O assassino de Babi Yar - DTRL 25

“Toda guerra humana custa sangue, e o cheiro de sangue desperta no homem todos os instintos que existiram dentro de nós desde o começo do mundo: façanhas violentas, a embriaguez do assassinato e muitas outras coisas. Tudo o mais é conversa fiada. Uma guerra humana só existe em cérebros sem sangue. ”

Adolf Hitlher

A cavalgada das Valquírias

(Um coração palpitante)

Karl Eisner. Este era mais um dos tantos filhos de mais uma família da Alemanha. Era um rapaz comum, cabelos pretos curtos, pele alva, olhos escuros. Como qualquer jovem adolescente tinha o hábito de estar entre amigos, um flerte aqui ou ali, mas nada sério na verdade. De sério mesmo, encarava as aulas de música mantidas gratuitamente por um idealista, o professor Matthias Eisenberg, que utilizava as instalações de um teatro que, apesar de desativado, servia muito bem aos seus propósitos. O dom que tinha o professor para o idealismo também o possuía na mesma medida para a megalomania e consequentemente para a excessiva cobrança aos resultados de seus alunos.

Foi nesse cenário que Karl conheceu Hans Becker, ou apenas Beck, como passou a se referir a ele após se tornarem amigos. Dentre os vários outros alunos, não havia nenhum que se envolvesse tanto na busca de aperfeiçoar seus dons musicais quanto aqueles: Karl no violino, Beck no Cello. O professor não dava a mínima para isso — obrigação, dizia — mas valorizava o fato de ter a sensação de conseguir lhes demonstrar a grandiosidade da obra de Richard Wagner, seu grande ícone, pois eles absorveram esse gostar de forma apaixonada e devota.

Hans pensava em ser médico, mas isso de forma distraída, já que não tinha planos concretos nesse sentido, passando seu tempo a tocar ou rabiscar poemas para as moças que lhes eram muito atenciosas, muito mais pela beleza singular do que pelos versos. Quem se importa? Pensava, ao rir para si mesmo.

Karl, sensível e sentindo-se vocacionado, tinha o sonho de ser admitido em uma das mais tradicionais escolas de música da Alemanha: a Escola Superior de Música e Arte Dramática Felix Mendelssohn Bartholdy, em Leipzig.

Esses planos acabaram sendo procrastinados, uma vez que em 1936, quando tinha pouco mais de quatorze anos, foi compulsoriamente alistado na Juventude Hitlerista. Ao contrário do que se poderia imaginar, longe de considerar este fato um infortúnio, após um ano já conclamava um juramento diante de uma bandeira que possuía, dentro de um círculo branco e ao centro, uma cruz gamada preta. Com o braço direito estendido no ar e a mão espalmada voltada para baixo: “Diante dessa bandeira de sangue, que representa nosso Führer, juro devotar todas as minhas energias e forças ao salvador da nossa pátria, Adolf Hitler. Estou disposto e pronto a dar a minha vida por ele, com a ajuda de Deus”.

Até os dezoito anos aprendeu sobre artes militares, praticou atletismo, estudou história e a doutrina, podendo-se acrescentar aí as ideias de eugenia, espaço vital e superioridade de raças, entre outras muitas teses realmente tão pouco sagazes quanto mais insidiosas e pérfidas, as quais lhes foram sendo inculcadas uma a uma através de um processo propagandístico cuja deliberada avidez em varrer das mentes e dos corações quaisquer traços de similaridade com os outros seres humanos, permitiu que, irremediavelmente, esse conjunto de signos, marcado a ferro nos pensamentos, se estabelecesse como o seu arcabouço ideológico e sustentáculo moral, tornando-o então, de fato, um nazista.

Foi com euforia que, em maio de 1941 recebeu o convite para se dirigir até a academia de Pretzsch, às margens do Rio Elba, cerca de oitenta quilômetros a sudoeste de Berlim, onde seria finalmente instruído para a guerra que efetivamente já se instalara na Europa desde 1939. Correu para se apresentar entre os primeiros e seus olhos ofertavam a quem estivesse presente um espetáculo contido de júbilo que talvez até pudesse animar ou inspirar aquele segundo-cabo que lhe recepcionou. Talvez não.

O curso naquela academia foi bastante vulgar. Karl se surpreendeu ao perceber que apenas foi treinado a se alinhar entre outros alunos e disparar tiros em alvos imóveis de papelão, tendo sido todos daquela turma, de forma incomum, dispensados de serem submetidos às práticas bárbaras adotadas nas academias militares. Por outro lado, as longas preleções diárias sobre o valor da honra, da firmeza do espírito, do dever e da reiteração sistemática acerca da desprezível condição daqueles com quem, em breve, se encontrariam em campo, eram intermináveis. Foi perto do fim de sua formação que lhe veio um estafeta de quem recebeu a fatídica correspondência, justamente quando soube para onde seria mandado: para o leste.

Vinha do front, da Polônia, demorou meses até lhe chegar às mãos e, antes que tivesse aberto a carta, pelo selo e carimbo, já sabia que Beck estava na guerra fazia um tempo e que era um membro condecorado da SS. Que inveja boa, pensou. Quem me dera.

Libreto

(A carta)

“Tenho andado muito. Não noto pessoas, nem seus rostos. Agora, eu aqui comigo, apenas relembrando enquanto te escrevo, consigo ver as silhuetas, as roupas balançando quando andam, parecem ter pressa, mas na minha lembrança sempre parecem muito lentas. Nas ruas, nos vales, nos caminhos, em qualquer canto, não as vejo. Não enxergo feições, beleza ou feiura. Apenas carne. Feixes de músculos se movendo, uns garantindo que os ossos não se esparramem pelo chão, outros que as tripas simplesmente não escorreguem para fora. É isso que me salta aos olhos. Observo toda aquela carne apodrecendo e sendo comida lentamente pelos seus legítimos destinatários. Me atento para os contornos perfeitos de todas as caveiras. Avisto fantasmas prematuros, mortos que ainda vivos. Nasceram, nascemos, somente para isso. Mas como podem ter tanta certeza da vida? Como podem andar impunemente pelas ruas aparentando que são imunes à sua praga? Como conseguem passar um só minuto esquecidos de sua maldição? Todas as necessidades, os ideais e aspirações, as invejas e seus desdobramentos, as frustrações, os anseios? Todos os bens, os prazeres e as dores? Para quê? Como aquele monte de comida de vermes e larvas pode pairar, absorto, com suas insígnias, sorridente, cheio de si, podendo mesmo se dizer feliz, quando em verdade a única coisa de valor que possui é algo que não é seu? Não me venha falar que as religiões confundem os sentidos, que subtraem o temor, ou enraízam inverdades para soprar nos pensamentos a esperança. Não. Essa morada onde supostamente se instalam as lendas, as crendices, os dogmas, os mandamentos e as verdades convenientes já existe dentro do homem, é de sua natureza. A ele basta ocupá-la com aquilo que lhe for mais fácil. Assim não se explica nada, ou, pelo menos, não se explica tudo. Se você me diz que as caveiras andam pensando que são outra coisa porque estão sendo enganadas, a quem se pode atribuir tal engodo? Não são suas próprias convicções que lhes mantém dopadas e livres da lembrança da companheira menos querida e mais presente? Pois esta morada em mim está vazia. Não há nada ali, nem crença nem desesperança, mas a visão crua da existência vazia, e por isso andei e não vi ninguém, só havia corpos esperando sua hora. Somente matéria orgânica. Coisas que tem sua origem e destino na natureza, uma senhora que ignora por completo a percepção, agora percebo, tão humana, do bem e do mal.

Os volumes de carnes vão andando e pensando nos seus pequenos momentos, no quanto se sentem inferiorizados ante uns e justificando-se soberbamente por se crerem tão mais do que outros. Vão esperar as quatro estações, pensar no frio, no calor ou nas manias irritantes de algum conhecido. Imploram religiosamente que lhe caiam dos céus as riquezas prometidas, bem assim como praguejam para que sejam os seus inimigos despojados — mas tanto melhor se forem riscados da terra. Desejam a eternidade no colo dos deuses, de deus, de Deus, de deusas, de virgens e de imortais, mas se esquecem de sondar o significado de suas existências, pois aí, nessa resposta, haveria um risco imenso de saírem do torpor e então... sim você sabe o que vem depois.

Eu só quero te explicar que vejo a natureza proceder implacavelmente a sua marcha, e ela não para, não se interrompe, não se esbarra em contratempos, o caos é sua matéria prima, a harmonia silenciosa é o seu hiato, e suas sucessões, alternações e concomitâncias estão dentre as suas mais ordinárias expressões.

O caos busca o equilíbrio. Já este não se busca e, por isso, não se mantém. O equilíbrio da natureza é barulhento, quente, sufocante e doloroso, como uma mordida. Sim, de um leão. Não há nada guardado para nós. Não fazemos diferença.

Não fazemos diferença para a natureza, vivos ou mortos, alegres ou tristes, de um jeito ou de outro, qualquer que seja a variável.

Só podemos fazer diferença uns para os outros.

Curiosamente, é aí que se revela a maior habilidade humana: a capacidade de fazer a diferença para o seu próximo. Nisso não há equivalente na natureza no que diz respeito à tenacidade, sagacidade, perspicácia, astúcia, ardileza e toda sorte de habilidade, nata ou adquirida, em promover a destruição de seu semelhante, sendo dúvida ainda para mim se esta propensão se explica na existência de um desejo latente pela autodestruição ou se efetivamente a sanha fratricida provém meramente do fato de que não há benefícios em possuir inteligência.”

Heins Becker

Dantzig, Polônia

Novembro de 1940

O voo do besouro

(Leia de olhos fechados)

Desde 1940 Hans Becker havia se engajado no Einsatzgruppen C e, sendo agosto, sentia dores nos dedos, antebraço e ombro, pela infindável reiteração de movimentos. Mais precisamente, desde o início da Operação Barbarossa, deflagrada em 22 de junho de 1941. Encontrava-se acompanhando o avanço da Wehrmacht, o poderoso exército de uma Alemanha que se pretendia em pleno desabrochar da sua verdadeira magnitude, insurgindo-se contra a gigante União Soviética, que concebia estar completamente desabrochada.

Ao menos em teoria, o trabalho dos Einsatzgruppen era relativamente simples. Acompanhavam o avanço das tropas do exército para o leste, controlando e pacificando a retaguarda e os territórios ocupados. Esses grupos eram formados por membros da SS (Schutzstaffel), no início um tipo de polícia do partido nazista e guarda pessoal de Hitler, a qual, sob a direção de Heinrich Himmler, veio a se tornar a mais audaciosa, imoderada, fanática e obstinada força paramilitar de que se tem notícia durante a Segunda Guerra Mundial. Na prática, Hans não tardou a perceber que o controle e a pacificação sob a responsabilidade daquele grupo era, na verdade, um cruel eufemismo para referir-se à erradicação, através do extermínio nu e cru, de todos aqueles considerados corrompidos, inferiores, inoportunos ou perigosos.

Intelectuais e oficiais soviéticos, por serem perigosos; comunistas, por serem corrompidos; doentes e aleijados, por serem inoportunos; negros e ciganos, por serem inferiores; judeus, por serem judeus.

Disso se pode facilmente presumir que para levar a cabo tal empreendimento era necessário um esforço imenso, tanto do ponto de vista logístico, porque era preciso movimentar e alimentar a tropa, quanto do operacional, porque definitivamente matar a granel significava o dispêndio de quantidades enormes de energia, sendo seu tipo principal aquela que brotava de um arrojo no peito e rapidamente se precipitava no dedo ao puxar-se um gatilho qualquer, enquanto se abatiam costumeiramente cinco, dez, vinte, trinta mil pessoas em intervalos de tempo de horas ou poucos dias, um por um, tiro por tiro. Crianças com suas mães, senhores, senhoras, homens e mulheres de média idade e jovens; embora seja razoável supor que ninguém deve ter se esquecido de Belaja Cerkov, um local ao sul de Kiev, Ucrânia, onde o primeiro-tenente August Hafner, supervisionou o massacre de cerca de cem bebês, valendo dizer que ele próprio tenha sido visto neste dia de agosto de 1941 caminhando rua abaixo com um bebê de um ano, que murmurava de forma tímida, empalado na baioneta de seu fuzil. Hans Becker nunca haveria de se esquecer.

Essa era então a missão de Hans: assassinar a todos e enterrá-los em conjunto em grandes valas.

Após identificados, os judeus de um determinado local eram levados para pontos de recolhimento, com em uma coleta de lixo. Postos em movimento, marchavam ou iam transportados, ora por caminhões ora por trens, para os locais de execução, ou massacre, ou extermínio, ou genocídio, como se queira, onde poderia ou não haver valas abertas. Acaso não as houvesse, as vítimas tinham que cavá-las, mas não antes de entregarem seus objetos de valor e de serem forçados a se despir. Eram fuzilados às vezes de pé, às vezes deitados com a face voltada para o chão, onde, se tudo desse certo, receberiam um tiro na base da nuca, promovendo na maioria das vezes, uma morte rápida.

A dança macabra

(Eu, tu, ele, nós, vós, eles)

Em meados de julho de 1941 a infantaria do exército alemão havia conseguido infligir graves baixas no exército vermelho. Dos altos escalões soviéticos veio a ordem para abandonar tudo a oeste de Kiev, e de defendê-la até o último homem.

No começo de agosto, Karl Eisner, após três dias de viagem, chegou na cidade de Zhitomir, para onde havia se dirigido o Einsatzgruppen C. Sabia que Hans estava naquele grupo, o que o deixou muito feliz, apesar de naquele momento duas indagações lhe ocuparem a mente. A primeira, mais antiga, era saber finalmente do que se tratava aquela carta de Hans, pois pareceu-lhe que tinha sido escrita por um homem comum e fraco, sem firmeza moral, duvidoso de seu destino, de sua força e de seu papel no mundo. Jamais poderia conceber que um oficial da SS pudesse se dobrar perante considerações daquela natureza. Ou então teria Hans ficado louco?

Sua segunda dúvida, bem mais recente, se baseava em saber porque sua viagem se interrompeu a cento e quarenta quilômetros da linha de frente, que se encontrava em Kiev.

Não precisou de muito tempo. Logo avistou Beck pelas ruas devastadas e ainda fumegantes da cidade; não foi difícil, bastou perguntar aqui e ali.

Quando viu seu amigo achou difícil acreditar que se tratava da mesma pessoa que tinha convivido anos atrás. Seu rosto não tinha mais vitalidade, sua pele perdera o viço e tinha um olhar distante. Estava sentado em um pedaço de muro caído numa esquina, fumando um cigarro.

— Karl? — seus olhos marejaram. — Quanto tempo... Como está amigo?

— Tudo bem, feliz em te ver. E você? Como tem passado?

— Tanto tempo... Dá aqui um abraço, conversamos depois.

Sentaram-se lado a lado e passaram a falar de todas as lembranças que faziam com que fossem, depois de tanto tempo, ainda amigos.

A tarde passou rápido e Hans sabia que não tinham tanto tempo para reminiscências. Já tinha sido informado que trabalhariam ao cair da noite ou, no mais tardar, na manhã do dia seguinte.

— Então, você parece preocupado comigo, não? — Disse Hans.

— Recebi sua carta. Meu amigo, o que estava querendo me dizer? Que não crê em nossos ideais? Pareceu-me que questiona a autoridade do Fuhrer, é isso mesmo?

— Não, questionei muito mais coisas meu amigo, mas agora não importa mais. Aquela carta ficou no passado.

— Mas preciso entender o que te ocorreu.

— Karl, eu te disse tudo na carta. Está tudo lá, não há o que explicar.

Chocou-se em saber que eu andava vendo cadáveres andando pelas ruas ao invés das pessoas?

— Sim... sim. Mas não só isso...

— Pensa que fiquei louco. Mas não foi isso que aconteceu. Preciso te dizer uma coisa meu amigo. Essas coisas passaram, não sou mais a mesma pessoa que te escreveu aquela carta.

Karl, ouviu atentamente o amigo, mas percebeu que ele mudava com frequência o tom de voz, o ritmo das palavras e sentiu uma estranha sensação de que havia duas pessoas falando ao mesmo tempo.

— Na guerra todos sabem que é incerto se vivemos ou morremos no próximo minuto, mas no nosso grupo ninguém morre em combate, apesar de temos registros de muitas baixas. O que preciso te dizer é que se está aqui é porque só há um serviço para você. Eu te escrevi assim que cheguei, depois que passei a ver coisas, a ter uns acessos, uns tipos de crise, pode ser normal. Eu me lembrei de nossas aulas, do professor Eisenberg, e criei um método para me livrar delas. No momento do trabalho, lembro-me das minhas sinfonias, óperas ou sonatas preferidas. Daí, após ouvir todos os instrumentos, vou separando-os de um em um, até chegar no meu querido violoncelo. Assim, passo o tempo que for, concentrado em minha peça, no meu trabalho, com o cello, é claro, e então tudo é paz, suave, luminoso ainda que seja noite e o silêncio só se rompe pelas notas graves de meu instrumento.

— Mas a qual trabalho você se refere? Me explica... Não consegui entender muito bem... Porque não estamos no cerco a Kiev, Hans? — Questiona Karl, bastante confuso.

Hans se levanta, põe a mão sobre o ombro esquerdo do amigo.

— Nada que eu te disser pode retratar sua experiência aqui. Talvez não nos vejamos mais até o fim da semana, da guerra ou até o fim da vida, então te deixo um único conselho meu amigo: ouça o seu violino — e, após um abraço, despediu-se e seguiu ruínas adentro.

De fato, nada havia preparado Karl Eisner para o que viria a ocorrer sistematicamente durante os dias que se seguiram à ocupação de todo o território desde Zhitomir até Vinnitsa, a sudoeste de Kiev.

Recebeu uma Mauser 1910 e um Fuzil Mauser Kar 98b e, no dia 07 de agosto, já engajado em um Kommando, foi incumbido de acompanhar o enforcamento de um juiz judeu-soviético. Perfilou-se junto com muitos outros na praça, fardamento impecável, postura idem, estava diante do cadafalso e esperava ansiosamente ver a justiça ser feita.

Sentiu-se útil, mesmo estando ali parado, quando viu a corda se esticar em torno do pescoço do juiz, matando-o na frente da multidão.

Não sabia que o comandante Paul Blobel, havia preparado uma surpresa para os recém-chegados. Enquanto o enforcamento se desenrolava mandou contar quanto judeus havia entre aqueles que assistiam à execução. Eram quatrocentos.

Pouco tempo após a morte do juiz, estava Karl Eisner e muitos outros militares escoltando quatrocentos judeus que eles haviam retirado da multidão, levando-os diretamente para um fosso nas redondezas da cidade. Foi aí que Karl entendeu do que se tratava o trabalho do qual Hans se referiu. Após liquidar todos os judeus, com sangue e pedaços de cérebro salpicados no rosto e no uniforme, saiu andando tonto, com ânsia de vômito, desatinado por um terreno de vegetação baixa que dava retorno para a cidade.

Pensou na carta, em Hans, em quantos teriam sido até agora, qual era o critério, em tanta coisa. Mas não havia resposta, nem tempo.

Nos dias seguintes viajou pela linha Zhitomir-Vinnitsa e não houve um dia sequer que não tivesse que disparar centenas de vezes contra pessoas despidas, de costas, indefesas e normalmente à beira de uma vala, cova, barranco, fosso, fosse o que fosse. Tudo ao som de seu violino, que aprendeu rapidamente a isolar, como protagonista de suas peças preferidas, principalmente aquelas de que se lembrava da grandiosa ópera O Anel do Nibelungo, de Richard Wagner, que vinha a ser também o autor preferido do Fuhrer. Após refletir e conjecturar sobre seu papel, manteve suas convicções a respeito da doutrina que pregava o purismo do povo alemão, mas não era tolo, não havia visto nenhuma autoridade dos médios e altos escalões dar um tiro sequer. Então entendia que estava fazendo um trabalho duro, difícil, para poucos, mas necessário. De modo que a necessidade de ouvir seu violino era absolutamente natural para diminuir a aparente confusão e aliviar o fardo daquelas sessões.

Em setembro retornou a Zhitomir. Kiev estava prestes a cair e a iminência do avanço para aquela cidade gerou uma operação no dia 07 de setembro de 1941 que teve por objetivo a execução de mais de cinco mil judeus que se encontravam isolados em um gueto naquela cidade. De forma inusitada, naquela ocasião Karl se apercebeu em olhar detidamente o rosto de cada uma das pessoas nas quais atirava e pela primeira vez viu suas variadas expressões, o medo, o pavor, o cheiro da morte, sentiu seu coração mudar o ritmo e não conseguia de jeito nenhum “sintonizar” o seu violino. Nesse dia, não ouve música, mas tiros, gritos e desespero. Quando terminou viu os tratores se apressarem a trabalhar para encobrir os corpos. Ficou até o fim.

Como havia se agachado para fumar um cigarro, ao se levantar, segundos antes de virar-se para sair dali, viu a terra se mover irregularmente em alguns pontos, mas, ao olhar com mais atenção, não viu mais qualquer movimento. Talvez tenha sido impressão minha.

À noite, no banheiro, Karl se viu no espelho e parecia olhar para um estranho. Lavou o rosto, percebeu que suas mãos tremiam. Fixou os olhos durante um tempo nelas, cujas unhas sujas de preto arroxeado, parecendo pólvora, ou sangue seco, contrastavam com sua pele tão branca. Quando retornou o olhar para o espelho não mais viu seu rosto, mas uma face deformada, parte carne, parte osso, parte olho, parte não, larvas se contraindo em seu andar, uma boca sem lábios, só dentes. Foi tomado de pavor e teve o ímpeto de se defender daquilo, e, ao tempo que esmurrou o espelho, que se quebrou completamente, deu uns dois passos para trás que foram suficientes para fazê-lo tropeçar em algo. Caiu e não viu mais nada.

Acordou em uma enfermaria dois dias depois, quando uma enfermeira cuidava de um corte em sua mão.

— O que aconteceu?

— Você caiu, bateu a cabeça e passou dois dias aqui. Que bom que está melhor, mantemos você sedado esse tempo porque apresentou convulsões e falava coisas sem sentido.

Por ordem de seu oficial superior, permaneceu afastado até o final de setembro, quando retornou ao serviço aos poucos auxiliando na finalização do deslocamento para Kiev.

No dia 24 já se encontrava naquela cidade, ou no que sobrava dela. Recebeu ordens para coordenar a distribuição de panfletos pela cidade, escritos em um papel tosco de embrulho, donde se lia o seguinte:

“Todos os judeus que vivem na cidade de Kiev e em suas vizinhanças devem se apresentar às 8 horas da manhã de segunda-feira, 29 de setembro de 1941, na esquina das ruas Melnikovsky e Dokhturov (perto do cemitério). Devem levar consigo documentos, dinheiro, objetos de valor, assim como roupas quentes, roupa de baixo etc.

Qualquer judeu que não atenda a essa convocação e que seja encontrado em outro lugar será fuzilado.

Qualquer civil que entre nas moradias evacuadas pelos judeus e furte seus bens será fuzilado.”

A nona sinfonia

(A fuga do Senhor Bernhard)

Não se sabe se por ordem do cruel e desatinado destino, mas o dia 29 de setembro de 1941 era o dia do Yom Kippur, o qual, só para resumir, é uma das datas mais importantes do judaísmo e faz referência ao Dia do Perdão, onde orações e jejuns são praticados.

Nesse dia, logo pela manhã, havia milhares de judeus aglomerados no local referido nos avisos espalhados pela cidade no dia anterior. A partir de informações não muito fidedignas já havia uma crença generalizada de que, assim como ouviram falar de muitos judeus da Polônia, seriam transferidos para o oeste. Esperavam então que dali seriam direcionados para algum tipo de transporte que, apesar te lhes tirarem do lar, lhes preservariam a vida. Não poderiam estar mais enganados.

Nos dias anteriores, membros do quarto comando haviam preparado um local para receber a demanda de judeus proveniente do ultimato enviado. Como dito no aviso, o caminho começava em uma esquina, perto do cemitério da cidade, continuavam em seguir por um caminho de terra, em uma subida que terminava à beira de um portão que fazia parte de uma longa cerca de flandres, sem qualquer visão para o lado interior.

Ouvia-se sempre, uns sons de tiros e rajadas, mas ninguém se importava com isso depois dos bombardeios e da intensa batalha que fez ceder o exército vermelho naquela cidade. Só queriam ir embora e deixar para trás aquela guerra da qual não faziam parte.

Karl foi escalado pela manhã para guiar os judeus que se encontravam no “ponto de coleta” e guiá-los até o portão.

À tarde passou para o lado de dentro. Era uma ravina, chamada pelos moradores de Kiev de Babi Yar. Não passava de um imenso barranco à beira de um vale, com solo arenoso e um regato raso a correr lá embaixo. Foi montada uma estrutura completa para atender à demanda. Trinta e cinco mil judeus deveriam ser executados em 48 horas.

Às 14:00hs, foi designado para a beira do barranco. Olhou para o fundo e já não havia mais regato. Durante toda a manhã as pessoas iam entrando e formando filas que iam sendo deitadas sobre os últimos que foram executados e então passava alguém, andando por cima dos mortos e dos vivos, era difícil saber, e dava-se um único tiro na base da nuca. Mortos ou não passava-se para a fila seguinte.

Quando Karl olhou para o buraco viu que aquele bolo de corpos se mexia, pareciam todos mortos mas ouvia murmúrios, choros, engasgos e suspiros. Tomou a posição do homem lá de baixo. Desceu o barranco e esperou. Nenhum tempo se passou para que viesse a primeira leva. Cinquenta pessoas. Todas nuas, havia mulheres cujos bebês mamavam em seus seios. Não era seu trabalho arrumá-los, enquanto vinha um colega deitando-os, a ele bastava passar atirando.

A cada leva, Karl ficava mais impressionado com o choque com o qual aquelas pessoas eram acometidas assim que viam a cena terrífica de uma vala com camadas e mais camadas de mortos, vivos e semi-vivos, ao invés de um trem. Não tinham tempo para o pesar, até o chorar era curto, logo estariam formando a próxima camada.

Lá pelo meio da tarde foi que Karl assombrou-se completamente. A primeira pessoa da recente leva de judeus, era claramente sua tia por parte de pai, Gertrudes. Mas como? Tia Gertrudes morreu faz tempo.

A terceira pessoa lhe pareceu ser o marido dela, tio Kurt. Mas esse era ainda vivo.

— Tio Kurt? — Aquele senhor não estava apavorado, mas atordoado.

Deitou-se por si mesmo ao lado de Gertrudes, a quem já havia sido dado um tiro, e recebeu do mesmo modo o seu.

A quarta pessoa, bem, não era mais uma pessoa.

Seguiu-se assim que aqueles seres desnudos que desciam o barranco, com suas crianças e seus velhos, seus choros e lamentações, se intercalavam entre completos desconhecidos, cadáveres em decomposição e parentes de Karl.

Ao fim da tarde foi retirado para cumprir o descanso obrigatório. Havia casas à vontade, afinal quantos já estavam no fundo da ravina de Babi Yar?

Se dirigiu a uma casa vazia que ficava muito próxima da esquina onde os judeus se amontoaram voluntariamente para serem “deslocados”.

Era uma casa de andar, simples, média, pelas fotos ali viveu uma família. Dormir era tanto necessário quanto impossível. Vagou pela casa toda a noite e conversou com todos os membros daquela família, menos o senhor que aparecia nas fotos e ocupava o espaço de um avô, sim era o avô de Eva e Anette, simpáticas e dóceis crianças. Pai de Wilfried e sogro de Ester.

No dia seguinte subiu a ravina menosprezando as normas mínimas de apresentação, com o uniforme desarrumado e botas sujas. Ao chegar ao portão foi informado que deveria entrar pois receberia sua designação. Qual não foi a surpresa em saber que deveria novamente ir para o fundo de Babi Yar e continuar o mesmo trabalho do dia anterior. Desceu a contragosto. No primeiro grupo havia, como era normal cerca de cinquenta indivíduos. Só de olhar em relance já percebeu que uns vinte eram mortos já, mandou logo passarem à frente e os jogou por sobre os outros sem se dar ao trabalho de atirar. Estão mortos, porque deveria eu atirar em quem já está morto?

Mais ou menos metade dos outros trinta era de desconhecidos e os outros eram todos seus parentes. Porque estava atirando em cadáveres e parentes? Era óbvio. Não conseguia mais ouvir o violino.

Hans me avisou. É tudo fruto de uma onda, de sensações, como aquelas que deram ensejo à carta delirante dele.

Atirou logo nos desconhecidos, depois nos parentes distantes e assim foi andando a fila. À medida que vinha diminuindo, mais próximos ficavam seus parentes. Tias, tios, primos. Seu irmão, seu pai e sua mãe. O último miserável veio se arrastando, já meio ensanguentado, estava vivo, era certo, mas, não se sabe como, conseguiu passar com um casaco amarrotado. Bem, não importa, vamos lá, há muitos outros aguardando sua vez. Quando Karl desnudou aquele pobre diabo, emudeceu. Estava diante de si mesmo. Um sósia? Alucinação, isso sim. Não poderia vacilar, admitir que entregou sua vida de mão beijada a uma causa insana na qual nunca teve qualquer opção, apesar de parecer que tomou todas as suas decisões. Não, não era esse homem, derrotado e indeciso. Fez o seu espectro deitar-se como todos os outros e lhe deu um tiro que cessou sua vida instantaneamente.

Acontece que seus olhos se turvaram, se viu sozinho naquele fosso imenso e ínfimo diante dos milhares de corpos jogados naquele buraco. Sentiu de novo a mesma sensação de enjoo que sentira antes e, sem esperar que o soldado viesse com o próximo grupo, tomou o casaco do último morto e saiu ligeiro pela base do vale, seguindo o sentido do córrego até a cidade.

Queria ir descansar, pensar no que estava acontecendo. Foi direto para a casa onde passou a noite anterior. No caminho, obrigatoriamente passou pela esquina da Melnikovsky e Dokhturov, sendo que constatou que havia ainda milhares de judeus esperando seu trem. Envolto naqueles trapos, foi passando despercebido pela multidão, quando viu o senhor que estava nos porta-retratos, não tinha mais de sessenta anos. Se dirigiu até ele e o cumprimentou. Disse que havia conhecido seus netos, seu filho e nora.

Chamava-se Bernhard. Mas não podia ser. Eles haviam pegado o trem ainda ontem. Não poderiam estar na casa. Ele preferiu ficar e dar prioridade a eles. Queria se despedir de alguns vizinhos. Karl não disse nada, apenas retirou o homem da multidão e o levou para a casa vazia. Quando estava lá, pediu que o Senhor Bernhard lhe desse suas roupas. Explicou que não era a melhor escolha seguir pelo trem e que deveria se misturar aos ucranianos e não se declarar judeu ou comunista. Ele assentiu.

Karl deixou sua farda naquela casa e foi direto para o ponto de coleta, com as vestes do Senhor Bernhard. Esperou até que foi conduzido a subir a trilha que levava a Babi Yar. Passou pelo portão e parou em um entreposto onde deveria se despir, deixar documentos e objetos de valor.

Tirou as roupas, entregou seus documentos originais, os quais foram jogados junto de todos os outros em um latão, entregou relógio, dinheiro e seguiu nu. Chegou à beira do barranco e desceu sem se incomodar com o desespero daqueles que viam aquela cena e rapidamente se davam conta do que as esperava. Ele sabia o que o esperava. Não havia o que aguardar, a carta de Hans estava certa. Não fazemos diferença. Alegres ou tristes. Não via sentido em prosseguir para nenhum destino que não fosse aquele.

Prosseguiu então à marcha em fila indiana, aguardando sua vez, enquanto os outros iam gradativamente diminuindo a profundidade do vale.

Chegou então o seu momento. Seu executor olhou fixamente em seus olhos e lhe encaminhou para a vala.

Karl morreu com o único tiro que tomou de Hans Becker, que havia assumido a função na cova que tinha se tornado Babi Yar. Logo depois, Beck passou por uns momentos a pensar que tinha acabado de atirar no primo Peter, além da certeza de não ter ouvido seu querido violoncelo, mas o agudo timbre de um violino.

Tema: Paranoia.

André Rocha Gonçalves
Enviado por André Rocha Gonçalves em 09/11/2015
Reeditado em 15/11/2015
Código do texto: T5442912
Classificação de conteúdo: seguro
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