas e procurar por algo bom nas pessoas. A compaixão era o mal daquela jovem. O monstro encontrou os olhos de Inês. A frigideira escorregou de suas mãos. Ela sentia sua alma ser levada, a música revelava cenas horripilantes em sua mente. Olhou suas mãos esbranquiçarem... gritou. A risada de escárnio do semivivo era aterrorizante.

Inês sentia como se estivesse morrendo, porém não da forma comum... morrendo viva, sua alma agonizava em sua frente. Alvejada pelas contínuas imagens, pelos sentimentos sombrios... ela não sentia mais nada, nem alegria, nem tristeza, nem raiva, estava no controle de seu corpo, mas era mesmo que nada, era indiferente, inata e vazia. Entretanto, algo resistia dentro dela... Era uma criança, gritando "não" correndo ao seu encontro com uma máscara na mão. O grito não era apenas em sua mente, era real. Incrivelmente resistia ao contágio.

“Naaaaão!!!” Berrava Inês, a criatura pela primeira vez parecia assustada. Inês revertera o branco e o vazio... uma áurea iluminada a circundava. Jhony correu até a porta, destruiu-a para fugir de sua fracassada empreitada. Inês caiu no chão, chorando impotente, como se estivesse recuperando de uma luta ou ruminando uma humilhação sofrida. Foi se recuperando, quando teve a certeza que a casa estava livre, acordou sua família. Todos estavam confusos e pouco se lembravam do ocorrido. No entanto, não poderia explicar nada naquele momento... ela tinha outros planos.

***

A cidade conhece a morte na vida

Por todos os cantos do município de Magé boatos eram disseminados sobre a ação de criaturas não humanas. Assassinando, sequestrando e confundindo mentes de transeuntes. Apenas boatos. O que ocorria de fato era proliferação do vírus da verdade, da condição natural humana. Uns não suportavam recebê-lo, outros não conseguiam enxergá-lo e alguns se sentiam sem vida ao seu alcance. No entanto, havia outra reação em especial, muito rara. Essa era tão rara que apenas alguns poucos conheciam, nem mesmo os disseminadores da verdade a alçaram, eram incapazes de entendê-la.

***

A vitória da ausência diante a atuação, mas esse será o fim?

Inês, em vão, tentara alcançar a criatura sem-vida pela floresta adentro. Jhony, ou seja lá quem fosse, sumira durante aquela noite. Ela precisava que seria para sempre. No entanto, ao lumiar de alguns dias ela passou a vê-lo novamente, todas as noites, em frente à escuridão da janela fitando o seu quarto. Seja lá o que queria não seria algo positivo.

Todas as vezes que aparecia na janela o rapaz fugia para dentro da mata. Curiosa, Inês resolveu segui-lo em mais uma dessas incomuns aparições. Jhony corria devagar, parecia interessado em atraí-la. Inês, caíra na ilusão que lhe foi posta. O caminho iria ficando difícil, na medida em que a figura irrompia cada vez mais por entre as trevas.

Jhony parou de súbito no meio do caminho. Inês se aproximou, tentando esconder o medo disse: “Por que tudo isso? Aonde você quer chegar, Jhony? Quais os propósitos disso tudo?”.

A figura a encarava com nojo e pela primeira vez, desde todo o ocorrido, resolveu se comunicar, em uma forma enigmática, parecido com um micro conto, com a voz fraca e rouca, quase inaudível:

“Escuridão. O céu já não responde o que digo e tudo que posso ver é o negrume. Eu tenho a pele branca como uma lâmpada. Não uso roupas. Não possuo nada. Tudo que é humano me é estranho e desprezível*. Eu não posso dormir, pois ouço os choros, os gritos que paralisam o meu peito. Todas as madrugadas, eu subo as montanhas para despejar as lamúrias noturnas. Os homens me repudiam, mas eles são como eu sou. Apenas não notaram... suas retinas cansadas são sempre atentas a tudo, porém o essencial está tão distante de atenção.

A tempestade afaga as minhas têmporas. Meus olhos vermelhos estão atentos. Irei buscar os homens que viram a face ao meu olhar. Irei revelá-los a verdadeira definição da existência. Para quem esses homens mentem? Os outros que se escondem as escuras se juntarão ao meu canto. Caminharemos nesses dias noturnos recrutando os desavisados, atraindo os deslocados e os dementes. Iremos a passadas rápidas, gritando em coro ao mundo. Não por um paraíso, não por outra dimensão. Queremos revelar um mundo menos falso, uma verdade crua e fundamental.”

“O que é você?” Indaga Inês: “O oposto do que é você.” Nesse momento um vento aterrador toma conta do espaço, Jhony é capaz de controlar raízes das árvores ao movimento de sua mão, prende sua irmã ao tronco de uma delas. Ela ainda grita clamando por Jhony, mas ele a ceifa fazendo uma raiz transpassar a sua garganta e percorrer por seu esôfago. O jovem sai satisfeito do local, entretanto, ao dar as costas não repara no sumiço repentino do corpo.

***

O sermão do penhasco (Bem aventurados os que não têm ouvidos)

As criaturas de pele branca estavam reunidas junto a um penhasco. A frente deles um homem de pele muito branca, marcada por sinais de tortura no rosto e no corpo. Uma capa escura tapava-o da cabeça aos pés e segurava um machado em suas mãos. Era chamado Ausente.

O ausente começou a falar algumas palavras, algo do que ficou conhecido como “O sermão do penhasco”...

A voz era rouca, porém mais ressonante do que a dos outros semivivos, que eram homens e mulheres de todas as cores e idades. Todos eram iguais, na forma, na aparência e na posição. Todos unidos a um ideal.

“O sistema por séculos nos escravizou. O capital é o senhor de nosso século, seu jagunço é a rotina que nos aprisiona em sua rota. A mídia e a cultura de massa fazem parte do circo de ilusões que nos fazem esquecer, estes são máscaras que nos desvirtuaram. Entretanto, a partir deste momento a humanidade dá um basta à escravidão moderna, hoje irrompemos contra o sistema. As máscaras derretem.

Mal aventurados são os cegos, pois o mundo é o mesmo a visão deles;

Mal aventurados são os que caem, pois de mentiras seu mundo se constituiu;

Mal aventurados são os artistas, pois se enganam profanando a verdade;

Mal aventurados são os que procuram um céu, pois a verdade lhes é insuportável;

Mal aventurados são os medíocres, pois esses perecerão em sua pequenez;

Bem aventurados únicos e somente, nós, os seres semivivos!”

As criaturas gritavam algo em dialeto incompreensível, a noite era escura e o cheiro da ausência de uma vida exalava pelos ares. Nas matas, as criaturas, irrompiam em direção à cidade lá onde o mundo floresce e morre novamente.

***

À volta para a realidade, a sanidade, ou seria a realidade a loucura sensata?

“Então é essa a sua revelação? Pura bobagem!” Em meio a um bocejo, aquele meu amigo imbecil, me responde. Apenas meneio a cabeça em condição de reprovação. Talvez tudo que eu tenha falado a ele não se trate de pura balela. Mas, ainda me sinto perturbado, eu não sei se posso viver tendo todos os dias essas imagens em minha cabeça.

“Vamos, pare com isso! Foi só um pesadelo.” Queria muito acreditar naquela verdade. Porém, aquela fresta de sangue escorrendo no canto de seus lábios, era como uma confirmação. Você entende por que eu o matei, não é?

“A única solidão é a morte, mas não esta morte.” Charles Bukowski – Ignus Fatus (poema).

*Frase original: “Eu sou homem, tudo que é humano, não me é estranho!” Terêncio, pensador da Roma antiga.

***

Temas: Solidão, doença, escravidão, manias e objetos assombrados.

Opa! Me pegaram com as calças nas mãos. Resolvi chocar a sociedade do Dtrl infringindo as regras básicas de comentabilidade criando um texto longo. Não atirem em mim e nem me deixem aqui só, eu tentei, mas me empolguei de mais com a ideia! Se gostou e se entendeu fico muito contente, se não entendeu ao final do concurso farei uma breve explicação sobre o seu sentido. Essa é a minha segunda aparição no Dtrl. Não gostei muito de meu texto da última edição e espero ter evoluído nesse. Muito obrigado por me ler, estou muito feliz de estar entre tanta gente boa. Abraço a todos, bom Dtrl e uma colocação justa no final! A ambientação é toda do município onde eu moro, Magé, na baixada fluminense, Rj! Há alguns exageros de escritor, mas nada anormal.

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Morada Flutuante - Ilustrações

Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 26/08/2015
Reeditado em 03/09/2015
Código do texto: T5360419
Classificação de conteúdo: seguro
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