Sonhos Roubados DTRL 25

— Toma, Vitor. É só colocar no nariz bem devagar. Ai você espirra. Assim, ó... Atchim!

— Vamos jogar pedrinhas depois?

— Mas falta uma pedrinha. Será que dá?

— Lógico que sim. É só a gente pular a parte da montanha.

— Tá bom.

Em cárcere, Vitor e Vitória cochichavam na madrugada. A pequena cela em que estavam não lhes davam muitas oportunidades. Era uma noite quente do mês de abril e o barracão de telhas de zinco ainda guardava o calor do dia. O pequeno Vitor suava. Ela só aguardava a manhã chegar. De longe, via-se um fogão. Ao lado, pedaços de gente. Ao longe, maníacos rindo. Distantes nas montanhas, professores, bombeiros e familiares, formavam uma constelação de lanternas aflitas.

**

"Crianças, essa excursão terá que ter muita atenção em tudo. Teremos todos os períodos participando dessa vez. Esse papel é para a autorização dos seus responsáveis. Todos devem trazer na próxima aula. Lembrando que por ser uma trilha, todos devem ir de shorts e tênis. Qualquer outra roupa não será permitida."

O sinal bate.

"Todos estão liberados, não esque... Crianças..."

— Olha, Vitor — disse Vitória apertando os passos -, é melhor você ficar. não vou cuidar de nenhuma criancinha.

— Vitória — disse Vitor apressando os passos próximo da irmã —, você sabe muito bem se eu não for, a mãe não vai deixar você ir.

Com ar de raiva por saber que aquilo era verdade, ela colocou os

fones de ouvido e sintonizou uma música em seu celular ignorando-o. Ele, com um sorriso no rosto, fazia planos mentalmente.

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— Trilhas nas montanhas? Vitória, você só vai se seu irmão for — disse a mãe pegando o papel da autorização.

— Mas, mãe...

— Mas nada. Quer ir ou não?

Com reprovação e repulsa, Vitória pega as duas autorizações assinadas. Com um risinho de canto de boca, Vitor provocava a irmã.

Os ônibus sairiam as seis e meia da manhã, porém, o máximo que Vitor conseguiu dormir aquela noite foi apenas quarenta, intercalados, minutos. Bem antes que o sol, ele irradiava alegria e irritava sua irmã, com quem dividia o mesmo beliche.

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" Mamãe, é meu irmãozinho nessa barrigona?"

" É sim, Vitória. Seu irmãozinho."

" E por que você comeu ele?"

" Ah, risos. Eu não comi. Deus que colocou ele aqui dentro. Mas já já ele sai."

" Vou poder segurar ele no colo?"

" Mas é claro. Você vai ser minha babá número um. Vou precisar muito de você."

“ Eu vou ser mamãe um dia também? Vai demorar?”

“ Ah, só quando você estiver grandona. Ainda vai demorar bastante. É seu sonho ser mãe?”

“ É sim, meu sonho. Vou ser a melhor mãe do mundo. Como você.”

Vitória tinha sete anos quando seu irmão nasceu. Quando pequena era loira de olhos bem azuis, mas no começo da adolescência, para sua revolta, ambos tornaram-se escuros. Já Vitor ganhou olhos claros depois. Franzino e raquítico para seus 10 anos, sempre dependeu da irmã contra o Bullying no colégio. Seu maior sonho era ser jogador de futebol.

**

" Seu idiota, olha o que você fez?!" disse o irmão mais velho.

" Mas o que eu fiz?" respondeu o irmão mais novo.

" Você rasgou a bile. Agora a carne não presta, seu idiota."

" Mas não da pra limpar?"

" Claro que não. Quando iremos conseguir outra criança antes do almoço de amanhã?"

" A mãe vai te matar."

" O que aconteceu?" perguntou a irmã vindo do quarto ao lado.

" Esse idiota estourou a bile dentro do corpo todo. Não sabe tirar um fígado sem fazer besteira." Bradou o irmão mais velho apontando a enorme faca para o pequeno.

" Me desculpa, irmã. Agora a mãe vai me bater."

" Que nada. Deixa esse idiota aí. Ela não vai te bater, não. Vamos conseguir uma outra criança. Ninguém vai perceber." disse a irmã saindo abraçada com o irmão mais novo.

**

“ Rápido, vamos. Dá essa fita.”

Vitor se debate ao ver sua irmã caída entre as árvores. Tem mãos e pernas amarradas. Uma paulada na cabeça deixou os dois desacordados.

“Aquele idiota vai ver. Ao invés de uma, temos duas." disse o irmão mais novo lambendo os dedos sujos de sangue.

“Olha, vamos logo. Coloquem eles no carrinho. Tem gente por perto. Devem estar procurando eles.” disse a irmã apontando para a floresta.

Os corpos pulam dentro do pequeno carrinho de mão mata a dentro. Em alta velocidade ele segue para a cabana dentro da floresta. A irmã vem logo atras.

**

(...)

— Paulo.

— Aqui.

— Rodrigo.

— Aqui.

— Rogério.

— Aqui.

— Vitor...

— Vitor?

— Professora, nem o Vitor nem a Vitória estão aqui. Ninguém os vê desde que fomos descer a trilha. Tá todo mundo comentando —disseram alguns alunos.

190, polícia militar, cabo Sérgio....

**

— Me desculpe a nojeira da cela, tá? - disse o irmão mais novo. — Ah, quase esqueci. Nós vamos comer vocês amanhã. Na verdade vamos comer ele, ai no outro dia, você - completou.

Ambos ainda estavam nauseados devido a pancada na cabeça. Cambaleante, ela levanta-se assustada completamente suja de sangue velho. O cheiro era insuportável. O menino a sua frente ria. Seus dentes eram de um amarelo forte e, mesmo a alguns metros de distância, dava para sentir o cheiro de coisa podre exalando de sua boca e de todo aquele lugar. A poucos metros da cela, havia uma espécie de maca hospitalar com um corpo cortado ao meio e alguns braços e pernas no chão, algumas bacias vermelhas, um fogão antigo de quatro bocas e uma velha lareira com duas ou três madeiras. Dois pequenos lampiões iluminavam a pequena cabana. Sombras, e cochichos, de outras pessoas passavam, por vezes, entre as chamas. Vitória já havia vomitado três vezes antes de desmaiar novamente.

**

—Não, Vitor. Você errou. Não se lembra de como se joga pedrinha? — indagou Vitória olhando, sem esperança, por alguma brecha naquela cela.

— Fala de novo. A última vez. Eu estou com medo, irmã. Quero a mãe — disse Vitor cabisbaixo.

— Não fique com medo. Logo, logo vamos sair daqui — Olha, eu não estou com medo — disse engolindo lágrimas e fazendo caretas.

— Você vai ser jogador de futebol, lembra? Não é seu sonho? — perguntou.

— É sim. Vou ser. Vou fazer muitos gols pra você. Qual seu sonho, irmã? — perguntou Vitor com os olhos lacrimejantes.

“ Sair daqui.” pensou Vitória.

**

1- São cinco pedrinhas. Se joga uma pro alto e, enquanto ela cai, deve-se arrastar nas outras e pegá-la antes de cair.

2- Quatro pedras devem ser arrastadas, mas só se pode jogar cinco vezes a pedra ao alto. Então, só uma chance de errar.

3- São quatro movimentos: 1- Céu aberto: nesse pode jogar a pedra pra onde quiser. 2- Casinha: nesse deve-se acertar todas juntinhas. 3- Poço: Com a outra mão, deve-se fazer um pequeno círculo com os dedos jogando-as la dentro. 4- Montanha: nesse deve-se colocar a mão em forma de 'concha', e as pedras devem ficar dentro dela. No final, a quinta pedra antes de cair deve entrar também. Em todos movimentos, se joga uma pedra ao alto. Todos.

— Vitória, to com medo. Quero minha mãe - disse Vitor deixando as pedrinhas caírem.

Os lampiões apagaram-se. Murmurinhos vinham de alguma parte da cabana. O som dos grilhos anunciavam a noite. O cheiro de coisa podre aumentava. Ela sabia que aqueles canibais a comeriam. Mas antes, era seu pequeno irmão. Pela primeira vez chorava. De tempos em tempos, colocava um pedaço de madeira no nariz do irmão.

Lembou-se de uma história em quadrinhos:

“ Com grandes poderes, se vêm grandes responsabilidades.” Não se pode salvar tudo, um sacrifício para salvar uma vida é o maior sonho vivido de forma concreta. O maior ato de heroísmo. O pauzinho em sua mão, era sua capa de heroína.

A noite cai. O medo chega. O sono não vem.

**

—Ei, você, pode vim aqui - berrava o irmão mais velho batendo nas grades da cela com uma panela suja de sangue.

Pelas frestas da cabana, raios de sol invadiam as madeiras mal projetadas. Já era manhã. Vitória, que não dormira a noite inteira, estava abraçada com o irmão. Como um animal que protege sua cria, foi para o canto da cela com ele no colo.

—Vamos, não adianta resistir - disse entrando na cela com uma faca em mãos -, passa ele pra cá.

A irmã começava a ajeitar as panelas. O irmão mais novo passava um pano na maca e tirava os pedaços de carne podre jogando-as para os gatos que estavam rodeando a cela.

— Mas vocês vão comer uma criança doente? — perguntou Vitória ofegante.

— Doente? O que ele tem? - perguntou o irmão mais velho dando um passo a frente.

— Ele está gripado. Olha — enxugou o nariz do irmão com sua camisa suja —, ele ficou espirrando a noite inteira.

Os outros juntaram-se dentro da cela. O mais novo segurava um lampião perto deles. Vitor dormia, seu nariz estava vermelho e escorria água com raios de sangue.

—Viram? Viram? Viram? - Vitória berrava com certa dose de loucura.

— Ah, que droga! Dá azar comer doente. Mas não tem problema, comemos assim mesmo - disse o irmão mais velho batendo o pé no chão.

Vitória faz xixi nas calças.

— Não vou arriscar. Sou uma cozinheira de mão cheia. Não quero nada meia boca. Mas e agora? Carne de mulher não combina com minha macarronada —disse a irmã do meio.

— Não dá pra fazer outra comida que combine com a carne dela? —indagou o irmão mais novo para a irmã.

— É o jeito. A mãe não vai gostar, mas fazer o quê? Falta de sorte — retrucou.

Algumas horas depois, a pequena chaminé despejava fumaça no ar.

Vitor, de olhos abertos e sem piscar, dormia.

**

Vitória, deitada na maca com mãos e pés amarradas, inclinou sua cabeça sorrindo para Vitor. Sentado e com os joelhos encostados em seu peito, ele estava em choque. Sangue jorrava de cima da maca. Aos poucos, ela fechou os olhos para sempre. Os gatos lambiam-se uns aos outros com o banho de sangue no chão.

Minutos depois, a panela de pressão gritava. Água borbulhava na panela ao lado. Sorrisos insanos contrastavam com a atonicidade de Vitor. A pequena lareira fumaçava.

" Guiados pela fumaça da chaminé, uma pequena multidão seguia em direção da cabana."

" Um espancamento estava prestes a começar."

**

— Um, dois, três, quatro,cinco, Papai. São cinco — disse Vitória contando as pedrinhas grudadas no túmulo da tia.

— Isso, filha. Olha lá a vovó, vai com ela. Eu já estou indo embora. Vou dar tchau para a titia — disse Vitor colocando a pequena no chão.

A menina sai correndo para os braços da avó

Como todo dia dois de novembro, uma fina garoa começa a rasgar o céu cinza.

Com os olhos cheios e aos soluços, Vitor se despede do túmulo rodeado de flores abrindo seu guarda chuva negro.

— Vitória, eu te amo, minha irmã. Para sempre vou te amar.

Lágrimas de saudades nunca se misturam com a água da chuva. Na roupa, no guarda chuva, no rosto, só tinham gotas de água salgada.

**

Tema: Comida.

Pode ser algo bobo ou trivial, mas gostaria de dizer que o DTRL é responsável por eu continuar escrevendo. E quero enaltecer essa grande família, e como toda família adoro vocês! Nunca me afastarei do calor dessa fogueira.

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 25/11/2015
Reeditado em 30/11/2015
Código do texto: T5460862
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