A MALDIÇÃO DA TERCEIRA PONTE PARTE III
 
Eurico Gasparini, o aposentado em voltas com um tormento, estava nervoso mexendo nas gavetas do móvel da copa de sua casa, cujo projeto arquitetônico era de sua autoria, localizada em Bento Ribeiro, bairro de Vitória-ES.
 
Não conseguia achar seu antidepressivo. Achava-se de tudo nessas gavetas: vitaminas, Buscopan, analgésicos, antibióticos, mas aquela caixa de tarja preta, não conseguia achar mais uma vez. Tinha se perdido, misteriosamente, de novo.

Desde aquele maldito capotamento, sua vida transformara-se num inferno. Coisas sumiam e visões apareciam. Bastava ficar sozinho que a imagem dos nove operários sempre vinha lhe atormentar.

 
Procurou por notícias nos jornais locais sobre seu capo-tamento no dia seguinte ao fato. Nem em A Gazeta e nem em A Tribuna, ou qualquer outro jornal impresso. Nem nas tevês e nem nas rádios, nada. Parecia imperar uma lei cósmica de silêncio sobre o acontecido.
 
Foi na concessionária onde comprara seu Porsche, nada registrado. Parecia que um hacker invadira o sistema da empresa. Nada constava que ele tinha comprado seu carro ali. Conhecia pessoas da RodoSol, empresa que administrava a popular Terceira Ponte, e nada constava. Nenhuma imagem dele passando pelo pedágio.
 
Só um fato chamou atenção. Quando citou a hora e os minutos que tinha comprado seu tíquete, o técnico em informática da empresa fez uma busca. O tíquete de número 333.333.332 foi sucedido pelo número 333.333.334. O intervalo de tempo entre esses tíquetes era justamente o momento em que ele se lembrara de ter passado pela guarita da moça sorridente. Não havia registro nenhum do tíquete 333.333.333.
 
Nenhuma notícia, nenhuma imagem, apenas um número de tíquete de pedágio não registrado. 333.333.333. O que esse número queria dizer? Sim, uma explicação, lógica? Nada estava sendo lógico nessa história. Mas combinante. Eram nove números três. Lembrara-se do velocímetro do seu carro durante o capotamento, trezentos e trinta e três.
 
O três só poderia ser de Terceira Ponte. E nove? Não resta dúvida. Nove é a quantidade de operários que aparecem na imagem.

Assim que chegou a essas conclusões, Eurico Gasparini teve uma forte dor de cabeça. Parecia existir algo incontrolável se mexendo dentro de seu crânio. Seu corpo sucumbiu, começou a rolar pelo chão feito um cão sarnento se coçando. A voz, o mantra amaldiçoado, Salve a gente, doutor. Salva nós dez. Salve a gente, doutor, martelando com força. O corpo do engenheiro foi suspenso e jogado sobre uma cadeira. Uma forte luz refletiu na parede da copa. Começou a ver perfeitamente a imagem dos nove operários no fundo da caixa onde foi concretado o trigésimo primeiro pilar da ponte. O pilar central, aquele que fora construído mais forte que os demais. Por um atraso na tarefa, os nove operários ainda não tinham pegado o elevador para virem até a superfície. Foi um erro no cálculo do tempo. As betoneiras cheias de concreto não podiam esperar mais. O prejuízo para a empresa seria muito grande e as indenizações às famílias, se por ventura reclamassem, seriam irrisórias. Então, em nome do lucro da firma, compensava começar a concretagem do pilar, soterrando sobre toneladas de cimento e ferragem, nove desconhecidos operários, com menos de três meses de emprego.

 
Eurico Gasparini nem pestanejou. Ordenou que o con-creto fosse derramado conforme o programado. — Eles é que se virem nos céus. — Pensou.
 
Mesmo tendo que subornar a imprensa e os advogados do sindicato, além de pagar míseras indenizações para as famílias dos operários, a empresa elogiou a atitude do engenheiro e sua lealdade e comprometimento com a rentabilidade da firma.
 
— Então é isso. — Berrou o engenheiro quando o fato veio à tona em sua consciência.
 
Como que uma câmera estivesse filmando em Long Shot viesse para a Medium Shot. A imagem de sempre como que projetada na parede da copa estava diante do homem cada vez mais atormentado. Parecia a encenação de um júri em que Eurico faria o papel de réu. Então o operário mulato do centro, apontou o dedo acusativo para o engenheiro e disse:
 
— Você está condenado a salvar nós dez, doutor. Você está condenado a salvar nós dez, doutor.
 
— Dez o caraí, vocês são nove inúteis operários da companhia que eu defendia.

— O senhor é o décimo, doutor. Sua alma, assim como nossos corpos, está soterrada debaixo de cimento e vergalhões, doutor. A sua alma precisa ser salva, doutor.
 
Eurico se levantou e quis agredir a imagem do operário acusador. Assim que se aproximou, levou um direto no lado esquerdo do rosto, rodopiou e bateu com a cabeça na quina da mesa central da copa, vindo a cair desmaiado no chão.


SEGUE...
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 13/01/2016
Reeditado em 11/07/2020
Código do texto: T5510120
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