A Senhora das Rosas

Pouco mais que duas horas da madrugada de uma sexta-feira. O frio costumeiro de agosto deixava a antiga cidade de Bueno da Prata mais introspectiva que em outras épocas. Através da vidraça, percebeu que a geada se formava com certa rapidez e buscou um cachecol além do casaco que já vestira. Pronto. Não podia mais retardar a partida. A estação ficava a uns cinco ou seis quarteirões e não haveria outra opção caso perdesse a passagem. Com passos largos ganhou a calçada e foi se distanciando aos poucos. Na mala algumas peças de roupas e alguns livros que certamente encurtariam a viagem. A pouca luminosidade e o silêncio deixavam mais entristecidas as ruas por onde passava. Estava só. A sensação de profunda solidão lhe deixava o semblante pesado e antes mesmo de sair de sua cidade, sofria em pensar que a saudade seria uma constante. O frio e a pressa o forçaram a adiantar cada vez mais os passos que ecoavam a cada esquina. Pouco adiante avistara a capelinha com suas luzes acesas e podia ouvir um agradável som do coral que harmoniosamente era acompanhado por um cravo. Pensou em entrar um pouco e fazer uma oração mas ao mesmo tempo, retirando o relógio do bolso, sem interromper a caminhada, percebeu que o tempo era escasso e abandonou a ideia. Mas, uma senhora de meia idade na porta da capela, lhe chamou demasiadamente a atenção. Carregava rosas vermelhas e sob o véu que lhe cobria o rosto, esboçando um sorriso, lhe fez um gesto de saudação, e este não conseguiu prosseguir sem aproximar-se da gentil senhora que lhe entregou uma das rosas vermelhas. Quando recebeu a rosa, um frio percorreu-lhe a espinha enquanto um vento forte varria algumas folhas sobre o calçamento. Faltavam apenas duas ruas e chegaria a estação de Bueno da Prata. Segurando a rosa com certo cuidado pensou que talvez este fosse um sinal que tudo correria conforme esperava: novo emprego, nova vida, mudanças felizes para um futuro bem próximo. Caminhava tão apressadamente que parecia esquecer o frio que lhe cortava o rosto. Passando pelo portão se sentiu mais tranquilo e menos angustiado com a partida. Seria a breve parada na porta da capelinha? – pensava com um meio sorriso. O certo é que adquirira uma firmeza que fazia o coração mais comportado. Hora de embarcar. Rapidamente os estalos do trilho anunciaram a aproximação do antigo trem de ferro e seus decididos passos subiram os degraus embarcando de vez.

Invadindo a madrugada,a o trem percorria um longo caminho e não havia muito a fazer senão ler um pouco para que o tempo passasse. Uma viagem demorada como aquela permitia um cochilo mas preferindo não se arriscar resolveu se entreter com um dos livros. Aos poucos o chacoalhar do trem e as pequenas letras, nas amareladas páginas o roubavam num cochilo miúdo,entre um capítulo e outro. Dificilmente se acomodaria para adormecer de fato. Não era a intenção, mas a cansativa viagem exigia tanto do corpo e da mente, que para tamanho cansaço qualquer cochilo haveria se ser compensador.

Num ir e vir de pensamentos, a imagem da senhora das rosas lhe tomava forma na mente. Abria os olhos tentando se livrar das lembranças, mas era quase impossível. Começou a refletir na estranheza do acontecido...o horário, o coral a rosa vermelha, a mulher com o rosto coberto pelo véu. Por um momento uma inquietação transformou sua calma em angústia e resolveu “passear” entre os vagões. Pensando que nada o que seus pensamentos guardavam lhe serviriam para alguma coisa, decidiu que o melhor era movimentar-se um pouco, já que era impossível dormir.

Atravessando os vagões foi observando que entre os poucos passageiros, havia um sono invejável. Faltava apenas um vagão. Este, mais escuro e sem passageiros. Uma luz muito fraca saltava de um canto onde era possível perceber um amontoado de panos. Fim do “passeio” dentro do trem. “ Este é o último vagão”- pensou. Mas quando virou-se para retomar seu lugar, deparou-se com o chefe do trem com seu uniforme surrado e uma papeleta nas mãos, que lhe perguntou: “ Sua parenta? ”- Sem compreender respondeu com outra pergunta: “ Do que o senhor está falando?” O chefe meio impaciente acendeu outra lâmpada iluminado melhor o último vagão enquanto respondia: “Estou falando da defunta que está ali no fundo.” Neste momento não resistiu ao ímpeto de verificar com os próprios olhos o que afirmara o chefe. E ao aproximar-se pode sentir novamente o frio percorrer-lhe a espinha enquanto constatava que a defunta era a mesma senhora que lhe ofertara a rosa na porta da capela naquela madrugada. Saiu atordoado do vagão e quase correndo voltou ao seu assento e sem saber o que pensar retomou a leitura sem conseguir se desprender da imagem da mulher. Resolveu guardar o livro e ao abrir a mala encontrou a rosa com as pétalas gotejando um sangue vivo escorrendo incessantemente.