A Morte que Nasce, Morre e Nasce de Novo - DTRL 27

Morri! Ainda não eram cinco horas da manhã. E já morria! Tão cedo, tão jovem, tão vivo, tudo tão estranho. Mas apagaram minhas luzes.

Pensava e tinha certeza que a morte era o fim de tudo. Porém ao longo dos anos, criei um outro conceito para o término do ciclo existencial. Levei em conta os ocorridos na rua onde moro, a Alitê Santana Ixalá, mais conhecida como rua Corredor dos Aflitos ou Corredor da Morte. Conquistou estes apelidos por ter muitas árvores robustas e pelas várias mortes misteriosas que ocorreram e ainda ocorrem. Alguns afirmavam que um morador, ou moradores falecidos, voltavam para buscar outros. Um ciclo interminável. Sorria e me divertia com as histórias. Achava ridículas. Como poderia uma pessoa morrer, nascer e voltar para levar um vivo para a morte e logo o que era vivo, morrerá, nascerá e retornará para levar outro. “Ahhh…” - dizia - “Contem outra”. Isto era só mesmo nos livros e filmes. Não ali, naquela rua estranha. Não, até acontecer comigo.

Sempre tive em mente que existiam alguns tipos de mortes. A morte que nasce do nada. A morte que nasce premeditada e depois conheci a mais assustadora: a morte que nasce, morre e nasce de novo. Custei acreditar, mas a morte pode ser algo reversível. Mesmo que a contragosto. Esta foi minha trajetória cercada de mistérios, pavor e tensão.

E tudo começou num dia choroso e macabro. Temperatura abaixo de zero. O frio era intenso e deduzi, em minhas observações chulas, que o sol surgiria enrolado nas nuvens, para se aquecer.

Quando abri o portão de casa, deparei com uma pequena e humilde chuva. Notei algo diferente e inusitado: só chovia do portão para fora. Fiquei desconfiado, mas aceitei, afinal, a natureza tem suas estranhices.

Após caminhar alguns metros, fui surpreendido pela piscada torta de um farol de cor diferente. Virei. A luz era forte e avermelhada. Não consegui ver nada. Retornei meu caminhar. O automóvel veio bem devagar. Passou a acompanhar-me. Lado a lado. Pensei até em correr, mas o medo era tanto que meus sentidos não respondiam. Discreto, olhei para o carro e percebi que era um Cadillac 1950. Eu tinha grande admiração. Pensei comigo “Não pode ser tão ruim assim”. Lembrei que tinha um igual na garagem de uma casa no outro quarteirão. Onde era o bar do lendário Tião das Sombras. Morto há mais de cinquenta anos. O veículo estava todo empoeirado. Estragado. Vidros e faróis quebrados. Sem bancos. Desde que o Tião morreu, os familiares abandonaram o automóvel. Tinham medo de mexer. Diziam que era amaldiçoado. Tião, quando soltava os últimos suspiros, disse que se removessem o automóvel, ele voltaria e assombraria todos os moradores da rua.

Ao chegar perto da casa onde tinha um carro semelhante aquele, espantei. A garagem estava vazia. Esfreguei os olhos. Olhei bem. De fato, o carro ali ao meu lado era o mesmo da garagem. Começava ali o meu calvário.

Os vidros da Cadillac, intactos, tinham insulfilme preto. Película cem por cento. Não dava para ver nada. Talvez fosse melhor assim. Não queria saber quem estava dentro. Pelo horário e circunstâncias, obviamente não podia ser coisa boa. Mas continuei a seguir pela calçada e o carro a acompanhar-me pela rua.

Num determinado instante, o vidro começou a baixar. Bem lentamente. Estremeci. Para piorar, começou a emitir um som demoníaco. Fechei meus olhos para não ver quem era, porém uma voz rouca e cheia de energia negativa chamou meu nome. Abri os olhos e olhei. Era o Tião das Sombras. Tinha os olhos tensos e sombrios. Assustei, mas continuei a caminhar. Aumentei a velocidade dos passos, sem demonstrar medo. Minha justificativa era a chuva, apesar de fina e inofensível.

Ele continuava a seguir ao meu lado. Pisou no acelerador e no freio de forma brusca e agressiva. Meu coração quase parou. Continuei a seguir. Firme e até então convicto que aquele momento passaria. Enganei de novo.

Novamente chamou meu nome. Apesar que tinha somente nós dois na rua, fingi que não era comigo. Ele repetiu. Continuei a fingir. E aquele senhor, com a voz amaldiçoada, disse em alto e bom som:

- Não adianta! Chegou sua hora! Seu fim! Álaxianatnasêtila… Álaxianatnasêtila… Álaxianatnasêtila… A maldição foi lançada! Logo morrerá! Mooooorrrrreeeeerrrrraaaaa!!!!!

Depois daquilo já me considerei morto! Porém meu coração aguentou. Mas senti a morte bem próxima. Era irrevogável. Saquei na hora que aquelas palavras eram assassinas. E elas vieram seguidas de uma gargalhada mortal. Arrepiei! Iniciei o sinal da cruz e ainda no nome do Pai, fui interrompido por uma trovoada. Tião olhou-me, viu minha trepidez e arrancou o carro. Desapareceu. Eu queria ter tido forças para chamá-lo de mentiroso. Disse que se mexessem no carro voltaria para assombrar. Não mexeram no carro. E ele não voltou para assombrar. Voltou para assassinar moradores da rua.

Enquanto penava, fui levado por força maior para o meio da rua. O céu, naquela manhã, perdeu sua simplicidade. Estressou! E eu, debaixo de nuvens tristes, vi e senti as gotas que despencavam ganharem peso e cor avermelhada, como os faróis do Cadillac.

Comecei a correr, na tentativa de escapar daquela tempestade. Cada gota que tocava meu corpo, parecia abrir feridas. Ardia e queimava. Temeroso, ao conferir detalhes da minha pele, percebia que começava a desaparecer. Mas ainda sentia o conteúdo celular. Apesar do temor, continuava a correr. Desesperado! Aos poucos, fui perdendo o controle das minhas pernas. Mas continuava a correr. Perdi o fôlego. Mas ainda corria. Ao suspirar, num momento de distração, aquelas águas vermelhas atravessaram minha garganta. Foi a sentença final. Morri ali. Mas não parava de correr.

Mesmo morto, pensei “Talvez seja maldição desta rua. Logo estarei livre. Talvez até vivo.” A rua Alitê Santana Ixalá tinha apenas três quarteirões. Só que toda vez que chegava no fim da rua, estava no começo de novo. E era sempre assim. “Quanta ingenuidade minha” - falei com a voz entrecortada. Naquele momento já estava morto! Morri sem perceber.

Não conseguia parar de correr pela rua. Parecia um castigo. Passei em frente a minha casa por diversas vezes. Passei pelo bar do Tião das Sombras. Despistei para ver se o Cadillac estava na garagem. Ele retornou depois de algumas horas. Talvez dias. Anos, sei lá. Pois eu já havia perdido a noção do tempo. Só corria.

Depois de um período longo, comecei a adquirir controle de minhas pernas. Consegui parar de correr. Cheguei em frente a minha casa. Sentei na calçada. Suspirei fundo. Algumas pessoas passavam por mim. Pareciam não me ver. Pra mim não importava. Não sabia se estava vivo ou morto. Pairou sobre meus pensamentos uma terrível sensação de abandono físico. Abaixei a cabeça, entristecido.

“Bom dia jovem cavalheiro”. Olhei e era comigo. Aquelas palavras me trouxeram alegria. Depois de tanto correr, voltei a sorri. A jovem, de cabelos dourados, continuou a conversa. Elogiou minha casa. Perguntou se estava tudo bem comigo. Disse que eu parecia pálido. Que era bom olhar no espelho. Ela deu uma gargalhada sarcástica. Mas eu fiquei feliz.

Despedi dela cheio de esperança. “Acho que estou vivo”. Corri e entrei em minha casa. Fui ao banheiro. Lavei o rosto e ao conferir a informação daquela jovem, se estava pálido, entrei em desespero. Não vi a minha imagem no espelho. Lembrei que havia visto a foto daquela moça num jornal. Era a Maria das Bruxas. Foi a primeira moradora desta casa. Morreu há mais de setenta anos.

Voltei para a rua. Observei que as pessoas estavam bem agasalhadas. E eu não sentia calor nem frio. Nada. Para aumentar minha aflição, olhei para o chão e eu não tinha sombras. Pensei comigo “Maldito Tião das Sombras. Descobri o motivo do apelido”.

Sozinho, morto, sem sombras e imagem no espelho, restava-me entrar e adormecer. Foi o que eu fiz. Aliás, era minha intenção. Quando cheguei na porta do meu quarto, depois de tantas surpresas e mistérios, eis outra surpresa: meu corpo estava sobre a cama. Senti um grande alívio. Disse baixinho “Foi só um pesadelo. Como nos filmes. A alma sai do corpo por algumas horas e depois volta”. Sorri da situação. Repetia a palavra pesadelo. Caia na gargalhada. Fiquei feliz. Depois de muito tempo. Sorri de verdade e com vontade. Só surgiu uma dúvida. Como faço para voltar?

Caminhei a passos lentos em direção ao meu corpo na cama. Para meu desespero, ele se mexeu, despertou. Abriu os olhos e convidou-me a sentar ao seu lado para um bate-papo. Naquele momento morri de novo. Perdi as contas de minhas mortes.

Pensei que seria para sempre. Não! Acordei de novo. No chão do meu quarto. Olhei para a cama e não tinha corpo nenhum.

Cansado, vi sobre a mesa um jornal empoeirado. Não lembrava daquele jornal. Conferi a data. Tinha mais de um ano. Comecei a ler. Na capa, tinha uma foto minha com a manchete “Mais uma morte misteriosa na rua Alitê Santana Ixalá”. Não assustei. Fiquei feliz, pois naquele instante sabia que estava morto de verdade. Mortinho!

Tocaram a campainha. Uma. Duas vezes. Não dei a mínima. Eu estava morto mesmo. O que quereriam com um morto? Insistiam. Não parava de tocar a bendita campainha. Me irritei. “Vou abrir a porta e assombrar esta pessoa”. Fui determinado. Quando abri e vi quem era, gritei: “Você não! Não! Estou morto, cansado, desiludido e vem você bater a minha porta? Não está satisfeito?”. Era ninguém menos que o maldito Tião das Sombras com o Cadillac parado no meu portão.

Tião percebeu minha ira e antes de qualquer coisa, chamou-me para passear no Cadillac. Fazer novas vítimas. Refleti e como não tinha nada para fazer, aceitei. Mas não tinha esquecido o que ele fez comigo. Decidi que na primeira oportunidade o mataria de novo. Não foi difícil descobrir as palavras que ele utilizou para fazer aquela maldição. É o nome da rua de trás pra frente. O Tião das Sombras vai sentir a tortura que é ver nascer a morte, nascer e depois morrer de novo. Fez várias vítimas e merece um castigo.

Temas: Sobrenatural e Cultura Latino-Americana

Cláudio Francisco
Enviado por Cláudio Francisco em 29/04/2016
Reeditado em 22/05/2016
Código do texto: T5620162
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