MALDITO DESAFIO - DTRL 26 -duplas

Léo, quando você me convenceu a aceitar este maldito desafio, não pensava que ele iria destruir nossas vidas. Em nome da nossa história deixei que você me guiasse às cegas rumo ao desconhecido como outrora fazíamos. A vida parece mesmo cíclica, tudo gira e sempre termina como antes.

Você ditou as regras, relutante acatei. Sempre fui mais temeroso, jamais pude igualar-me a você em seu ímpeto e coragem. Quando amedrontado estou só, ouço sua voz a me acalentar, os desenhos nas paredes mofadas do meu quarto na penumbra da noite assemelham-se a seu doce sorriso, não nego que mesmo hoje, após anos as lágrimas ainda precedem meu sono.

Seus objetivos foram nobres. Minha covardia não seria tão facilmente suprimida. Se pudesse exorcizar agora meus demônios, com certeza, juntos seriamos novamente felizes.

Por que te dei ouvidos? Jamais poderei explicar quanta dor meu coração experimentou. Matar pela primeira vez não é fácil, decidir o momento certo é apenas para aqueles que tem o coração duro. Sempre pensamos que tudo esta planejado, ai o imponderado acontece. O medo de ser descoberto nos acompanha mesmo depois do fato esquecido, você passa os dias esperando um delator invadir sua casa e lhe apontar o dedo.

Meus olhos turvos de pranto me levaram a pessoa escolhida. De imediato você aprovou. Alguns dias bastaram para que soubéssemos como agir. Sua rotina era simples, acordava por volta das cinco e exatamente as sete estava na creche. Era instrutora do maternal, senhora muito simpática cabelos curtos e presos, um tanto grisalhos apesar das luzes. Tratava a todos com muito carinho. Solicita, atenciosa não havia mais adjetivos a ser-lhe concedida , quando jovem

provavelmente teve muitos pretendentes, agora avançava sobre os cinquenta e seis, foi casada por um tempo, mas não vingou. Morava sozinha numa casa antiga em uma rua tranquila, produto da partilha de bens, era muito bem quista por toda a vizinhança. Após a labuta não se expunha. Janta, banho, novela e depois o repouso para que no dia seguinte a roda da vida girasse no mesmo ritmo.

Seria perfeito encontrá-la em casa. Cheguei bem cedo, entrei pelos fundos, foi fácil forçar uma das velhas janelas, andei pelo imóvel guiado pelo instinto, nunca havia antes estado como invasor num lugar desconhecido, minha alma se encontrava vazia, parecia flutuar acima do solo, às vezes tinha impressão que as paredes eram translucidas e por elas poderia me mover. Cozinha, banheiro, sala, deu tempo até de lanchar, acredita.

Trêmulo, quase que desisti. Sorte que você não me abandonou no momento mais importante. Você nunca me abandonaria, não é? Senti o afago de sua mão no meu ombro, o que me deu forças para continuar.

No quarto seria realizado nosso encontro, como um amante viril investi contra o aposento. Não resisti, sabe como sou fascinado por closet, tinha que averiguar. As peças eram de muito bom gosto, me deslumbrei com um par de botas de cano longo marrom e detalhes prateados, um sonho, tamanho 37, pena. Nos cabides, varias lingeries extremamente lindas, sedas e principalmente cetim que eu adoro, poderia ficar ali por horas, tinha tempo só não poderia denunciar minha presença.

Meia hora antes dela chegar estava tudo em ordem, nada indicava uma possível invasão. Esgueirei-me como um verme para baixo da cama permanecendo imóvel, meu coração pedia que desistisse, mas já era tarde. A espera a cada instante tornava-se mais angustiante, na escuridão apenas o brilho dos seus olhos me encorajavam.

Finalmente dormiu. Deslizei para fora do esconderijo. A luz da rua iluminava o quarto através do vidro da janela. Não sabia o que fazer, você não me preparou para isso. Minhas mãos seriam minhas armas. Poderia estrangulá-la a qualquer instante. Fraquejei. No criado, ao lado da cama um enfeite de origem indiana, uma boneca com vários braços, que mais tarde descobri tratar-se da Deusa Durga, seria a arma perfeita para um momento não planejado.

Foi uma pancada seca. O som do choque misturou-se ao de um gemido trôpego, apenas um sussurro e nem mais um movimento.

Com a luz acesa certifiquei-me de que ela ainda estava viva. Um filete de sangue escoria de sua têmpora manchando o travesseiro. Estava linda numa camisolinha amarela, me despi livrando-a também daquela preciosidade. O suave toque do tecido me encheu de volúpia, tinha que experimentar. Confesso, caiu melhor em mim. E pelo teu olhar, tenho certeza que também gostou.

Queria brincar um pouco, a noite apenas começava. Roubei-lhe um beijo.

Foram poucos segundos em que nossos lábios se tocaram que pareceram dias. Cenas de um mórbido passado reverberaram em minha mente.

Por anos, aquela senhora respeitável, pudica acima de qualquer dúvida se divertia principalmente com meninos recém-chegados, os menores eram seus prediletos. Ao menos uma vez no dia saia para brincar numa salinha próxima ao refeitório. Com a porta trancada, baixava as calças do pobre dizendo que precisava limpar.

Sua boca gulosa envolvia o pequeno membro infantil com tanto desejo que às vezes o coitado deixava um pequeno grito de dor escapar. Enquanto sugava, sua mão embaixo da saia se acariciava até que sem calcinha o gozo escorria por entre as coxas. Saciada subornava o inocente com algum presentinho quase sempre delicioso. Quando deixava-o ir, consigo eles levavam um trauma e ela um troféu.

O desejo que a noite se alongasse passou no instante em que as revelações foram feitas. Só queria ver aquela criatura depravada definhar, desejava sentir o calor de seu sangue derramando. Com um tremor nas mãos, bastou subir sobre aquele corpo inerte, segurar seu pescoço até sentir os espasmos precedentes da morte. Nem mais um suspiro ou gemido, o mundo ficou mais leve aquela noite.

Antes de sair pude admirar seu corpo nu sobre o cetim vermelho, era um contraste absurdo entre a brancura de sua pele e o vermelho do leito, a pureza sobrepondo-se a paixão. Não sei se por raiva ou inveja, segurei novamente a deusa hindu desferindo vários golpes em sua face promiscua. Seus dentes voaram por sobre os lençóis. Como me pediu, meu amor, recolhi alguns como lembrança.

Os dias passaram-se lentos, pouco soube do caso, a cidade é grande e não costumo ler jornais, esperei sempre por um flagrante, minhas noites se tornaram ainda mais insones.

A segunda morte serve apenas para provar a insignificância do ser humano, ela não traz medo. Você costumava dizer enquanto divagávamos após o sexo. Deitado em seu peito, tendo meus cabelos acariciados por suas mãos firme, você falava como transformaríamos o mundo, como o deixaríamos mais seguro e limpo. Sua voz me confortava e teu discurso me dava forças. Forças para fazer o que precisava ser feito. A qualquer custo.

No clube, mais propriamente na piscina era onde me sentia bem. Numa tarde de sol pude reparar no salva-vidas, era novo no trabalho, pois não me lembrava de seu rosto, e olha que eu nunca esqueço alguém tão atraente. Conhecia de vista seu antecessor, mas nunca trocamos palavra alguma.

Mas este chamava a atenção, as mulheres estavam sempre por perto como moscas no mel. De longe passei a admirá-lo, seu belo corpo malhado dava inveja, sua pele bronzeada refletia o brilho platinado do sol, mesmo estando várias vezes na água seu corpo exalava um doce aroma que me arrepiava.

Foi fácil a aproximação, começando a trabalhar era acessível a novos amigos. Seu sorriso só não me encantava mais por que você estava sempre em minha mente, sua lembrança me fazia seguir adiante. Eu me insinuava sabendo muito bem do que ele gostava. Devia ser tudo muito rápido antes de um vinculo ser criado. Pedi sigilo, ele concordou.

Por volta das vinte e três horas estava às portas de sua residência, certifiquei de que ninguém me visse entrar. Dessa vez, você ficou oculto em uma moita em terreno vizinho, e antes de ir, me beijou e me deu empurrõezinhos, como se eu fosse uma criança, caminhando sozinha no primeiro dia de escola. Mesmo desconfiando perguntei se alguém sabia de nossa pequena aventura, nenhum de nós queria exposição.

A casa parecia uma academia. Os móveis foram substituídos por equipamentos de ginástica, apenas uma enorme tv demonstrava que ali era uma residência. Dirigindo-se a cozinha me convidou a segui-lo, estava terminando de preparar nosso jantar.

Meu sangue fervia como o magma de um vulcão, parecia queimar em febre, o coração palpitava descompassado. A inexperiência me fez sair novamente sem planos, somente o acaso a me guiar. Deveria agir antes que ele me tocasse, não suportaria tanta imundice, o cheiro doce agora fedia a pecado.

Conversamos amenidades, a cozinha precisava atenção. Olhei em volta, vi facas e outros objetos, mas sua vaidade o levaria ao fim, nada melhor que um pequeno halteres de dois quilos para desempenhar minha missão. E nesse momento, meu amado, eu te vi na janela, acenando com a cabeça em um tom afirmativo. O peso de ferro seria a arma.

Segurando o halteres, não despertei desconfiança, despretensiosamente brincava enquanto no fogão eram dado os últimos toques. Estava tudo perfeito, acertei sua cabeça e ele perdeu os sentidos.

Estirado no frio ladrilho da cozinha, aquela patética criatura agora assumia o que realmente era, não passava de lixo apesar de que seu belo sorriso parecia de alguém adormecido. Seus lábios me convidavam ao deleite.

Debrucei-me sobre seu peito que arfava sutilmente, senti em minha face seu hálito morno, encostei suavemente sentindo seu beijo.

Foi como um mergulho nas águas mornas da piscina, senti-me acolhido como no útero materno, era novamente uma criança sem culpas. Flutuando em meio a tanta paz, enxergava sob as águas suas mãos infames acariciar de forma lasciva meninos de todas as idades, sentia como se meus próprios órgãos fossem violados tendo com testemunha apenas outros banhistas distraídos. Senti o medo e vergonha daqueles que nunca poderiam se defender.

Desperto do transe enxergava em seu rosto o cínico sorriso do predador. Os halteres ainda estavam ao alcance, não existia alegria na morte, era apenas minha obrigação. Com os olhos vermelhos de ira desferi sucessivas pancadas tentando apagar aquela sinistra expressão de vitória, ossos e carnes misturaram-se como geléia de morango. De alma lavada colhi mais alguns dentes sem mesmo saber o que fazer com eles.

A terceira vida só prova que é muito fácil ser um assassino, a quarta diz que ninguém pode mudar a índole do ser humano, as seguintes mostram que a infestação é pior que se imagina. Poderia eu viver cem anos que mesmo assim não livraria a terra de tão daninhas criaturas, mesmo que um novo dilúvio afligisse o mundo, como bactérias eles se reproduziriam em solo fértil.

Estou exausto, meu amor. Sinto meu fracasso a cada golpe. Entrego-me em suas mãos, guie-me como antes por sendas desconhecidas, se eu temer, consola-me com seu amor.

* * * * * * * * *

Quando o quarto foi invadido e a polícia chamada, sobre a cama, numa poça de sangue e com os pulsos cortados, encontraram aquele que os jornais apelidaram de “Quebra Queixo”, em cada uma de suas mãos cruzadas sobre o peito uma aliança unia duas almas num pacto macabro.

No freezer um pote de azeitonas acondicionava centenas de dentes, alguns até fixos em pedaços de ossos, ninguém tinha dúvida de que ali seria o antro do mais desprezível criminoso que afligia a vida dos inocentes durante quase uma década.

De próprio punho, na escrivaninha todo o relato de uma mente doentia, no fundo de uma gaveta um recorte roto de jornal datado de mais de trinta anos estampava a seguinte notícia;

“Termina de forma trágica as buscas aos alunos desaparecidos da porta da escola Professor Ernesto Gentil. O menor G.R.S. 10 anos foi encontrado em cárcere privado, com péssimas condições físicas e mentais enquanto seu amigo L.S.N. 8 anos, segundo os peritos, estava sem vida a mais de três semanas.

Relatos policiais dão conta que o principal suspeito do sequestro das crianças, o porteiro da instituição, após cometer o crime conduziu-as até o sítio de sua propriedade na periferia da cidade onde, embaixo do fogão da cozinha foi descoberta uma passagem que dava a um porão secreto onde mantinha suas vítimas. Segundo as mesmas fontes, no quintal foram encontradas mais doze ossadas de crianças. As escavações continuam.

Após sofrer um acidente, o suspeito que não tinha herdeiros conhecidos deixou a casa ao município, quase um mês após sua morte funcionários da prefeitura encontraram o cativeiro e se horrorizaram com a cena.

Durante a ausência do raptor, o menor G.R.S. manteve-se vivo alimentando-se do cadáver em decomposição do amigo enquanto bebia água do esgoto. Mais tarde, o legista constatou que o corpo de L.S.N apresentava sinais de abuso e alguns dentes faltavam, supostamente arrancados por fortes pancadas.Uma testemunha contou que muito agressivo, o sobrevivente, rosnava como um animal tentando proteger algo em suas mãos que a muito custo se revelou sendo o pequeno e intacto coração de seu companheiro.

O sobrevivente foi encaminhado pela família a uma clínica psiquiátrica, mas os constantes abusos e a tragédia parecem ter deteriorado de vez sua consciência.

A cidade jamais será a mesma.”

Temas: serial killer

Gilson Raimundo e Leonardo SS Neri
Enviado por Gilson Raimundo em 25/02/2016
Reeditado em 25/02/2016
Código do texto: T5554705
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