Acenderei, à ti, uma vela. - DTRL 25

Para guiar-te no caminho de volta aos meus braços.

Há tempos que não o encontrava. Fui muito sozinha nesses longos meses sem vê-lo. Não sei como aguentei tanto tempo sem ti, nesse inferno congelante e desértico. A lembrança de nossos momentos juntos me aquece, faz com que eu espere, como, na verdade, sempre fiz. E sempre farei.

Recebi uma carta, semana passada, acho, que dizia que tempos melhores viriam. Era endereçada para lugar nenhum, para ninguém. A letra era um garrancho grosseiro e trêmulo, mas legível, e o papel era manchado de carvão. Guardei-a por aqui em algum lugar, tenho certeza disso, talvez em alguma gaveta em alguma cômoda. Aqui é tão grande e estranho e tudo é tão mutável que raramente me lembro de onde coloquei algo. Não sei se algum dia terei explorado todo este lugar, mas quem sabe, um dia.

Tenho toda a eternidade. E espero gastá-la contigo.

Assim os anos não seriam tão duros, e os dias não seriam tão frios.

Lembra-se de quando fui mandada para cá? Tentaste me defender, mas nem assim a ira do Criador foi contida. Ao menos estás bem agora. Mas devo admitir, que nem em meus pesadelos mais terríveis pude sequer pensar em divagar que o castigo seria de tamanha proporção. Pensamos bem antes de fazê-lo, não foi? Soubemos que não seria fácil, mas era um sacrifício necessário. E eu apenas tive azar. E aprendi a viver com isso.

Às vezes, pessoas passam por aqui. Outras, alguns pássaros ou peixes. Ouço vozes, também, finas e grossas e jovens e velhas, de homens e mulheres, vivos e mortos. A morte tem sido mais dolorosa nos últimos anos. Não a minha ou a sua, não, estamos além disso. Aconteceu quando vi uma mãe e seu filho passearem, felizes. Enxerguei o tumor dentro do cérebro dela. Pressionava um dos hemisférios, um breu terrível que a levaria a morte em alguns meses. Tentei imaginar o que iria acontecer com a criança. Não deveria ter nem dois anos, e o conceito de morte seria insignificante aos seus olhos.

Seria ausência. E então, tristeza. Por fim, contentamento. E a vida iria seguir.

Penso que a vida mais é fácil. Começo, meio e fim.

Não sei onde comecei, estou, em termos, vivendo, e sei que nada disso vai acabar, pelo menos por agora.

Fiz bons amigos, mortais, antes de ter desistido. Perdi-os todos, e a dor da perda ficou tão grande que parei de tentar. Eternidade não é viver para sempre. É ver todos morrerem. Exceto, é claro, aqueles que são iguais a nós. Os mortais nos enxergam como deuses, anjos, ninfas e fadas. Você me alertou da ira do Pai, meu amor, mas sabíamos que em tempos de trevas aquela centelha era mais necessária que tudo. E vi o mundo evoluir tanto, o conhecimento crescendo e os mortais transcenderem as barreiras celestes e voarem para cantos distantes da criação. Começou, é claro, quando aprenderam a olhar as estrelas, como tudo sempre começa.

Tudo, antes, era ideal e perfeito e branco. A vida não existia, a morte também não, e tudo era organizado. Bem sei que o universo não foi sempre assim, meu amor, antes era caos. Ouvi e li as histórias, e elas me impressionaram tanto que eu ansiei por mais. E foi essa ânsia minha maldição. A curiosidade, o querer mais, e mais, e mais.

Agora, que me pego pensando nisso, acho que valeu a pena.

E nem todo o fogo do tártaro ou toda a ira presente nos raios ou nas águas que banham as terras me fariam desistir do mundo que contemplo hoje. É claro que sempre acontecem coisas ruins. As doenças, a fome, a sede... mas vi o mundo aprender a engatinhar, e então, começar a brincar e crescer. E levantar questões relevantes sobre a própria existência, e sobre o que os cerca, e sobre o que vêm depois. Eu ainda me pergunto isso! O que vem depois? Não sei... isso foi tirado de mim.

Vejo nas pessoas a centelha divina que me queimou e me aprisionou aqui. Vejo o fogo ardendo no coração de cada um, o potencial incandescente, a capacidade de surpreender que não vejo em nosso povo. Somos imutáveis.

Isso significa vida eterna. Do pó viemos e ao pó retornaremos. Passamos pelos tempos mais sombrios da criação e iremos em frente até que a própria realidade e o tempo se colapsem numa nuvem e tudo se reorganize e comece de novo. E então, eu estarei contigo, no fim.

Mas isso também significa nada de novo. E, dentre tamanha imensidão, por que manter tudo imutável?

Sorrio sempre que me lembro da expressão “pensar fora da caixa”. Não sei exatamente onde ou quando surgiu, se foi na Europa ou nas Américas, ou na Ásia ou na África, ou na Velha Pátria, mas sei que a inspirei. Foi o meu ato de coragem e rebeldia.

Meu Pai, aliás, me visita as vezes. Acho que, no fundo, ele gosta de mim. Afinal, Prometeu teve um destino tão pior! Eu, fico apenas presa na caixa... e, às vezes, posso observar o mundo ao qual dei início quando a abri. Ali, o necessário para dar um início à vida. Vi dentro da caixa coisas terríveis, que poderiam gerar carnificinas e guerras. Mas, é claro, enxerguei uma criança que, motivada pela morte da mãe, criaria um aparelho estranho que detectaria tumores e salvaria milhões de vidas. Vi diferentes culturas nascendo do mesmo lugar. Do mesmo pó.

Abdiquei da vida ao seu lado, querido Narciso, mas dei a vida ao mundo. E estarei aqui, te esperando, quando este acabar.

Zeus, talvez, me perdoe antes. Atena enxergou em meu ato bons frutos, enxergou sabedoria, e compaixão. Apolo e Artêmis fazem o sol e a lua, os dias e as noites, e mostram as estrelas. Poseidon governa os mares, e meu Pai, os céus.

E eu, é claro, cuido da curiosidade, dos anseios e da esperança.

A esperança nunca me abandonou. E eu nunca a abandonei.

Por isso, amor, acendo a ti uma vela. Para guiar-te de volta aos meus braços.

Tema: Criaturas Fantásticas

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 24/11/2015
Reeditado em 24/11/2015
Código do texto: T5458931
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.