Somos todos aliens

- Como é que é!?

Cláudia ficou mesmo surpresa, o copo de refrigerante quase escapou das mãos.

- Repete!

A morena respondeu:

- É isso mesmo que você ouviu! Ele disse que era literalmente como um camaleão, comparou o David a um “reptiliano”.

Contrariando sua educação em psicologia Cláudia bateu três vezes na madeira da mesa. Constrangida a amiga continuou:

- Eu sempre soube que ele não batia bem mas ele me trata com tanto carinho.

Então o guri passou correndo pela sala, era uma criança linda. A morena continuou apontando o menino.

- E é o melhor pai do mundo para o Jú.

O menino foi até a visita e passou a mão pequena em seu braço.

- Fica calma tia, está tudo bem!

E voltou a correr.

Cláudia pediu um pouco mais de refrigerante, começou a coordenar seu direcionamento.

- Me diga quando ele começou a piorar, quando você acha que tudo começou a piorar?

A morena respirou fundo, os olhos buscaram o passado.

- Ele sempre teve essa coisa sabe? Quando o conheci na faculdade o pessoal sabia que ele era esperto mas meio que tinham receio dele...

- Receio ou medo?

A outra pensou, continuou:

- Medo. Ele tem essa carga, você sabe das histórias dele, ele parece tratar suas loucuras na escrita e na sociopatia. Sei que você é a estudiosa aqui mas é o que eu sinto, sinto que ele não consegue se encaixar e aí delira, com esses delírios tenta justificar sua exclusão. E vez ou outra, entra em um filme, em um livro, em uma música. E daí muda, quando ele leu aquele livro do árabe doido entrou de cabeça naquele mundo. Chegou a tatuar no braço uma entidade daquela porra! Quando era pequeno ficou perdidamente apaixonado pelo Histórias Extraordinárias, olhe ele agora mais velho com tatuagens sobre o Edgar! As coisas marcam tanto a mente dele que ele as tem de marcar no corpo. E não é só isso, ele emula os estilos dos escritores e escritoras que admira e faz suas criações com convites a eles. Eu te disse quando ele leu aquela maldita peça? Após o segundo ato ele ficou falando dias sobre o livro. Parece-me que quando algo escrito é tão estranho quanto ele o faz amar a obra imediatamente.

Cláudia faz a pausa:

- Um reconhecimento familiar?

A morena continua:

- Sim. Uma vez ele me disse apontando pras suas estantes que eles o entendiam. Até que ele tentou se encaixar, buscou outros autores pra compartilhar ideias. Mas não deu certo, ele parecia muito estranho até pra eles. Daí anos depois nosso filho nasceu e ele se uniu a outros amigos tão doentes quanto ele.

- Vai falar sobre a Irmandade Negra agora?

- Não Cláudia, o nome é A Confraria Negra.

Cláudia pede para ela continuar com as mãos.

- Tudo bem. Uma vez eu li que a loucura pode ser alimentada, nada mais que a verdade. Ele conheceu o Brad anos atrás e tiveram uma simpatia instantânea. Se tratam como irmãos, mesmo distantes, num final de ano enquanto estávamos todos chapados o Brad disse que queria ser filho dele. Eles são loucos e tem um sentimento fraternal verdadeiro.

A morena sorri.

- A namorada do Brad é um achado, ela e o Brad se completam. Ela o entende e dá ração para a loucura dele. Ela também é louca; Cláudia, eu também sou louca?

Cláudia sorri:

- Todo mundo tem um grau ou mais de insanidade, como dizem “de perto ninguém é normal”. Prossiga.

- Daí chegou o Joey e a receita ficou pronta. Joey é um músico que cria, produz, canta e grava seus próprios videoclipes. O cara ganhou de imediato o Brad e quando meu marido o conheceu o ganhou também. Fizeram um curta de terror e se encontraram como irmãos. Então fodeu, ele escreve coisas mórbidas, encontrou um que faz filmes mórbidos e um músico mórbido. Meu marido os respeita como se fossem do seu sangue, até as tatuagens são estranhas como as dele. Já viu a página deles no face? Tem a porra do símbolo amarelo da peça; eles se alimentam! São psicopatas que se gostam e tenho medo que seus novos passos os levem para a cadeia, afinal, os três são pais.

Cláudia interrompe notando o nervosismo da amiga:

- Diga sobre o discurso dele a respeito do Ziggy.

A morena ajeitou os óculos no rosto branco:

- De vez em quando após o Jú dormir, acendemos um Charlie e ficamos conversando e assistindo tv, ou no escuro. Acontece que o David morreu e ficamos deprimidos, naquele dia passaram um especial com clipes dele. Aí ele começou “não haveria quase nada de relevante hoje na música não fosse ele”. Os clipes passavam e notei que ele estava transtornado. Começou a me dizer que o cantor sempre mudava quando percebia que o gosto musical, a cena, iria mudar. Ele disse que David mudava até fisicamente e olhando os muitos vídeos pareciam até pessoas diferentes. Evoluído, não sapiens, outra coisa que sentia a necessidade do público a querer ouvir algo novo e daí criava personas. Unia assim o teatro à música e mudava sua voz, seu jeito, seu olhar. Um camaleão literal. E daí ele chorou, disse que tínhamos um exemplar do elo perdido entre o sapiens e o próximo entre nós e não demos a devida atenção. Em resumo: para meu marido Bowie era um alien real que até se dava ao luxo de escrever sobre o espaço!

Claúdia soltou um sorriso involuntário. A morena tocou seu braço:

- Mas piora. Na data da morte do astro ele postou aquela foto icônica do cantor fazendo o sinal de silêncio, guardando um segredo. Ou seja, a teoria já estava montada na cabeça dele antes de falar comigo. Dias depois eu acordei com dor de cabeça de madrugada só para descobrir que ele não estava na cama. Eu o achei no quarto do Jú, no escuro.

- Ele estava...

A morena interpelou:

- Nada de ruim aparentemente, ele olhava fixamente para o menino e afagava sua cabeça sem me notar a princípio, o afago parecia uma tateação.

- Tateação?

- Sim, ele parecia medir a cabeça do Jú. De repente olhou pra mim e disse que já ia deitar. Foi assustador pra caralho! Na noite seguinte disse que leu matérias sobre a evolução humana. De olhos vidrados falou sobre bebês que nasciam pelo mundo com dedos a menos nos pés, sobre pessoas que vieram ao mundo sem o apêndice ou sem os dentes do siso no crescimento. Os seres humanos estavam evoluindo diante de nossos olhos, para ele era questão de tempo para sermos suplantados. O processo ficou mais agressivo a cerca de cem anos atrás. Isso explicaria alguns gênios reconhecidos e anomalias físicas.

- Fique calma, talvez ele só tenha assistido Arquivo X demais!

- Não Claúdia, deixe-me terminar. Para ele as aparições e raptos não fazem parte de uma trama extraplanetária. Para ele os elos perdidos entre o sapiens e algo superior não foram compreendidos e em algumas situações foram aniquilados. Já percebeu que em vários casos narrados os “seres” falam nossa língua? E tem a forma humanoide mesmo com várias peculiaridades? Talvez esse elo perdido tenha estado entre nós há muito mais tempo, os benéficos trazendo avanços para as artes e a nossa ciência. Os maléficos nos estudando como se fossemos neandertais, se entediam com facilidade e esquecem que fornecemos os genes para sua evolução. Nos testam, nos violam, nos sequestram, nos matam e gostam de brincar com nossos conceitos, de nos manipular com sua influência, com sua vontade. Deixam animais modificados pra nos causarem mal. São os piores entre nós e além, são evoluídos. Os “aliens” são descendentes diretos de nós. Meu marido media a cabeça do Jú pois acha que ele pertence aos benéficos.

- Como!?

- Disse que antes do Jú nascer teve um sonho de que a criança seria especial. Quando tentei parar dizendo que todo pai achava os filhos especiais ele me calou. Falou sobre a inteligência emocional elevada do menino. Disse que o Jú era extremamente adiantado para seus dois anos e é capaz de ler as pessoas melhor do que muitos adultos fazem. Me mostrou que o Jú tem o crânio um pouco maior que crianças de sua idade e possui um vocabulário afiado. Colocou o Jú no mesmo patamar do David, disse que ele se adaptaria sentindo as ondas dos momentos e que nossa função é protegê-lo durante seu crescimento.

A morena acende um cigarro e tenta se acalmar.

- E foi nessa mesma semana que encontrei duas armas na casa. Quando o questionei ele disse que seriam por precaução apenas. Pra ele outras crianças assim estavam surgindo e em breve seriam em grande número. Estou com medo, ele pensa que nosso filho é um ser superior como naquele conto do Salinger, Teddy.

- Ele foi agressivo com vocês em algum momento?

- Não Cláudia, mas me dá dor de cabeça pensar quando ele encontrar com alguém que queira ferir o Jú.

Ficaram em silêncio. Momentos depois o menino entrou correndo pela casa, parou diante da mãe e segurou suas mãos.

- Mamãe tá com dor. Toma o remédio mamãe!

Se dirigiu para a geladeira e apontou o topo. Atônita, Cláudia viu a amiga levantar de imediato e pegar analgésicos em cima da geladeira.

- É assim o tempo todo, as vezes ele sabe onde estão coisas que nem lembramos.

Depois de ver a mãe tomando o remédio saiu para brincar.

Ponderando Cláudia continuou:

- Onde o pai está agora?

A morena expirou.

- Está com a Confraria. Provavelmente confabulando o que farão a seguir.

Então olhou pela janela.

- Esses dias o Jú me falou antes de ir pra escolinha que vai ser médico.

As lágrimas desceram.

- Vai ser o melhor doutor nesta bosta de mundo!

O portão foi aberto. O marido chegou branco como cera, saudou Cláudia e sentou numa cadeira. Quando o menino entrou na sala o semblante ficou radiante.

- Papai faz um foguete por favor?

O pai abriu um grande sorriso:

- Vamos fazer o melhor foguete do mundo para você passear!

E foi procurar papelão, tábuas e tranqueiras no quintal. As duas mulheres ficaram na cozinha tomando café. E permitiram-se também sorrir enquanto pai e filho brincavam no quintal.

O belo loiro avermelhado entrou sujo na casa e Cláudia não resistiu, o pegou no colo nervosamente.

- Está tudo bem tia, fica calma.

O coração começou a desacelerar. E alisou o cabelinho da criança.

- Tia você poderia morar mais perto daqui né?

Pensou que poderia mesmo, ele era tão adorável.

Quando entrou na cozinha o pai riu vendo a cena. A mãe esbugalhou os olhos.

Espantada com os olhares Cláudia percebeu.

Media o pequeno crânio com os dedos.

Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 31/01/2016
Código do texto: T5529315
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