Por ser mulher

Nem é tão tarde, mas a rua está particularmente escura. O sol se escondeu um pouco, a iluminação pública falhou, o movimento diminuiu de repente, ficou ermo. Seu destino é logo ali. Você segue. Afinal, você é uma pessoa adulta, tem seu celular em mãos e seu salto não é tão alto. São apenas mais alguns passos e estará lá, sã, salva e protegida.

Primeira regra que aprendeu quando criança foi que havia nascido sob o signo da fêmea, e, por tal, deveria sempre estar alerta aos perigos do mundo. Você é mais frágil, você não tem direito a tantas vontades, você nem sempre será respeitada. Nem tinha seu corpo formado quando começou ouvir os comentários indesejados sobre seus atributos. Desde que se conhece por gente foi assim. Andar na rua e gera alguma virada de cabeça, um assobio mais alto, um sonoro “gostosa”. Não importa que roupa escolha, que esteja com o cabelo oleoso, sem maquiagem, alguém vai falar. Só que você tá acostumada, incomoda, mas, ignora. O mundo é assim mesmo.

Seu olhar fixa-se para o chão, a calçada é irregular e está um pouco suja, sua sombra segue a sua frente como guia. Só mais algumas quadras, você repete mentalmente. Notas de quem se vê sozinha na escuridão indesejada. Ao longe percebe um carro, seu olhar não se levanta, mas sente a velocidade diminuir a cada instante que se aproxima. Seu foco é em segurar mais firme sua bolsa, em não largar seu celular. Enquanto o veículo lentamente passa ao seu lado, você encolhida e desprotegida, sente aquele fitar malicioso de que conhece bem. Ele segue e você volta a respirar. Mais algumas quadras e estará bem.

Quando pequena começou a desenvolver um sexto sentido para o perigo. Qualquer respiração desproporcional, qualquer ruído desconectado, qualquer alarde indevido faziam seu corpo saltar. Sobressalto que não escondeu quando sua sombra encontro outra sombra. Do sobressalto ao passo acelerado, ao grito escondido, ao desespero contido... ao susto, que só passou quando viu outra mulher cruzar a sua frente. Houve condescendência ao medo.

O destino a frente, a calma com a luz. E lá dentro discutiam mais uma história absurda onde o final justificou o medo. E você acorda por segundos: Isso nunca vai mudar?

Karla Hack dos Santos
Enviado por Karla Hack dos Santos em 28/05/2016
Código do texto: T5649694
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