PRIMEIRO LUGAR

                                                   
                              OS QUATRO TERRÍVEIS
 
 
"E, havendo aberto o sexto selo, olhei, eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue; E as  estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte."
   Livro do Apocalipse 6:12-13
 
 
"Quatro terríveis acontecimentos assolaram Lisboa no Século XVIII, até hoje apenas três foram divulgados."
  Autor Desconhecido
 
-Lisboa, 1744-
 
 
Enquanto o crepúsculo projetava suas últimas sombras no promontório, duas mulheres se esgueiravam entre as vielas da cidade. O vento frio se imiscuía pelo tracejado torto do caminho, levando para todos os lados os fedores da zona de prostituição.
 
Era final da tarde e logo haveria apenas a luz vacilante das velas e de alguns lampiões naquele lado miserável da cidade. As duas mulheres se cobriam com vestes largas e mantos com capuz na esperança de passarem invisíveis pelas veredas estreitas do baixo meretrício.

As tavernas iam abrindo suas portas. Lá dentro as jovens desditosas arrumavam as mesas e os rústicos bancos de madeira para esperar os primeiros fregueses.

Na curva adiante, num plano mais baixo que as demais casas, estava o lugar que procuravam. A porta pequena e vermelha, e o lenço branco na janela.

Foram atendidas por uma jovem morena.

- Aguardem aqui - Disse a moça e sumiu pelo corredor escuro.

Camila e sua criada se sentaram. Não estavam sozinhas.

Na mesma sala sem janelas também havia uma menina assustada, jovem demais para estar ali, tão pálida, suada, e ofegante. O ventre volumoso para a sua estrutura miúda. Não devia ter chegado aos quinze anos, e estava já prestes a dar a luz.

Logo em seguida a moça morena acompanhou a garota grávida, que se chamava Maria, até um dos quartos e saiu fechando a cortina. Depois foi onde estavam as duas mulheres e anunciou.

- Podem vir.

Numa sala limpa e bem iluminada havia uma senhora vestida de branco. Era a proprietária do local. A velha senhora fez questão de atender àquelas duas pessoalmente, sabia que a cliente misteriosa não era do tipo que costumava procurar a sua casa. Apesar do capuz que lhe escondia os traços fidalgos, reconhecia uma moça da nobreza por outros sinais: o porte, os gestos contidos, o modo de falar.

Depois de uma breve conversa entre as três mulheres, a cafetina perguntou a mais jovem.

- Tem certeza ?
- Sim - Respondeu com uma voz quase inaudível. - Vamos logo com isso.
- Deve beber antes de dormir- Falou, estendendo para a jovem um frasco com um líquido âmbar - Vai se sentir muito mal a noite inteira, mas pela manhã tudo estará resolvido.

A moça saiu com o vidro arrolhado na mão, junto com a sua ama.

No corredor ouviram os gritos agudos da menina que estava parindo naquele momento.
 
...x...x...

Já era noite alta quando um homem bem vestido apareceu. Perguntou por Maria.

- Não resistiu.
- E a criança?
- Uma menina. Quer ver?
- Não. Dê um jeito nisso.
- Chamarei Bruno.

Bruno apareceu dez minutos depois com uma marreta. A bebê chorava na pequena cela junto ao corpo da mãe. Bruno a colocou na pedra fria. Ouviu-se então um barulho de crânio se partindo e a noite caiu no silêncio cortado pelas vozes dos bêbados e das putas nos arredores.
...x...x...
 
-Lisboa, 1746-

Camila dormia profundamente quando ouviu batidas em sua porta. Acordou atordoada e com desgosto foi ver quem se atrevia a lhe perturbar naquela hora da madrugada.

- Dona Camila, é a Gabriela, a senhora precisa vir...
- Ainda com febre?
- Sim, mas... Não sei como dizer isso... melhor é a senhora ver.

Andaram até o quarto da bebê. Camila olhou para o berço, mas ele estava vazio.

 - O que significa isso? Onde está minha filha?
-Ali. E a jovem criada apontou para o teto alto do castelo.

O susto fez Camila perder o fôlego. Não acreditava no que via.

Flutuando cercada por uma aura de luz estava a sua filha, o cabelo loiro e liso escorria dourado em madeixas flutuantes, como se a menina estivesse submersa.

A moça que cuidava da criança a olhava com espanto, pensando estar diante de um anjo celestial.

Aos poucos a menina foi descendo e pousando, suavemente, em seu próprio berço. Os olhos arregalados fitando o nada, o corpo todo contraído parecia sem vida, mas não estava, em pouco tempo a criança dormia serenamente outra vez. A febre havia passado.

No dia seguinte Camila foi à igreja procurar seu confessor, não conseguiu dormir durante o resto da noite. A culpa e o medo a assombravam. Por que não se livrou daquela semente do diabo quando ainda a trazia na barriga? Bebeu todo o frasco que a velha havia vendido. Sentiu cada dor que lhe foi prometida. Verteu o sangue pernicioso sobre os lençóis. Por um tempo acreditou que havia se livrado da prova de seu adultério. Mas a barriga crescia, a criança lá dentro parecia ter ganhado mais energia. Ela, entretanto, apenas definhava. Ao final da gravidez estava irreconhecível. O marido exultava de felicidade. A criança era o herdeiro tão esperado, seria seu primeiro filho.

Camila ria do pobre homem e da felicidade em receber um filho que nem era seu. Riu ainda mais quando a criatura lhe foi tirada do ventre, e era uma menina. Achou que seria uma decepção para o marido. Estava enganada, ele se apaixonou pela menina desde que lhe deitou os olhos. A ideia de se livrar da própria filha não lhe saiu dos pensamentos. A menina, porém, parecia cercada de uma força que enfraquecia seus ímpetos. Não chegou a amá-la, mas desistia de todos os projetos que fez para dar um fim à vida da pequena Gabriela.

Era sua filha, afinal, mas também era a concretização do seu pecado.

 
...x...x...
 
-Lisboa 1755-
 
O tempo passou e Gabriela chegou incólume aos onze anos de idade. Era, todavia, uma menina estranha, solitária, calada. Nunca mais havia flutuado e brilhado como daquela vez, mas pequenas coisas estranhas aconteciam com ela, especialmente quando se isolava na floresta. Não participava voluntariamente da vida no castelo. Gostava de ficar sozinha na torre, observando o mar. Vez por outra Camila se acercava da filha com intenções sinistras. Nestas ocasiões as duas olhavam-se e a mãe sentia o peso da acusação no semblante da filha, como se ela adivinhasse seus pensamentos. A menina a intimidava sem dizer uma palavra. Era uma convivência francamente hostil, mas nunca chegaram às vias de fato, até o dia da festa do aniversário da menina.

O marquês insistia na festa, reclamava das recusas da mulher. Daquela vez não haveria como escapar. Era a sua filha e queria dar uma festa para ela, e que a esposa mandasse virem os seus parentes todos. Camila gelou, não via os pais há anos, desde que a obrigaram a se casar com o marquês, sem nem o conhecer direito. Ela dizia que não queria casar nunca, que ia viver para sempre na casa dos pais, com seus irmãos e irmãs.

Antes do enlace, Camila morava em uma rica propriedade rural cercada de montanhas e circundada por um lago transparente, onde as crianças brincavam sob a fiscalização das criadas.

Um dia foi avisada pelo irmão mais velho que receberia a visita de um homem muito rico. Aguardou o cavalheiro sorrindo, como lhe fora recomendado. O homem vinha com frequência para visitar a família.

 Camila só ficou sabendo um mês antes do casamento que iria desposá-lo.

A moça chorou por dias, não queria mais ver aquele homem vinte anos mais velho do que ela. Um dia saiu do quarto e aceitou sua missão. Fechou-se em seu silêncio e não mais falou do assunto. Permitiu que lhe fizessem todos os preparativos, entrou na catedral repleta de famílias da nobreza como se subisse o cadafalso. Casou e em seguida lançou o seu decreto. Não  aceitaria visitas dos parentes, deixou para trás todas as lembranças de sua vida, e partiu com aquele estranho para o seu castelo. Levou com ela apenas a velha babá que lhe acalentara a infância. Falou para o marido que acataria todas as suas ordens, mas nunca daria festas e nem iria para nenhuma para as quais fosse convidada. Só iria sair para a igreja. O castelo seria como o seu túmulo em vida.

 Seu mundo se resumia à vida doméstica, às idas à igreja, e ao desejo de vingança que lhe consumia a alma.

 Foi quando conheceu o seu amante, e todas as suas perspectivas mudaram.
 
-Leiria 1744-
 
Uma investigação secreta andava em curso na Abadia de Alcobaça, no Distrito de Leiria. Uma das noviças havia aparecido com sintomas de possessão. Tinha febres altas, virava os olhos, tinha convulsões e falava coisas estranhas, dizia que havia recebido a visita de um anjo, um anjo negro com quem se ajoelhava em sua pequena cela. Descrevia cenas apavorantes sobre um instrumento que lhe era apresentado pelo anjo, para que rezassem juntos, e que ele lhe fazia coisas muito dolorosas com o instrumento, mas eram coisas necessárias para expulsar o mal.

A menina emagrecia, ficava ausente por dias,  desmaiava. O ventre começou a inchar e um médico que atendia às irmãs foi chamado.

- A garota não está doente, ela está é grávida.
-Não pode ser, ela nem tem contato com homens, nem mesmo familiares.
-Ela se confessa? Perguntou o malicioso velhinho. - Se ela se confessa com padres, homens andam por aqui.


E saiu sem dizer mais nada.

Naquela tarde a abadessa mandou chamar a jovem e o padre que lhe ouvia a confissão. Iria arrancar a verdade dos dois a qualquer custo.

 
...x...x...
- Lisboa 1744-

 Quando descobriu que estava grávida, Camila sabia que não era do seu marido. A sua regra havia parado de vir numa época em que ele fazia uma longa viagem de navio.

 Meses se passaram. Nem o marido voltava da viagem e nem amante aparecia. Ela não sabia a quem recorrer. Saiu andando pela rua acompanhada da criada e acabou chegando a uma pequena capela. A mantilha negra preservaria o seu anonimato. Resolveu confessar-se com o capelão. Contou tudo e chorou pedindo a sua ajuda. Prometeu um saco de moedas de ouro e algumas joias. O homem se apiedou da jovem desesperada e mesmo chocado com o que ela havia feito,  explicou como  chegar até uma cafetina que também era aborteira, para que lhe desse veneno o suficiente para matar a cria amaldiçoada.

- Deus tenha piedade de ti, jovem.
 
...x...x...

Naquele mesmo dia, Maria estremecia e gritava na carruagem. Ela e o padre denunciado como seu possível molestador iam à toda velocidade para Lisboa. A jovem noviça italiana sentia as contrações do parto, e sua bacia parecia estreita demais para a passagem do bebê.

Nada a fizera confessar quem era o pai da criança, nem o chicote, nem a água fervendo, nem mesmo quando queimaram-lhe os bicos dos seios com a brasa colhida na lareira. A resposta era sempre a mesma - um anjo negro rezava com ela, e lhe mostrava um instrumento. Doía muito. Mas não doía tanto quanto os castigos para responder o que queriam. Mesmo assim não mudava a história, pois não conhecia outra.

A abadessa não permitiu que ela parisse lá, sob os cuidados da parteira local.

-Levem-na daqui!

Maria foi levada para a casa de uma mulher em Lisboa, uma "fazedora de anjos". Durante o trajeto, o homem que a acompanhava mal conseguia olhar para a garota. Ele levava consigo um bilhete que selaria o destino da noviça e da criança.

 
...x...x...

Mesmo tendo bebido até a última gota do veneno dado pela mulher, Camila não conseguiu se livrar do feto que carregava. Fizera uma coisa horrível, um grande pecado, e Deus a estava castigando daquela forma, deixando crescer em seu ventre um ser abominável. Jogou-se algumas vezes das escadarias do castelo, chegou a quebrar um dos braços, mas a criança continuava lá, envenenando seu corpo silenciosamente.

Quando a menina nasceu e Camila viu que não era um monstro, até tentou gostar da filha. Era um bebê lindo, frágil, perfeito. Mas em seu rosto estava estampada a marca da vergonha da mãe. Os olhos de Gabriela eram verdes, amendoados, com longos cílios, os mesmos olhos de seu verdadeiro pai, e não castanhos como os seus próprios e como os olhos do marquês.
 
...x...x...

    Bruno passou os próximos anos se arrependendo do que havia feito. Sempre era chamado para dar um fim aos bebês indesejados. Não gostava do que fazia. Mas era rápido e o que lhe pagavam ajudava nas despesas. Naquele dia quando entrou no quarto não havia apenas um bebê. A jovenzinha dera seu último suspiro e a bebê chorava alto sem o carinho da mãe. Ele sabia o que esperavam que ele fizesse. Matar a criança e se livrar dos corpos das duas, jogando-as no Tejo.

A marreta estava ali. Tirou a criança da mãe, e a aconchegou em um lençol. Colocou-a na pedra que havia ali junto à parede. Era uma bebê muito gordinha.

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-Lisboa 1755-

Camila passou o dia inteiro angustiada. Depois de todos aqueles anos iria encontrar os pais. Era final de outubro, dia 31. O castelo fora enfeitado com flores frescas e as criadas cozinhavam desde a madrugada.

Gabriela, alheia a tudo aquilo, passeava pelos arredores. Era sempre tão silenciosa e furtiva que se tornava quase invisível aos olhos de todos. Foi assim que ninguém percebeu quando ela se afastou até a porta do castelo e saiu andando tranquilamente sem ser percebida nem pelos guardas que cuidavam dos portões.
 
...x...x...

A menina estava atrasada. Havia marcado um encontro com o seu pai e precisara de muito esforço para sair de casa sem a vigilância atenta da familia. Desceu a ladeira, passou pela ponte, viu as pessoas comprando coisas na feira. Pessoas feias, e rudes. Nunca seria como elas. Ela ouviu do pai, quando conversavam nas madrugadas sem que ninguém soubesse, que era uma princesa, uma princesa da linhagem mais pura.

Descobrira aos dez anos de quem era realmente filha e então muita coisa começou a fazer sentido. Primeiro pelo pouco ou nenhum sentimento que nutria pelas pessoas que lhe criavam. Elas eram sempre tão sentimentais! Nunca entendeu o espanto da sua mãe quando a viu brincando com aqueles pintinhos. Eram realmente bonitinhos e se divertia jogando milho para eles. Numa tarde, estava entediada, foi até o poço e puxou o velho balde com uma quantidade razoável de água misturada com algumas folhas apodrecidas.

Os pintinhos já não tinham medo dela, então foi fácil pegar dois deles e levar com delicadeza até o balde. No começo só queria banhá-los, mas um deles ficou desesperado com a situação e tentou fugir. Então ela os afundou juntos, os dedos das mãos fechadas tocando a madeira velha. Os pintinhos se agitaram em suas mãos por um tempo, até que ficaram moles. Foi quando a mãe chegou e ficou olhando para ela com aquela cara.

 - Aberração! Filha do demônio!

A mulher falou isso e saiu apressada para dentro. Nunca sentiu identificação com a mãe, mas a pobre mulher se esforçava por gostar dela.

Um dia seu verdadeiro pai se apresentou. Estavam na igreja. Todas aquelas velas acesas a hipnotizavam. Foi quando viu o homem mais elegante do mundo. E aqueles olhos, iguaizinhos aos seus. Estava de preto, era alto, forte, porém esguio. O cabelo claro, o porte distinto. Ele sorriu para ela do lado de fora, próximo à porta. Ao fim da manhã enquanto os parentes se distraíam com as outras pessoas ele a chamou para o pátio. Falou quem era e ela ficou feliz. Decerto era melhor que ser daquela família vulgar à qual julgava pertencer. Combinaram encontrar-se muitas vezes, sempre de madrugada, e ele lhe contaria tudo.

No começo era fácil enganar as pessoas e sair sozinha. Mas hoje ele havia marcado um encontro à luz do dia, disse que lhe daria instruções. Havia uma missão para ela.
 
...x...x...

Gabriela voltou quase na hora da festa. A babá quando a viu correu com ela até a sala de banhos, e foi limpá-la e vestí-la para logo mais. Exatamente às seis da noite as carruagens começaram a chegar.

A festa corria como o esperado. Os cumprimentos protocolares, a sucessão de pratos sendo servidos na mesa gigantesta que havia no salão, as danças.

Por volta das dez horas da noite uma carruagem vermelha apareceu de frente aos portões de lanças de ferro do castelo, da sua porta desceu um belo cavalheiro vestido com uma indumentária totalmente negra. Seu nome não constava na extensa lista de convidados, caprichosamente escrita a bico de pena no rolo com sinête rompido.

Bastou que olhasse para os guardas para que não lhes oferecessem qualquer resistência. Como se estivessem em transe, abriram-lhe as portas da casa, e o deixaram entrar livremente.

Assim que adrentou no salão, todos os presentes viraram-se para ele. Inclusive o marquês e a esposa, que neste momento estavam dançando com alguns convidados.

Logo que os olhos de Gabriela cruzaram com o do estranho cavalheiro, a menina deu um grito medonho e tombou sobre o chão. O marquês correu até ela e se espantou quando ao virar a menina para limpar o sangue do seu rosto, descobriu que seus olhos estavam completamente virados para trás.

Mesmo sem desvirar os olhos, Gabriela ergueu-se sobre as próprias mãos e se sentou ali no chão. Virou então a cabeça para o lado do convidado misterioso e gritou apontando para ele:

 - Deus tecum, angelum tenebrarum! E desmaiou novamente.

Houve um pequeno tumulto na sala. O marquês olhou fixamente para aquele belíssimo rosto que nunca vira antes, mas alguma coisa naquele homem lhe parecia tão familiar...  Quando finalmente se deu conta, foi como o céu tivesse caído sobre sua cabeça. Aquele rosto, aqueles olhos, o homem, Gabriela, sua amada menina, era a cópia fiel daqueles traços.

Camila compreendeu tudo. Sem que o marquês dissesse uma única palavra, o olhar que lançou para ela foi como uma sentença. Não tinha muito tempo. Sabia o que o seu antigo amante viera fazer ali. Ele ia buscar a sua filha, arrancá-la de seus braços. Sempre nutrira sentimentos antagônicos por aquela menina, mas não permitiria que ele a levasse para as trevas.

Naquela noite, faria o que era preciso, e que vinha ensaiando há tantos anos.

A festa acabou. Todos foram para as suas casas, o marquês se recolheu ao quarto do casal, mas antes trancou a porta. Camila não era mais bem vinda lá.

Felizmente em meio ao tumulto, o homem desapareceu. Então tinha algumas horas ainda. Minutos talvez. Teria que ser rápida.

Em seu quarto Gabriela não conseguia dormir. Sua cabeça doía, milhões de pensamentos a confundiam. Não tinha mais certeza de nada. Quando viu aquele demônio entrando pela porta soube na mesma hora que ele era seu pai. Só ela conseguiu enxergar suas longas asas negras, como as de um dragão gigantesco, as asas arrastavam pelo chão, arranhando o piso sem se desgastarem. Só ela via, talvez porque também tivesse um par igual.

De repente a porta abriu. O vento frio do outono entrou junto com a silhueta longilínea de sua mãe. Ela havia sido avisada que ia chegar esse dia, mas não seria hoje. Pulou da cama e seus pés tocaram o chão gelado. Podia ver o brilho da faca que a mãe trazia na mão esquerda. A luz da lua projetava-se sobre o vulto alto da mulher, iluminando o seu contorno que avançava ameaçador.

- Ma.. mamãe...não...- Sussurrou a menina enquanto recuava em direção à janela.
- É preciso, criança... perdoe a mamãe...
-Não hoje...Não hoje...- Pensava Gabriela caminhando de costas, pé ante pé até a grande janela que ia do chão ao teto do seu quarto. Lá fora uma garoa fina caía ternamente, pingando nas flores cultivadas com desvelo pelo marquês e sua equipe de jardineiros.

Camila ergueu a lâmina contra a própria filha. Bastava um golpe e tudo estaria terminado. Logo depois se mataria e poria fim em todo aquele pesadelo.  

Foi tudo muito rápido. A mão de Camila desceu contra o peito da criança. Gabriela deu um grande passo para trás. Não contava se desequilibrar com a borda molhada da janela. De repente, seu leve corpo pendeu para trás. Tentou ainda se agarrar na pesada cortina de veludo vermelho, mas a pequena mão não teve forças para suster o peso de todo o corpo, e Gabriela foi lançada no vazio.

Camila foi rapidamente até a beirada da janela, e olhou lá para baixo. Procurou o corpo da filha estendido entre os lírios lá embaixo, mas não havia nada.

No instante seguinte entendeu o que havia acontecido. Gabriela havia voltado para o próprio quarto e a olhava. Seus olhos verdes eram labaredas  ardentes. Ela toda brilhava. Seus pés não tocavam o chão, a camisola branca flutuava ao sabor do vento, leve e diáfana.

Então a menina falou:
 
- Amanhã todos estaremos mortos.

E desfaleceu nos braços de sua mãe.

Sentada na cama ao lado de sua filha, Camila recordava todos os fatos que a levaram àquele instante. As constantes viagens do marido a deixavam com infindáveis horas livres. Tudo em Lisboa a entediava. Foi quando conheceu aquele homem. Passava na rua em direção à igreja quando o viu. A carruagem dela havia parado uns instante para que uma família atravessasse a via, e foi o tempo suficiente para que cruzassem um olhar.

Nunca antes havia visto olhos mais magnéticos do que aqueles. Eram  amendoados, verdes como duas esmeraldas lapidadas. Não conseguia parar de olhar, e nem de ser olhada em igual intensidade. Viu que o cocheiro prosseguia a viagem e bateu com a mão na porta da carruagem, fazendo um sinal que parasse. A criada a olhava intrigada. Mandou que prosseguisse até a igreja com o cocheiro, e partiu em busca de seu destino.

Não estava diante de um homem comum, e nem poderia ser. Quando ele revelou sua verdadeira natureza, e abriu suas negras asas no umbral de sua janela solitária, o fez com receio de assustá-la. Mas os olhos apaixonados dela enxergaram o anjo antes do demônio. E se entregou sem reservas.

Amavam-se todos os dias à tarde com a cumplicidade da sua aia. Com ele descobriu as delícias que seu corpo podia experimentar e retribuía as carícias aprendidas com entusiasmo. Os encontros eram intensos e profundamente prazerosos. Aquele homem era um amante habilidoso e viril, e sabia tocar cada nota do seu corpo como um harpista divino.

Camila acabou se distraindo em seu prazer, e quando deu por si estava grávida. Tentou encontrar o amante mas descobriu que havia desaparecido. Era uma adúltera e engravidara de um filho das trevas! Quando a criança infernal nascesse o marido descobriria, e estaria perdida.
 
...x...x...

A noite ia alta e Bruno não conseguia encontrar a menina. A sua mulher insistia para que ficasse em casa.

- Deixe que vá. Tomara que desapareça para sempre.

Bruno estava cansado, ele e alguns vizinhos passaram o dia inteiro procurando Juliana, sem qualquer sucesso.

 Lembrou-se da primeira vez que a vira. Era apenas um bebê. Havia acabado de nascer e tremia de frio sobre o corpo sem vida de sua mãe. Estava lá para matá-la. Trouxe consigo a marreta e a colocou sobre a cama. Foi quando pegou a menina nos braços para colocar sobre a pedra que ele sentiu um enorme carinho.Tinha que salvá-la. A menina pareceu retribuir o carinho parando de chorar. Aqueles olhos tão verdes como esmeraldas brilhantes o enfeitiçaram. Ele e sua mulher não tinham filhos. Ninguém viria para reclamar a criança. Então, tomou uma decisão rápida. Colocou o corpo de Maria sobre a pedra e desceu a pesada marreta em seu crânio.

Embrulhou as duas com lençóis e as colocou na carroça, mas quando chegou ao Tejo, apenas um corpo submergiu para sempre.

A mulher ficou maravilhada. A criança era realmente muito bonita.

Tudo correu bem no início, mas a medida que crescia, Juliana ia se comportando de maneira estranha e cruel, por muitas vezes Bruno a pegou cometendo vilanias com os amiguinhos, e com pequenos e delicados animaizinhos. Não disse nada à esposa, mas ela acabou descobrindo e ficou perplexa.

Mesmo gostando muito de Juliana, Bruno teve que admitir que havia algo errado com aquela criança.

Os choques entre a menina e a mãe eram cada vez mais frequentes, especialmente por conta da postura altiva da menina em relação à família, que considerava abaixo do seu nível.

Na tarde do dia anterior, Juliana havia sumido. Bruno mobilizou a vizinhança para encontrarem a menina. Passaram a noite com tochas na mão, gritando por Juliana, e já alvorecia a madrugada do dia 01. Logo começariam os movimentos do dia dos finados e aí sim, seria impossível encontrá-la.
 
...x...x...

Amanhecia o dia dos mortos, e Asmodeus ainda não estava de posse de suas oferendas. Sangue de seu sangue. Não um sangue qualquer, mas o mais antigo de todos, o sangue dos primeiros habitantes da terra. Era um desperdício, mas ele precisava ofertá-lo. Assim era a lei. Podia ter quantos filhos quisesse, e amar quantas mulheres que desejasse, mas as crias não lhe pertenciam.

Depois de tantos milênios já não se envolvia emocionalmente com seu legado, olhou a menina recém desvirginada, adormecida. Os cabelos ruivos espalhados sobre a pele salpicada de sardas. Belíssima.

Lembrou com saudades  da inocente noviça. Tão bonita... Carnes jovens e firmes... A dor... O prazer...O gozo... Não pode se conter em semeá-la repetidamente, até que a centelha amaldiçoada do sua essência se tornasse um humano. Não qualquer humano...Doce Maria, jazendo para sempre no fundo do Tejo, logo sua pequena filha lhe faria companhia... Ela e a outra menina.

Queria ficar, acordar a jovenzinha que dormia e ter mais prazer com sua dor, no final das contas elas gostavam e pediam mais...
Alçou-se para a janela com agilidade e ruflou as longas asas luzidias por sobre o oceano.
 
...x...x...
    
Juliana andou por toda a praça. Sentou em um banco. Perambulou entre os feirantes. E esperou. A cada pessoa que se aproximava ela olhava para os lados. Não era ele. Mais dez minutos e ele não aparecia. Quando caiu a noite ela se convenceu que ele não viria mais.

Não podia voltar para casa. E nem queria. Ele havia dito que ficariam juntos e ela achou que seria o melhor dia de sua vida. Com a praça quase vazia, ela sentiu medo pela primeira vez. Foi descendo a ladeira até a igreja e se encolheu ao lado da escada dos fundos. As sombras protegeriam seu sono.
 
...x...x...

Camila não conseguiu dormir. Depois de todos aqueles anos de ausência ele reapareceu em sua vida. Não por causa dela, mas para buscar sua filha. Soube no momento em que o viu olhando para Gabriela. Ele a cobiçava. Sentiu o frio de mil mortes percorrendo a sua coluna.

A menina não acordava. Pálida como um cadáver sob seus dosséis de princesa, respirava fracamente.  Não havia tempo a perder. Teria que levá-la a um lugar onde ele não tivesse acesso.

Naquele dia todas as igrejas de Lisboa estavam abertas para as cerimônias do Dia de Finados. Dos portões de ferro do castelo saiu uma carruagem lacrada. Ia a toda velocidade pelas ruas estreitas sem se deter diante dos pedestres. As patas dos cavalos levantavam a fina poeira que se espalhava sobre os paralelepípedos. Do céu, uma silhueta negra observava o seu trajeto até a a igreja da Sé.

O pássaro negro fazia círculos ao redor do carro, sabia que se chegassem até a igreja não conseguiria arrebatar a  menina dos braços de sua mãe. Estava tão cheio de ódio que não se preocupou em usar a forma humana para investir contra o veículo.

Arqueou as longas asas e desceu sobre a multidão.

Lá embaixo as pessoas gritavam aterrorizadas. De passagem em seu voo rasteiro arrancava algumas cabeças com suas garras aguçadas. A carruagem acabara de fazer uma curva bem fechada quando Asmodeus caiu com todo o seu peso sobre ela, fazendo-a fender de par a par.

Perplexo, Asmodeus se deu conta de que fora enganado. Não havia viva alma dentro da cabine.

Do outro lado da cidade uma discreta carroça coberta de feno carregava uma preciosa carga. Camila olhava pela primeira vez para Gabriela com olhos de mãe. A ternura que vivia represada em seu coração a afogava. Todas as lágrimas que havia guardado em seu coração desde que foi vendida ao marquês pelos seus pais agora caíam abundantes sobre a face de sua única filha. A vida ia abandonando aquele pequeno corpo lentamente. Era preciso correr. Camila lamentou ter passado todos aqueles anos sem conhecer as ruas de Lisboa, vivendo sempre numa clausura voluntária nas paredes do castelo.  Então mandou que o carroceiro as levasse para o único lugar onde sabia chegar - a pequena igreja onde fazia suas confissões.

O tempo se esvaia para a menina e o demônio. Gabriela mal respirava e passou a ter fortes convulsões. Ao chegarem no pátio da igreja correram com a criança para seu interior, esquivando-se da multidão segurando velas.

Do céu, um furioso monstro com as garras pingando de sangue acabara de localizar o seu alvo. Viu quando Camila e um desconhecido carregavam Gabriela agonizante pela praça. Usou os poucos minutos que tinha para se jogar sobre eles.
 

...x...x...
Juliana despertou confusa e faminta no meio daquela multidão de estranhos. Não lembrava que havia dormido encostada na escada da igreja e acordou com alguém tocando o seu rosto com uma bengala suja.
 
Uma velha mendiga a cutucava para que saísse de lá. A mulher maltrapilha pretendia usar aquele local onde a menina estava para suplicar esmolas aos fiéis.

Juliana saiu rogando pragas à mulher e circundou a área da igreja até chegar a sua entrada principal. Foi quando viu o casal passando com a criança entrar na igreja pelo portão e batê-lo com força. Atrás deles vinha uma ave gigantesca com as garras apontando para a frente, prestes a atacar.

Era o seu pai. Tentou falar com ele mas o demônio a repeliu com uma das asas monstruosas de membrana escura. Com o impacto Juliana rolou pelos degraus e caiu aos pés de uma multidão desesperada.

Dentro da igreja as pessoas apavoradas corriam para perto do altar enquanto o demônio descomunal se jogava contra a porta.

Juliana observou uma passagem muito estreita na lateral do prédio. Imaginou que rastejando por ali iria conseguir chegar até o salão e fazer uma coisa que orgulharia o seu pai.

Era apertado, escuro e assim que entrou viu que não tinha como voltar. Esgueirou-se esfregando o franzino corpo nas paredes imundas, controlando-se para não entrar em pânico. Finalmente deu com uma grade destrancada e passando por ali se viu dentro da sacristia. Correu então até o portão e o destrancou.

O monstro ficou urrando lá fora, mandando que lhe entregassem a criança. Camila agarrava a filha enquanto homens, mulheres, e até o padre a arrancavam de suas mãos.

Finalmente, Camila não pode mais suportar e viu sua frágil menina ser levada até próximo ao monstro e ser jogada aos seus pés.

Assim que tocou no tronco da menina, Asmodeus levou um terrível choque e foi lançado a vários metros da entrada da igreja. Ergueu-se atordoado e claudicante e levantou voo para longe dali. Não compreendia o que havia acontecido. Sentia um ardor o queimar profundamente, mas não conseguia enxergar o fogo. Suas asas se esgaçavam e despedaçavam. Asmodeus voou com dificuldade sobre o oceano, procurando se afastar o máximo possível da menina. Sentiu suas forças chegando ao limite e tombou, pesadamente, sobre a água salgada.

Quando o corpo do monstro tocou o fundo do mar, provocou um barulho ensurdecedor e abriu uma funda e extensa fenda que chegou até a costa de Portugal e causou um colossal abalo, destruindo prédios.

Dentro da igreja onde estava Camila as pessoas caíam umas sobre as outras derrubando as velas no chão. Em pouco tempo o fogo se espalhou por toda a parte: tapetes, imagens, bancos, homens, mulheres, crianças e paredes. Camila se arrastou até a porta em busca de sua filha.

Gabriela estava morta.  Morreu no mesmo instante em que o demônio que lhe deu vida se fragmentava contra o solo marinho. Camila ainda abraçou seu corpo e pediu perdão a Deus antes que o teto em chamas da igreja desabasse sobre todos.

 
...x...x...
 
Juliana conseguiu escapar com algumas escoriações. Correu como pôde sobre o chão que ondulava e estremecia. Ia, quase cega pela fumaça que dominava aquela parte da cidade, se chocando contra as pessoas, sem saber para onde ir. Na angústia de se desviar dos prédios que desabavam uma parte da população foi até a beira do Tejo.

A cidade ardia e se desintegrava. O chão se abria em vários locais e dezenas de pessoas eram tragadas pelos enormes buracos. Tudo ao redor de Juliana era terror e morte.

Subitamente houve um outro estremecimento, e um forte rugido foi escutado vindo do fundo do mar. As pessoas que estavam na praia observaram o mar recuando vários metros e retornando como um animal enfurecido. Logo uma onda levantou-se contra o céu escurecendo a praia naquela hora da manhã, fazendo sombra sobre quase mil pessoas que tentavam escapar do terremoto.

A onda subiu até trinta metros de altura e ficou por um único segundo erguida e hipnotizante como uma muralha implacável. Então desabou com a força de milhões de toneladas de água sobre o povo lá embaixo.

A maior parte morreu instantaneamente, esmagada pelo impacto daquela massa líquida gigante. Os menos afortunados foram arrastados por centenas de metros pela cidade adentro, chocando-se contra o que restava dos prédios, suas cabeças e membros sendo arrancados nas colisões.  Os poucos que conseguiam se segurar nos prédios eram tragados pelo vácuo formado por portas e janelas abertas, e se afogavam tentando, em vão, alcançar a superfície.

Outras ondas sucederam a primeira causando mais morte e destruição. Juliana foi atingida pela terceira delas. Seu corpo foi jogado violentamente contra a  parede de uma casa branca. Uma mistura de mar com lama entrava pela sua boca e nariz enquanto o bloco de água a empurrava para baixo, onde se misturava com o rio.

Juliana afundou mais uma vez com o impacto da quarta onda. Não havia mais algum lugar seco ou estrutura onde se apoiar, ao seu redor cadáveres severamente mutilados eram levados pela  fúria da correnteza.

Juntou o resto de suas forças para subir mais uma vez à superfície e voltou a afundar. Foi quando sentiu uma mão agarrando seu bracinho fino e puxando-a para cima.

Então ela apagou.

Aos poucos a água foi baixando e os sobreviventes voltaram para o que havia sobrado de suas casas. Juliana acordou vários dias depois entre finos lençóis de seda. Ao seu lado uma mulher lhe sorria. Estava limpa, com uma camisola branca, muito delicada. Ainda deitada recebeu a visita de um homem. Não era bonito como o seu pai, mas via-se que era um homem nobre e rico. Ele sorriu para ela. Perguntou se estava bem e se queria comer algo.

Juliana agradeceu e lhe foi servida água fresca com um sopa bem leve.

O homem a observava alimentar-se, pacientemente.

Quando ela finalmente terminou a refeição, ele se sentou ao seu lado na cama e se apresentou.
- Sou o Marquês Frederico de Rosal, você tem família?
- Não tenho mais - Respondeu a menina que nem cogitou em procurar Bruno e a sua mulher.
- Você gostaria de ficar morando aqui? Perdi minha única filha e ela tinha olhos iguais aos seus.

   A menina não respondeu. Olhou para a janela e ficou alguns minutos em silêncio.

    - Você sabe o seu nome?
    - Sei sim, senhor.
    - Como se chama?
    - Juliana.
    - Bonito nome. Juliana de que?
    - Castelli- Respondeu a menina sorrindo pela primeira vez depois de muito tempo.




FIM

                   


 
TEMAS: CASAMENTO E CATÁSTROFES