Terminar o caminho

Esse é o momento em que travo.

Meu corpo executa os movimentos mecânicos, repetitivos, dolorosos.

Andressa dessa vez você se fodeu!

Tranca, destranca, dois tranca, destranca, três tranca, destranca...

Quando pequena eu era muito impressionável, assistia o jornal regional e ficava com aquelas histórias escabrosas na cabeça.

Quatro tranca, destranca, cinco tranca, destranca, seis tranca, destranca...

Um dia fiquei afetada pela história de um invasor que tinha predileção por crianças, estuprava e matava impune. Naquele momento fui checar a porta da frente, tinha de me certificar que estava segura, tinha que ter controle em algo na minha vida.

Sete tranca, destranca, oito tranca, destranca, nove tranca, destranca.

Me encontraram de manhã ainda no movimento continuo. E isso ficou maior, uma tortura grandiosa, depois de um tempo para abrir portas eu precisava abrir, trancar, abrir, trancar.

Dez tranca, destranca, onze tranca, destranca.

É como um maldito teleprompter que dita o que você deve fazer, se deve amarrar ou desamarrar cadarços, subir escadas contando degraus, pular as divisões do piso. A sensação é de uma conclusão adiada, um caminho que você nunca termina. E dói, porra, dói como o inferno.

Doze tranca, destranca, treze tranca, destranca.

Nas intermináveis salas de espera nos consultórios de psiquiatras conhecia outros maluquetes. Cássio gostava de queimar coisas, a Malú adorava dar até sangrar, o Ni matava animais e não gostava de gente.

Porque eu fiquei com a doideira do trabalho forçado?

Quatorze tranca, destranca, não consigo parar, quinze tranca, destranca...

Minha cabeça me põe em trabalho forçado, tem ideia da fortuna que gasto em sabonetes? E na minha vista o teleprompter “você já viu se as janelas estão fechadas”? E com a pele vermelha das mãos vou ver as janelas.

Dezesseis tranca, destranca, os dedos doem, dezessete tranca, destranca...

E então vi os namorados aparecerem e irem embora. Numa ocasião não consegui sair do banheiro da boate, gritei o nome do ex até que ele entrasse no banheiro feminino. Então ele perguntou “a porta estava aberta, porque não saiu”? Sem jeito respondi “não tem papel toalha aqui”.

Como ele ia entender que eu precisava daquilo para abrir a porta?

Dezoito tranca, destranca, está chegando o vinte e talvez eu pare, dezenove tranca, destranca.

Uma mente acorrentada que não consegue terminar o caminho. Uma ânsia de conferir se tudo está certo, cuidado quando você perceber seu perfeccionismo aumentando.

Minha loucura pode estar chegando pra você.

Vinte tranca, destranca, o calor aumenta e eu não paro, vinte e um tranca, destranca...

Os doutores davam mil causas, o divórcio traumático dos meus pais talvez. Minha mãe se dava tão bem com meu pai, o médico deu a entender que eu não concebia o fato de ela hoje odiá-lo.

Vinte e dois tranca, destranca, começo a suar, vinte e três tranca e destranca...

Hoje, com vinte e três anos passo meia hora antes de sair da cama todos os dias, passo meia hora com meus “rituais”. E levo mais meia hora com o cabelo, ô trem difícil o cabelo, são tantos fios.

Ou seja, começo o dia cansada.

Vinte e quatro tranca, destranca, o cheiro invade a sala e me faz lacrimejar, vinte e cinco tranca, destranca...

Eu lembro de Georgie Porgie, da canção e aquela história do Dahl. Pessoas alteradas veem o mundo alterado, uma vez eu tentei parar de verdade.

E então o cruel teleprompter apareceu “e se sua mãe adoecer ou morrer”? Ridículo não? Entre abotoar e desabotoar a blusa eu parei!

Minha mãe foi parar no hospital naquela noite.

Vinte e seis tranca, ó Deus a fumaça inunda o lugar... destranca.

Procurei a reposta em todo lugar, após o assalto que minha mãe sofreu os acessos pioraram de volume e intensidade.

Diziam que podia ser decorrente de traumas de infância, os religiosos acreditam que se trata de uma possessão.

Vinte e sete, começo a tossir, tranca, destranca...

O tempo passa diferente para os desequilibrados, ele pode se arrastar moribundo fazendo o sofrer mais intenso ou em um flash em que não conseguimos controlar nossos impulsos. Se fosse um trauma seria a pessoa mais ferrada do mundo, se fosse uma possessão o próprio demônio teria feito uma casa em mim.

Vinte e oito, quanto mais será que é necessário para terminar o caminho? Tranca, destranca.

Se o inferno for realmente a repetição eu vivo nele. Eu sigo o flagelo desde o momento que me levanto até as contadas arrumadas de posição para dormir.

Dói fazer e dói ainda mais não fazer.

Vinte e nove tranca.

Trancada na cabeça a memória das discussões dos dois. O que eles falavam sobre mim, o que falavam sobre a Andressa.

Trancado segredo da minha mãe, um amigo de família me contou anos depois do “assalto”,meu pai que tinha espancado ela.

Era um trauma inexpugnável, sabendo disso não podia inquirir minha mãe, com o derrame ela não conseguia falar ou se mexer direito.

Destranca.

A vida.

Repleta de insinuações e um longo plano de fundo invisível. O tempo come tudo, cruel.

O controle, preciso de controle. Me apressei nos rituais para encontrar meu pai, a porta aberta me deu calafrios.

Terminar.

O.

Caminho.

Que velho deixaria a porta da casa aberta? O pior estava dentro, não fora. Tranquei, destranquei, tranquei a porta. Na poltrona do quarto, estirado de tanto beber.

Trinta.

Ou mais fotos espalhadas em seu colo, eram crianças, pequenas crianças, indefesas contra o homem nu que eu reconhecia.

Com cadeados tranquei, destranquei, tranquei as janelas, derrubei o resto da bebida nele, no chão e então acendi o isqueiro. Tranquei, destranquei, tranquei a porta do quarto.

Fatalmente uma foto no chão me mostrou meu Genêsis, o demônio familiar que possuía uma criança familiar.

A pequena não alcançava a tranca do quarto e a porta era aberta noite após noite.

A fatídica porta da frente e eu não conseguia sair, o choque tomou o controle e fui controlada pelo transtorno.

O passado queimava atrás de mim e eu fiquei atada a ele. Minha roupa começou a queimar.

Arrombaram a porta, pedi que trancassem enquanto me algemavam.

Me confinaram numa pequena cela, eu me sento em um quadrado acolchoado sem ultrapassar os limites das linhas, são quarenta e oito placas e oito barras de metal na janela alta. Antes de dormir conto tudo de novo, meu demônio não pode entrar aqui...

Mas a prisão maior está em cima do meu pescoço.

Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 07/02/2016
Código do texto: T5536713
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