Graúna, um assobio na escuridão - DTRL26 Duplas

Aquela seria a terceira noite que Judite e o pai, Sr. Cosme, passariam no casarão que lhes foi oferecido, uma velha construção. No finzinho da tarde o vento soprava de um jeito inconveniente, batendo portas e janelas. As árvores curvavam-se ante sua força e Jud chegou a imaginar que fugiriam assustadas deixando enormes buracos pelo chão.

A menina assistia tudo através da janela, admirada com o céu que, naquele dia, tinha a cor das chumbadas de pesca do seu falecido avô. Os galhos das árvores mais pareciam garras arranhando as venezianas abertas e quase rompendo a fina barreira que o pai improvisara para proteger o local. Queriam eles entrar, ou somente assustá-la? Não sabia ao certo. A incerteza crescia fria no pequeno estômago. Desejou que o pai chegasse logo em casa.

Ele havia avisado:

“Filha, fique no seu quarto, preciso ir com o Doutor Eraldo. Encontraram um novo ninho. Quem sabe tenhamos sorte. Não saia por aí! Esse lugar está em ruínas e é perigoso demais”.

Viúvo, era homem dedicado a paternidade que lhe restara de consolo. Além dessa dádiva, vivia uma vida conturbada, em um mundo que ardia em meio à febre e pestilência, causadas pela ode de mosquitos que tinham sofrido mutações diversas, provocando incontáveis mortes. A situação era assustadora. Ele havia chegado há pouco para trabalhar com o Doutor Eraldo Montenegro.

Fato é que algo inesperado aconteceu e ela não pôde deixar de seguir a ave que entrou, num rompante, pela janela aberta. Um pássaro preto cantante, como se alegria houvesse no mundo naquela época, e não havia.

O animal pousou a dois metros dela, de costas. Cantava lindamente! Ela assobiou, como a mãe um dia havia lhe ensinado. “É assim, filha. Junte os lábios e assopre”. Quanta saudade tinha da mãe. O animal girou o pescoço, tomando-lhe a atenção mais uma vez, e a encarou. As órbitas da pobre criatura eram apenas duas cicatrizes sem vida, tão cego quanto ciente do caminho que faria. Andou na direção dela, dois pequenos passos e, com extrema agilidade, apanhou uma aranha no bico. Depois bateu as asas e rumou ao corredor, voando. Ou seria saltando? Degrau por degrau, até a portinhola no teto, foi, atraindo a curiosa e assustada garota, que tentava compreender como alguém poderia ter feito aquilo com um bichinho tão belo.

Quando se aventurou, faltava pouco tempo para que o pai regressasse. Mal sabia onde os degraus daquela velha e empoeirada escada a levariam, somente o pai vistoriou a casa em busca de focos da praga e até mesmo procurando se prevenir com telas mosqueteiras específicas.

Chegando ao escuro cômodo, procurou de imediato um interruptor. Encontrou, mas a lâmpada apenas faiscou, queimando em seguida, num estouro curto. O som assustou o pássaro que grasnou batendo as asas em direção a uma pequena janela. O pobrezinho trombou no vidro, e grasnou novamente, agora mais alto e mais desesperado. Judite o procurava, mas só podia ouvi-lo, enquanto apalpava quinquilharias. As pequenas mãos abriam caminho na escuridão, desmanchando pegajosas teias de aranha e sentindo o roçar de minúsculas patas que lhe provocavam arrepios. O pavor era menor que a vontade de ajudar o pássaro. Ele, por sua vez, silenciou-se, como se nunca tivesse estado lá.

Naquele breu, Jud, acabou tropeçando. Caiu. As mãos vasculhavam o chão de madeira irregular, enquanto a poeira ardia-lhe as narinas e o medo fazia o coração bater apressado. Conseguiu se levantar, apoiando-se em algo que descobriu serem pés de uma grande mesa. As mãos acariciaram, curiosas, aquela superfície até apalpar um objeto. Incerta, julgou se tratar de um abajur.

Dedos receosos puxaram uma pequena corrente, e o ambiente sombrio foi fracamente iluminado, revelando um lugar apinhado de móveis antigos. Chamou sua atenção uma escrivaninha de madeira escura e envelhecida, que amparava uma espécie de poleiro formado por três tocos finos de madeira, dois na vertical e um na horizontal. Ficou quieta, tentando ouvir o pássaro mais uma vez, contudo o silêncio era uma sombra que lhe acuava. Observou os arredores, nada. “Onde será que ele está?”. Procurou debaixo da mesa, da escrivaninha e por onde mais conseguiu se esgueirar. Sem opções, e por curiosidade, mexeu no poleiro e intrometida abriu uma das gavetas da escrivaninha.

Cosme se perguntava o porquê de tudo isso e se um dia encontrariam uma saída. Nunca havia se visto coisa semelhante. Ninguém estava a salvo, e entendia bem disso, pois a esposa ficou doente logo no início da proliferação. O homem nada pôde fazer para salvá-la senão segurar sua mão e sentir aquela quentura incontrolável, secar o suor compulsivo e ouvir a dor saindo espremida em gemidos agonizantes. Era difícil pensar nisso e na atual circunstância não se permitia sofrer com essas lembranças. Precisavam continuar lutando!

Veja isso, Cosme - O doutor Eraldo olhou para as crianças à sua frente. Três meninas e um menino. Pelo que se sabia, o pai havia morrido há menos de um mês. Uma das meninas, estava deitada com as costas para cima, sem camisa. Os cabelos já haviam caído pela metade. Ela gritava de dor, mas isso já não os comovia, a rotina tem um poder transformador. O que mais assustava eram as feridas abertas pelo corpo.

- Meu Deus, ela é tão nova. Deve ter uns sete anos - Cosme olhou para a mãe, para os irmãos, e então novamente para a hospedeira.

- Malditos parasitas! - Pestanejou, o doutor, balançando negativamente a cabeça para logo em seguida ordenar - Faça!

Cosme sabia que o bem e mal travavam uma batalha dentro daquele organismo e também presumia quem estava ganhando, deduziu isso logo que viu as feridas. Ela era uma hospedeira. Havia sete feridas pelas costas, grandes bolhas d’água, porém arrebentadas e mal cheirosas. A carne estava bastante inflamada, quase podre, e recheada com centenas de ovos. Era sabido que esse processo só se iniciava em crianças e adultos saudáveis. O homem, enfermeiro que nem chegou a se formar e, que logo teve que se adaptar ao ofício, dentre outras funções, se apoiou no único instrumento que poderia trazer alguma salvação. Pediu que mãe e filhos tapassem os olhos. O doutor segurou-a e o ferro frio foi apoiado na pele febril. O gatilho do trinta e oito foi acionado, sem rodeios. Cosme engoliu seco, limpou o cano da arma e apontou para as outras crianças que, assustadas, espremiam-se num canto da parede agarradas à mãe, todos choramingando de olhos arregalados e inundados de pavor.

- Levantem as camisas. Levantem! - A voz autoritária não admitia recusa.

A situação atual não permitia qualquer tipo de hesitação, lutavam com as armas que tinham e era preciso que fossem fortes. Deixaram três corpos para trás, queimando em uma fogueira improvisada. Não se ouviram orações, pois não existiam mais Deuses. A fé se resumia ao pó que restaria daquelas brasas.

Era hora de ir para casa, cuidar de sua filha.

Jud estava ali há tanto tempo. A blusa de mangas compridas já trazia o suor à tona. Aquele tipo de roupa era extremamente necessário. “Fique escondida” a voz do pai visitava sua mente como se entrasse pelos ouvidos. “Passe esse repelente caseiro, fiz de madrugada, ajuda a mantê-los longe” Vasculhou as gavetas a procura de qualquer coisa e acabou encontrando uma velha encadernação. A escrita era bem desenhada e lhe causou uma estranheza no início. “Coisa muito velha!” Deduziu. O cheiro de capim melado e de cravo não espantaria só os mosquitos, a pele ainda permanecia úmida o bastante. Espiou o relógio, como se o tempo fosse uma medida importante. Observou a contracapa onde, colados, com o que parecia ser vela derretida, estavam uma pena e dois pequenos chumaços de cabelo. Ajeitou-se na cadeira mais uma vez e começou a ler.

“É preciso admitir, sou uma desgraça, verdadeiramente perversa e verdadeiramente tola. Sinto saudades, Pepê, muitas saudades de vocês dois. Mas o que devo fazer? Nem mesmo as bailarinas, as bonecas, ou as brincadeiras que fazíamos, nada disso é o bastante. Continuo em busca dos mesmos prazeres e não me canso de fazer julgamento das minhas ações. Esses vis sentimentos me atormentam. Lembra, quando éramos nós três e podíamos dançar juntos...

Hoje ainda é dia sete de janeiro, e como bem sabes, nos dias quinze é que sempre nos reuníamos no sótão para ouvi-la cantar. Papai, coitado, já há muito falecido deixou-a sob nossos cuidados, ficaste a mercê de nossas tentações. Ele a amava tanto!

Lembro-me bem o dia em que Antônio me trouxe a primeira boneca. Era quinze de novembro de mil novecentos e três, tinha um cheiro tão bom, novinha. "

- Dr. Eraldo, não aguento mais isso. Não existe cura! Não existe nenhuma merda que acabe com isso!

- Você tem uma filha de quase quinze anos, Cosme. É um pai extraordinário. Não pense assim - a voz de Dr. Eraldo possuía o tom calmo e paciente de quem já tinha vivido o bastante.

"Nosso primeiro aniversário foi lindo. Ele me guiou até o sótão. Porém seus anseios eram outros, gostava de me paparicar. Estava sempre quieto e pensativo e os olhos nublados revelavam, dia após dia, a angústia crescente diante da passagem do tempo.

Eu já era mais velha quando ele chegou com a primeira boneca, linda, um rosto perfeito. A distância vertical entre olhos e boca dentro do comprimento do rosto, do queixo a linha do cabelo, cada olho distante um do outro na proporção exata, era a mais perfeita simetria. Dancei com ela a noite inteira, enquanto você cantava para nós. “Você poderá brincar com ela durante um ano inteirinho” ele me lembrava. E eu sabia que não podia me apegar demais, Antônio não estenderia esse prazo, não permitiria, era metódico demais.

Lembro-me bem do dia em que trouxe-me uma menina de pele escura, linda. Naquela época eu já tinha quarenta anos, e ainda assim me tratava como uma criancinha. Incansável tentava remediar as alegrias que papai não me deu. Chegou com a menina no colo, dizendo que a havia encontrado há cerca de três meses e que todos os procedimentos haviam sido realizados. Amputou-lhe pernas e braços, arrancou-lhe os dentes. Cuidou também para que, é claro, se tornasse cega e surda. Deus tenha piedade de nós! Duas almas doentes e entorpecidas por velhos e bizarros hábitos. O que fizemos é inominável! Que saudades, Pepê! Você é a única lembrança verdadeiramente boa que carrego comigo."

A porta foi aberta. Cosme olhou para fora, de soslaio, e viu um mundo que não era o melhor para se criar uma garotinha. A pestilência tinha passado por ele como uma língua de fogo, acinzentando as construções e impregnando tudo com o cheiro de carne queimada. O vento assoprava carregando poeira, sacolas e papéis, e anunciava uma tempestade. Num repente, antes de fechar a porta, entrou pela fresta um pássaro preto, planando.

O enfermeiro não pôde fazer muito, não houve tempo, apenas experimentou as garras do maldito pássaro acertarem seus olhos, que arderam como nunca. Num gesto de súbita agonia as mãos esfregaram os olhos e quando as pálpebras finalmente se ergueram foi como se as janelas de sua alma tivessem sido simultaneamente abertas. E então Antônio entrou.

A porta do sótão se fechou, empurrada por um vento perverso. A ave cantou em algum lugar da casa. O barulho vinha do primeiro andar, mas Jud pouco se importou. Após o sobressalto, concentrou-se outra vez no diário. Queria saber mais.

“Brincava com elas como qualquer menina brinca com suas bonecas mais queridas, mas eu não precisava apenas imaginar, tudo era fascinante e real. Por causa do tamanho, eram fixadas em um suporte com rodinhas e algumas engrenagens para facilitar o manejo. Antônio era perfeccionista. Eu, por minha vez, passava horas mantendo-as limpas e enfeitadas, e a tarefa era bastante árdua. Ah! Pepê. Sua cantoria era nossa canção de ninar. Hoje seria um alívio para minhas angústias.

Era preciso alimentá-las com mamadeiras e eu revezava entre chás, sucos e um mingau nutritivo algumas poucas vezes ao dia. Nesses momentos elas tinham uma expressão de alívio que quase podia ser confundida com sorriso. Algumas vezes precisávamos deixá-las sozinhas, tínhamos alguns resquícios de vida social e poderia ser necessário que se alimentassem. Ensiná-las fazia parte da brincadeira diária. Naqueles tempos adorávamos vê-las aprendendo a superar as dificuldades que criávamos para elas. Colocávamos as mamadeiras de lado para que se aventurassem a executar o truque de apanhar o bico com a boca e depois virar pescoço e cabeça para cima, como se fossem aves a engolir peixes. Era como treinar um bichinho de estimação. E quase chegávamos a sentir, por elas, algum tipo de afeto."

A chuva caía lá fora e em pouco tempo escorregava pelas frestas do telhado alcançando o interior da casa. A ave continuava cantando pelas escadas, subindo e subindo. Cosme se via invadido por um torpor estranho, o canto o atraía como por encantamento e ele a acompanhava através do breu.

...

Uma aranha se embrenhou nos cabelos de Jud, despertando-a de sua leitura. A menina olhou para o diário aberto no chão. Faltavam algumas páginas aqui e ali, dava para ver pelas pontas de folhas rasgadas na área central da encadernação. Pegou o diário e o manuseou com cuidado. Mais uma vez o chumaço de cabelo e a pena lhe despertaram grande curiosidade. Havia ainda dois P’s escritos na capa, abaixo dos itens. Já era quase hora do pai chegar e talvez fosse melhor terminar de ler em outro momento. Ele poderia não aprovar aquilo, principalmente sabendo do teor da leitura. Faltava pouco mais que uma página e ela não resistiu.

“Criei um monstro. Papai era tão carinhoso e respeitador comigo. Mesmo após a morte de mamãe, continuou cuidando de nós com imensa alegria, fosse bêbado ou sóbrio. E foi em uma de suas bebedeiras que aconteceu. Vi-o desmaiado no sofá, havia vômito por toda parte, mas não pude me controlar.

Naquela época meus seios estavam se aflorando, o sexo cogitava algo que eu não sabia o que era; instinto. Uma força sobrenatural que me arrancava para fora de mim mesma, não sei, apenas sentia isso e agora, enquanto escrevo essas linhas ainda sinto. Desabotoei a calça de papai e o toquei, toquei enquanto ele acordava por inteiro, os olhos e o corpo. Os olhos mais lentos, é claro. E foi quando Tony chegou e me viu ali, que eu não soube o que fazer. Saltei para trás, enquanto papai fazia o mesmo, sonolento, ajeitando as calças, assustado, sem entender o que se passava. Pepê, você estava bem do lado dele, e se pudesse ter visto tudo, contado a verdade para meu irmão, mas não pôde e nem eu pude.

Corri e abracei Antônio, apertava-o com toda minha força, e não precisei falar nada, ele simplesmente acreditava em minha inocência. Papai começou a pedir perdão como se tivesse culpa de algo. Chorava desesperado."

...

A chuva caía sobre o assoalho, os degraus rangiam e estalavam. Como se rissem de Cosme. O Pássaro sumiu, simplesmente desapareceu na escuridão ao fim da escada, como fosse uma alma penada. Ele viu o Sótão, o mesmo que havia visto antes, porém agora se recordava daquele lugar de outra maneira.

“- Papai”

As lágrimas minaram os olhos regando uma loucura crescente e surreal. Apanhou a arma na cintura, e caminhou em direção a porta.

"Eu via apenas o ombro de Tony, quando papai correu para a janela e saltou, quebrando vidros e madeira. Antônio sequer teve tempo de tentar impedi-lo. O corpo aterrissou sobre o poste pontiagudo da cerca. Assistimos os últimos minutos de papai, do vão aberto da janela, atônitos. Para sempre aquela cena ficaria gravada em minha mente. Antônio me manteve em seus braços, extremamente protetor. Quinze anos mais velho que eu, assumiu a responsabilidade de me criar, um verdadeiro tutor. Me mimava atendendo a todos os meus caprichos e era evidente que nunca se recuperou daquela tragédia. Ficou louco, ou apenas libertou uma loucura que estava adormecida dentro de si. De uma coisa nunca tive dúvidas, apesar de tudo, Antônio só queria me fazer feliz.

Quando me trouxe uma boneca, no meu primeiro aniversário sem papai, ateei fogo nela afirmando que era um lixo de brinquedo, que não fazia nada. E continuei gritando que, se quisesse me ver feliz, deveria me trazer um presente melhor. Queria muito uma boneca que eu pudesse cuidar, mas que não fosse barulhenta porque choro de criança me irritava. Que eu pudesse dar papinha e cuidar como as mamães cuidam dos bebês. Naquele momento, notei algo peculiar nos olhos de Tony. Sabia que ele daria um jeito de me satisfazer, sempre dava. Contudo eu desconhecia os limites da insanidade de meu irmão.

Herdamos a mansão, juntamente com empregados, e um bom dinheiro. Antônio se formou médico, assim como papai. Naquela época os estudos tomavam quase todo o seu tempo, era muito dedicado e reservado, mas me visitava periodicamente. Não me recordo de ter ganhado presentes nesse intervalo de tempo e a cada aniversário eu tinha meus ataques de fúria.

As empregadas responsáveis por cuidar de mim se tornaram as principais vítimas das minhas pequenas egocentricidades. Dona Matilde fora contratada por Antônio, e assim eu estudava em casa. Ele sempre me dizia que um dia seria capaz de realizar todos os meus sonhos. Nada parecia ser impossível para ele, nada.

Foi então que ganhei minha primeira boneca perfeita. Pepê, você que foi minha companheira desde os meus treze anos até meus vinte e três. Ah, como tenho saudade de você. Lembra como fiquei espantada de início, afinal não era mais nenhuma menininha, mas logo que pude abraçá-la, e senti o primeiro arrepio dela, aquela vontade de escapar. E simplesmente não podia. Eu o agradeci tanto pelo presente, tanto.

O tempo foi passando e quando Antônio fez cinquenta e um anos contei a ele a verdade. Não foi algo voluntário ou planejado, feito aquelas confissões que surgem por dignidade. Aconteceu no momento que eu abraçava Bibi, minha última boneca. Seu nome era Gabriela, o nome antes de ser o que havia se tornado. Em algum momento senti algo por ela, talvez pena, não sei bem explicar, quem sabe tenha sido um carinho especial. Ela era tão linda, tão perfeita. Aquilo tudo era errado, já estava cansada daquela brincadeira. Acho que em algum momento acabei crescendo, mesmo que tenha sido tarde demais. Sem perceber, a abracei, chorando, e pedi desculpas.

Acho que ele já vinha percebendo isso naquele ano, estava sempre por perto nos sondando e viu tudo. Tony não tolerou aquele meu gesto de fraqueza ou talvez tenha sido um ciúme feroz.

Não sei o que houve. Foi um acesso de raiva. Apanhei tanto naquele dia, tanto, carrego as marcas da fivela no corpo até hoje. Ele sempre foi a única pessoa que eu respeitei. Ao fim do último ato, trancafiados naquele sótão, quando ele me acertou a cara, não suportei mais, confidenciei meu segredo mais imundo. Tony sentiu o ódio descer e travar na garganta feito bola de ar que entra quando se bebe um copo d’água numa sede descontrolada. Caiu em si, e foi um tombo tremendo.

Eu não estava preparada para aquela separação súbita e também fiquei muito furiosa e por isso, ou talvez por estar cansada daquela história, joguei toda a verdade sobre a cena com o papai, bem na cara dele. Ele se abateu muito mais do que eu podia imaginar. Pareceu perder as forças das pernas e sentou à minha frente, com uma expressão chocada. Naquele dia eu perdi meu irmão."

Jud continuava a leitura, compenetrada. Em algumas páginas chegou a pensar em fechar o diário, mas agora era tarde demais. Precisava conhecer o desfecho.

Lembranças que não eram dele pairavam no seu subconsciente. Cosme via a imagem de um homem velho, entrando no sótão e fechando a porta atrás de si. Imagens apareciam e desapareciam em sua mente. Um homem carregando um banquinho de madeira, uma cinta sendo manuseada com cuidado, o homem acariciando um poleiro velho, fixo numa mesa, sobre as iniciais “PP”, assobiando uma bela canção. As imagens foram ficando confusas, pernas se agitando no ar, sobre um banquinho tombado e era como se a cinta estivesse em seu próprio pescoço. Sentiu na boca um gosto forte de sangue e a persistente falta de ar.

Alguém batia com toda força na porta.

...

"Estou há tanto tempo sozinha nesse lugar. Essa casa tornou-se um grande cemitério de almas torturadas. Ainda posso ouvir seu assobio pela casa, Pepê, e fico imaginando Tony cumprindo sua promessa ao menos mais uma vez, surgindo aqui com uma última boneca no meu aniversário.

Sabe, Pepê, relembrar essa história depois de tantos dias de solidão me trouxe algum tipo de alento que há muito não sentia. Agora quero partir também, quero estar com todos vocês, mas não tenho a coragem que papai e Tony tiveram, tampouco quero ser como você, esperando a morte chegar em um poleiro.

Passei estes últimos anos pensando nisso, e encontrei, no caderno de anotações de meu irmão, as informações necessárias sobre como executar o meu plano. Foi difícil encontrar a pessoa certa, o médico certo, mas já está tudo arranjado. Entre seus muitos poderes, o dinheiro tem também o de encher as pessoas de coragem e disposição.

Eu me diverti tanto com elas, agora é como elas que quero viver meus últimos dias. Eu devo isso ao Tony, tenho certeza, que de todas, eu fui sua boneca preferida. Sua eterna boneca de louça que ele não se cansava de mimar."

A leitura de Jud foi interrompida por um barulho da porta a ponto de ser arrombada. Sentiu medo!

"Pepê, você sempre foi o elo maior entre nós e mamãe, desde que ela morreu, quando ainda eu era recém nascida. Tony me contava que ela cantava lindamente para nós dois dormirmos, e dançava me carregando no colo, fazendo roda, ela, papai, Tony e eu. E quando papai nos presenteou com você, com seu canto tão lindo, era como se mamãe estivesse ali novamente. Tony não se cansava de ouvi-la, ele sempre queria mais e mais e papai, com muito custo, nos fazia descer para que você pudesse descansar.

Sei que nos amava muito também, Pepê. E sei que compreendeu quando Tony e eu furamos os seus olhinhos para que cantasse ainda mais alto e mais bonito para nós.

Obrigado por você nunca ter me abandonado."

Cosme arrebentou a porta, Judite fechou o diário e olhou nos olhos do pai. Percebeu de alguma forma que aquele não era ele. Não podia ser. Não houve palavras, dizer o que, ela correu até ele e o abraçou, apoiou seu rosto na barriga do pai ou de Antônio, e então não viu mais nada.

Acordou, de verdade, alguns meses depois, em um local que cheirava a mofo e poeira. Estava no encontro de duas paredes, no ar. Lembrava-se de muitas coisas que haviam acontecido, mas não com a clareza necessária para formular e ordenar as lembranças. Apenas recordações amargas de um inconsciente hospedado pelo passado. Seus olhos varreram o local, a primeira coisa que pôde ver era uma mesinha um pouco abaixo de si, com recortes de jornais datados de dois mil e dezoito, onde as manchetes destacavam a epidemia da quarta evolução do vírus mais letal que a humanidade havia presenciado.

Olhou em direção a parede lateral, onde havia uma espécie de moldura, como um diploma, a centímetros de si. Mas não era isso, as letras do título eram maiores e claras, tratava-se de um testamento. A assinatura por mais que ilegível, fosse por dedução ou não, não importava, ela sabia de quem era aquela letra. Surpreendeu-se somente com o nome do beneficiário do testamento, ela conhecia aquele sobrenome; “Montenegro”.

Queria gritar, mas não podia. A garganta estava seca, efeito dos remédios, anestésicos, e tudo o mais que haviam sido injetados. Sentiu-se vacilante, olhou para o chão e percebeu que estava há quase um metro dele, dependurada, em um cabo de aço que ia de canto a canto da parede, um gancho a prendia pelas costas, entranhado em sua pele. Queria se mover, mas os movimentos se assemelhavam a capacidade de locomoção de uma minhoca, os braços e pernas eram de silicone, assim como os dentes.

A sede era implacável, a dor começava a voltar. Sentiu o peso de um colar no pescoço. Duas mamadeiras pendiam meio a seus miúdos seios. Não podia ler, ainda, mas em uma delas, estava escrito “Para dor”, na outra “Soro”. Não queria olhar para o lado direito, mas a curiosidade a impeliu a isso.

E lá estava, uma fila de bonecas humanas. Inclinou o pescoço um pouco e viu que estavam imóveis, de alguma forma eternizadas, talvez embalsamadas, não sabia como conseguiram mantê-las em tão perfeito estado. Entretanto uma das bonecas chamou-lhe a atenção, a terceira da fila, mais próxima dela, a única de aparência diferente, uma mulher de mais idade. Ainda assim, muito bela. O estranho e bizarro, foi que, por um segundo, os olhos da boneca pareceram piscar.

Cosme acordou assustado. Estava deitado no sótão, de pé ao seu lado o Doutor, e dois oficiais da nova ordem, um grupo de pessoas comuns que se auto intitulavam a lei, pessoas como ele.

- O que foi? O que aconteceu? – Indagou, completamente confuso. Ele havia desaparecido por semanas e mal sabia – Sua casa, Doutor, ela é amaldiçoada – O Doutor quase riu.

Cosme estava nu, e aquela era a pior coisa que podia acontecer. Recebeu um chute na boca do estômago, um chute do próprio doutor. Curvou-se, de lado, e logo viu aquilo que o aterrorizou. Dois braços e pernas em estado de decomposição, e ele abraçado a eles, mas como não reconhecê-los. Vomitou, não pela sensação de nojo, pois estava acostumado a imagens piores. Vagas lembranças, gemidos, gritos, ecoavam em seu íntimo. “Meu Deus!”.

“Papai! Papai! Papai!” – A voz de Judite era um eco intermitente no seu cérebro.

Virou-se de costas, a face esquerda apoiada sobre o próprio vômito. Não havia nada de errado com os olhos, os mesmos olhos que o pássaro havia furado. Entretanto no dorso uma única sentença, um maldito segredo de pai, daqueles que só se guarda na intenção de viver para proteger uma filha. Larvas vagavam dentro de bolhas d’água, dançantes com seus rabinhos minúsculos ensaiando a valsa da morte. A pele e carne inflamadas fediam, mas o cheiro do repelente afastava o odor. No chão, as lágrimas se misturavam com a poeira, untando sua pele com uma lama rasa e fresca.

O doutor apenas assentiu com a cabeça. Um dos oficiais sacou a arma, o metal beijou a nuca de Cosme. Este fechou os olhos, e quando o gatilho foi puxado, não escutou o som do disparo, não houve tempo de perceber a dor, somente ouviu o som de uma Graúna, assoprando um último assobio na mais completa escuridão.

Temas:

Possessão

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Catástrofes

Lendas Urbanas

Sidney Muniz e Carmem Soares
Enviado por Sidney Muniz em 25/02/2016
Reeditado em 01/03/2016
Código do texto: T5555482
Classificação de conteúdo: seguro
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