Alzhe... - DTRL 24

Corri até o próximo prédio sem me importar com a chuva torrencial e a lama que tomava conta de minha roupa. Abaixei-me num canto seguro e fiz sinal para o resto da equipe. Levantei-me e comecei a atirar nos inimigos, raramente acertava e isso não importava de todo, o que queria era dar cobertura. A ideia de que nossa missão era insana não saia da minha cabeça, como tomar uma base inimiga com tão poucos soldados? Tentei esquecer isso, tínhamos um dever a cumprir. Quando todos puderam avançar de forma segura, me abaixei novamente para recarregar. O barulho das armas já não me trazia comoção, havia virado uma máquina de matar. Entretanto, é só no último fôlego que podemos entender realmente o que somos e para que objetivo servimos. No momento em que a granada rolou aos pés de meus companheiros, soube que deveria agir como no treinamento.

– Granada! – gritei, e me joguei em cima dela, esperando a explosão com os olhos fechados.

Acordei com uma inspiração profunda seguida de uma respiração ofegante, tentei levantar, mas não consegui me mover, permanecendo escorado na cabeceira da cama. Olhei a minha volta e percebi que estava em um quarto branco, sozinho. Tentei organizar os pensamentos, se tivesse sorte, recordaria de algo. Contudo, as memórias fugiam. E a única coisa de que me lembrei foi de “Alzhe”, seria um nome? Talvez o meu? Não sei. Respirei de forma mais calma e observei melhor onde me encontrava: o único som que podia escutar era o tic-tac do relógio analógico acima da porta à minha frente, a minha visão, na penumbra da noite, permitia ver somente uma janela à esquerda, a qual emanava uma fraca luz branca do luar, junto com uma escrivaninha e sua cadeira, nela vi algum tipo de caderno ou livro e um porta-retratos, mas não conseguia ver quem eram as pessoas nele.

Tic-tac, o barulho incomodava. Esforcei-me para enxergar as horas, talvez fossem três da madrugada, quem sabe quatro. Senti-me preso àquela cama. O que estaria fazendo ali? E por quê? Como sairia? As perguntas martelavam em minha cabeça. Empenhei-me em levantar mais uma vez, mas não conseguia me mover muito bem. Relaxei e tentei recordar de algo, pois esta parecia a melhor maneira de encontrar respostas.

A primeira lembrança foi um choro feminino. Estava abraçando uma garota, talvez a consolando.

– Eu não queria isso – ela disse, desgarrando dos meus braços e olhando fundo nos meus olhos. Estes estavam cheios d’água, era um rosto frágil de uma mulher que ainda se sentia menina.

– Você sabe que devo ir – foi a resposta, firme e, ao mesmo tempo, gentil. Estávamos no sofá de uma sala aconchegante, havia duas malas aos meus pés. A despedida parecia distante no tempo, como se tivesse sido há décadas, no entanto, sentia algo de errado, percebia que as peças não se encaixavam. – Vou ficar bem – continuei a falar – nos veremos em breve.

E a lembrança se foi assim como veio. Igual memória de infância, sabia que havia acontecido, só não sabia o que veio antes ou depois.

Despedia-se para me juntar à FEB? Caso isso fosse verdade, estaria eu em posse do inimigo? Impossível, as condições em que me encontrava pareciam boas demais para um prisioneiro de guerra. Então, o que aconteceu?

Tic-tac, aquele maldito som continuava a me perturbar, o tempo estava passando, e o relógio só demonstrava a minha ressoante solidão. Olhei novamente pelo quarto e pousei meus olhos naquele livro sobre a escrivaninha, havia algo com aquele objeto, era quase sufocante pensar o que ele escondia... Qual era a lógica daquilo? Faltavam peças de mais para que pudesse resolver o quebra-cabeça.

Por impulso ou subconsciência, tive curiosidade de olhar para o meu corpo, talvez encontrasse algum ferimento ou algo do tipo. Com dificuldade, abaixei a minha linha de visão e levantei os braços. Foi com desespero e uma aceleração do coração que percebi o estado da minha pele, era horrenda, mas não pareciam queimaduras. Olhei com mais atenção e percebi que ela estava flácida, enrugada, mole mesmo. Antes que pudesse me perguntar que assombração espreitava a minha mente para criar estas visões ilusórias, uma nova lembrança me atacou.

– Não se preocupe, vamos cuidar bem do senhor – disse um homem bigodudo e de terno, atrás de uma mesa. Eu estava sentado a sua frente e aquela mesma menina estava ao meu lado. – Garantimos um serviço digno e humanitário – continuou, virando-se para a garota –, acredite, senhorita, iremos deixar estes últimos anos do seu pai mais tranqüilos e felizes – completou a frase com um sorriso que me fez arrepiar.

Pai? Seria eu, Alzhe, pai de alguém? Tic-tac. O quarto voltava a ter minha atenção e meus olhos foram puxados novamente para o caderno. Começou como uma angustia, algo me dizia que ele escondia a verdade, quase como se tivesse a roubado de mim. Tic-tac. O acúmulo do primeiro sentimento se transmutou em raiva. De mim, por não saber o que estava acontecendo, do mundo, por me abandonar. Tic-tac. Então, veio o ódio querendo me dar forças para gritar, mas o relógio se fazia mais retumbante, me deixava mudo, e implantava em meu cérebro seu toque monótono.

Mesmo não conseguindo gritar, ganhei forças o suficiente para rolar da cama. E assim o fiz, caindo no chão frio quase sem nenhuma defesa. As dores vieram logo em seguida, me impediram de levantar, mas não de me arrastar até a escrivaninha. O caminho parecia mais longo do que realmente era, sentia como se tivesse voltado à guerra e estava dentro de uma trincheira pequena demais para me levantar. A escuridão me envolvia e sufocava. Os cotovelos doíam, os ossos rangiam e eu notava o quanto havia me atrofiado.

Quando pude chegar ao lado da escrivaninha, sentei-me no chão escorando na parede e puxei o objeto desejado com minhas mãos fracas. Após algum esforço, ele estava entre meus dedos junto com uma caneta que havia caído de seu interior. Era uma caneta tinteiro belíssima. Observei a capa do caderno por alguns segundos, mas a única coisa que tinha para ser vista era sua cor amarelada, enjoativa. Abri e tentei enxergar, com a luz do luar provindo da janela, as primeiras frases escritas nele, mas a leitura foi árdua e lenta, pois os símbolos, por feitiçaria ou má iluminação, se mostravam difíceis de serem decifrados.

“Acho que não preciso escrever ‘querido diário’ para esta coisa ser um, não é? Disseram-me que isto aqui me ajudaria com a solidão, para desabafar, sabe? Talvez me ajude com a doença... Ainda estou incrédulo. Contudo, necessito de algo para me ocupar nessas longas horas tediosas que se colocam no meu futuro.”

Este era o primeiro parágrafo. Pulei algumas páginas e voltei a ler, percebendo que a letra tinha sofrido uma sensível piora:

“Tenho que confessar algo, sinto muitas saudades de minha mulher. Já faz anos que há perdi, mas a minha mente cisma em me confundir, me faz acreditar que ela irá abrir aquela porta e me dar um bom dia caloroso. Ainda lembro-me de como o seu sorriso resplandecia naquele rosto, afastando qualquer sentimento negativo que se alojasse em mim.”

Pulei mais algumas folhas – eram tantas! – e todas as peças do quebra-cabeça pareciam que estavam se dispondo à minha fraca visão.

“Acho que morar numa casa de repousos não é tão ruim como pensei, eles tratam bem de mim aqui. Além disso, minha filha vem me visitar sempre que pode, digo, sempre que o trabalho dela permite. Ela é meu orgulho.”

Não conseguia acreditar no que lia. Como posso ter esquecido a minha esposa e a minha filha? De repente, me lembrei do porta-retratos que estava na escrivaninha. Estiquei-me para pegá-lo, relei, mas minhas débeis mãos deixaram-no cair. O vidro se estilhaçou pelo chão, contudo, não me importei, apenas peguei a foto na mão e aproximei-a dos meus olhos. Sim, lá estavam ambas. A mulher mais velha já tinha alguns cabelos grisalhos em meio aos castanhos escuros, uma pele morena como o chocolate, os olhos grandes, despertos, e um sorriso doce, simples. Numa incrível semelhança, ao seu lado estava uma moça mais nova, talvez tivesse o nariz um pouco mais pontudo, a pele mais clara e jovem, mas eram quase iguais. Seus rostos eram familiares... e eram apenas isso.

As lágrimas começaram a brotar do canto dos meus olhos. Primeiro, tímidas goteiras, depois, uma nascente de água salgada. Eram minha esposa e filha, tinha certeza, mas por que ainda não me lembrava delas? Fui direto para a última página e me esforcei para entender aquelas letras que agora se transformavam em garranchos disformes, parecendo aranhas ou borrões. E logo a peça que faltava, o último parágrafo, destruiu minhas esperanças demonstrando meu futuro obscuro.

“Admito que foi uma boa experiência desabafar nessas páginas, mas creio que esta seja a última vez. Perdi muito da minha habilidade de escrever, falando claramente, estou esquecendo de como se faz. Não bastando isso, os lapsos de memória estão piorando. Às vezes, chego a confundir sonhos, lembranças e pensamentos. Ontem mesmo achei que tinha voltado ao campo de batalha e estava lutando com a Força Expedicionária... Hoje não reconheci a minha filha quando chegou ao meu quarto. Tenho medo de que isso se repita. Na verdade, tenho certeza que vai se repetir. Posso até ter sobrevivido à uma guerra, mas estou perdendo para o Alzheimer.”

Temas: Doença e solidão

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Espero que tenham gostado. Podem criticar a vontade, digam aonde errei e acertei, agradeço desde já ^^