Ele engoliu o Sol

1 - Feto

Virgílio vivia na mesma baiuca a trinta anos, viúvo, decidiu que o casarão era moradia ideal mesmo usando apenas vinte por cento da residência.

Nos meses que precederam sua morte reclamava diariamente para os vizinhos sobre barulhos que não o deixavam dormir a noite.

A proximidade com a floresta e o rio levava os poucos amigos a crer que se tratava de um grande rato ou outro roedor silvestre.

Obcecado, cansado com a inquietação, Virgílio identificou que o encanamento do casarão seria o berço da algazarra. Com o passar dos dias os canos entupiam e faziam ruídos horríveis.

Chamou profissionais que resolviam momentaneamente o problema e cobravam os olhos da cara. Encontravam coisas estranhas nos canos, lascas, cascas, pedaços de ratos triturados e diziam ao velho que o encanamento estava repleto de vazamentos.

Parecia o início de um empreendimento de reforma épica. O dinheiro estava rareando e o velho respondia que só queria dormir.

Munido de uma picareta, incapaz de pagar mais encanadores, Virgílio encucou que o que o atormentava, o chamava, havia se alojado na parede onde ficava encostada sua cama.

Concreto do bom, de várias camadas, compunha as paredes do casarão e a parca força derivada da velhice fazia o velhote avançar pouquíssimos centímetros diariamente.

Delirante, insistia aos conhecidos que algo raspava na direção de seus golpes.

Sabe-se que determinada madrugada o velho gritou aos quatro cantos que ia exterminar a coisa e avançou ainda mais determinado.

Seu pobre coração não aguentou.

Foi encontrado ainda com a picareta nas mãos.

Dois dias depois chegou uma bisneta da capital, disse que ia por abaixo o casarão do bisavô senil. Isso mesmo, chamou o defunto de senil na frente dos amigos dele.

Enfiaram bombas e trouxeram carros de demolição pra completar. Começaram a arregaçar tudo.

Juro por tudo que é mais sagrado que nunca ninguém se viu tanto homem feito correr como criança por aqui.

Havia sobrado de pé somente a fatídica parede, o concreto ali era uma coisa de outro mundo como eu disse.

Atrás dela algo enorme, disforme de cabeça imensa projetava o que parecia ser um braço com enormes unhas onde ficava a cama do velho.

Veio cientista até da puta que o pariu. Pelos testes disseram que aquele monstrengo enorme era um feto.

Um feto!

2 - Sala dos professores

- Isso aqui é sério!

Olha o tamanho desse lugar. Meu nome é Juválter e estou aqui pra te apresentar o trampo, o nome daqui é complicado mas todos nós chamamos de sala dos professores.

Por quê?

Somos professores oras, a escolha era óbvia.

Trabalho aqui a oito anos, eu era como você, mais um professor com notas excelentes fadado a rede pública. Cumprindo a carga em salas atulhadas de pequenos bárbaros que me humilhavam por causa do meu nome. Um dia, depois de diversos testes para verificar minha pontuação fui chamado para trabalhar nesta divisão da defesa nacional.

Tive de optar por seguir uma vida sem desafios ou encarar as verdades do mundo. Lembrando da minha mulher(que é insuportável) ficou fácil decidir.

Aqui estão os melhores matemáticos, físicos, químicos, linguistas, geógrafos, historiadores, sociólogos, professores de diversas áreas. Antigamente eu ditava os rumos dos currículos escolares de turmas de quarenta ou cinquenta alunos(obrigado governador filho da puta), hoje lido com questões que mantêm o solo sob nossos pés ou a segurança de olhar para os céus. No conselho daqui, semana a semana, podemos descobrir coisas que podem acabar com tudo o que conhecemos ou podemos criar enigmas que igualmente derrubariam tudo.

Na semana passada dois agentes gringos, um alto e estranho e uma ruiva bisbilhotaram por aí na entrada e foram devidamente apagados pela segurança.

O funcionamento da sala dos professores é de conhecimento restrito da defesa nacional, o presidente não sabe que estamos aqui. Por isso se está na minha frente sei que já abdicou de bom grado de sua vida lá fora. Mês passado emitimos cartas de aviso alertando moradores num perímetro de duzentos quilômetros daqui a não utilizar a rede elétrica quando ouvir sirenes intermitentes, o risco era mortal. O que eles não sabiam, é claro.

Se as cartas eram registradas?

É claro que não. Restou torcermos pra que o medo guiasse o povo.

Se ocorreram baixas?

Lógico que sim, quinze pessoas foram fritas em suas casas enquanto assistiam televisão.

E as cartas? Dissolveram-se em 24 horas, salvamos cerca de duzentas e cinquenta mil habitantes naquele dia. Nossos matemáticos acusaram uma porcentagem ínfima de mortes e estavam certos.

Do que você gosta?

Em seu alojamento você terá um acesso ilimitado a filmes, livros e música. Na sala de interação GoT, Sopranos e Heisenberg com seu chapéu rolam o dia todo em enormes telas. se estiver solitária há um cardápio de garotos de programa limpos e se for de seu gosto há um cardápio de garotas.

Tudo bancado pela defesa.

Minha mulher não sabe do meu paradeiro a oito anos!

A vida que eu sempre quis, aqui realmente te recompensam por ser nerd.

Você é arqueóloga e bióloga estou certo? Leia este depoimento de um morador de Manaus e depois temos um bichinho interessante no necro. Bem vinda a sala de professores! Vamos salvar o mundo esta semana, ou tentar destruir o mínimo possível!

3 - Gonzo

Esse diário não tem data.

Você pode julgar, dizer que li Thompson demais ou bati a cabeça. Eu estava cursando jornalismo, mesmo com o mundo dizendo que era perda de tempo. Um dia senti um estalo, liguei para o meu bendito pai(e responsável pelos boletos da faculdade) e disse que queria ir na linha do Gonzo.

O velho me esconjurou, preferia me ver em um belo terno no telejornal da manhã e não enfiado em furadas fazendo não sei o quê. Pra resumir ele me deu as costas e mandou que eu me fodesse sozinho.

Mas eu encontrei A MATÉRIA da minha vida e posso dedicar ao meu velho e querido pai: foda-se!

Entre um baseado e outro com um ambientalista que havia se enfurnado com as tribos mais isoladas da Amazônia, descobri a localização de um rio que corre abaixo de outro rio na alta selva. A matéria referia-se a outra coisa dita pelos índios, falaram para ele sobre "irmãos" que viviam ao redor deste rio abaixo do solo!

Primeiro pensei que a maconha estava batendo forte mas a riqueza de detalhes foi tão grande que fiquei com aquilo na cabeça.

Pra piorar topei por acaso com uma notícia bizarra na televisão local, haviam encontrado um animal monstruoso e nunca visto nas ruínas da casa de um morador.

Com a internet liguei os pontos e verifiquei que a casa ficava em cima de onde o ambientalista dizia ficar o rio subterrâneo.

Fui me entupindo de tudo o que podia saber sobre o estranho caso no caminho. Alguns biólogos soltaram informações para o jornal. Diziam que o ser era hermafrodita, possuía características humanoides, reptilianas e aquáticas. O tamanho passava de doze metros, parte do corpo foi destruído por explosões nas fundações da casa em que fora encontrado. Os muitos olhos eram adaptados para o escuro. Sim, o corpo foi encontrado próximo a parede do quarto do velho que morava ali.

Assustador não?

Parecia que a criatura saiu do solo atraída por algo e morreu com as bombas.

Suas formas fizeram especialistas deduzirem que locomovia-se lentamente com seus poderosos músculos e possuía grande força.

A polícia dizia ser alguma aberração saída do rio. Parei de ler quando minha condução me deixou perto do lugar.

Os curiosos diminuíram drasticamente, o povo da região sumiu dali em reverência ao imenso corpo que fora levado.

Um policial que perambulava disse que o governo em breve chegaria com fitas de isolamento e equipe preparada para vasculhar o lugar. Se não fosse a burocracia deste belo país eu não conseguiria chegar antes deles.

Confiando na lentidão das coisas molhei as mãos do guarda para bisbilhotar, os escombros do casarão lembravam filmes de guerra.

Um cheiro indecifrável açoitava o ar, parecia toneladas de mofo com podridão adocicada. Não é possível conseguir definição melhor.

A densa parede de concreto com vários centímetros de espessura parecia um monolito, um ídolo da destruição.

Comecei a bater fotos e com a luz dos flashes vi um brilho onde a criatura cavara. Confesso que à distância fiquei intrigado, me aproximei e vi uma pedra escura enfiada no concreto, como havia parado alí? Talvez nunca soubesse.

Tive de tomar cuidado para não cair no buraco às minhas costas.

Ouvia ao longe ruído de carros, desesperado toquei o objeto e levei um choque grande.

Um arrepio percorreu todo o meu corpo, cobri as mãos com minha blusa e torci para que aquela coisa se movesse. Não foi preciso, parece que minha tensão e minha pressa criminosa seria recompensada, a rocha escura soltou-se nas minhas mãos.

Me escondi na vegetação esperando os carros se aproximarem, meu sentido de jornalista me dizia para ficar escondido e saber mais. Deixei a pedra que me queimara os dedos no chão. Primeiro eu vi grandes picapes com homens de terno que vasculharam rapidamente as ruínas.

"Não está aqui!"

Gritou um deles apontando para o monolito de concreto. Rapidamente abandonaram o lugar.

Depois de vinte minutos, chegaram os homens do governo com viaturas da polícia local. De uma van desceu um grupo de cdf's com calculadoras e outros apetrechos. Pareciam dar ordens para a força policial, com um instrumento mediam a radiação da parede(é o que eu achava) em seguida orientaram que outros homens explodissem e selassem aquele grande buraco.

Esperei até as quatro da manhã, até o último carro sair de lá. Em minha solidão pensava no que fazer, a pedra seria de material perigoso?

Se fosse, já era tarde, a cobri com minha blusa.

Ao chegar no quarto de hotel examinei minuciosamente aquela coisa estranha. Os entalhes bizarros desenhavam uma história e eu sabia quem poderia ajudar a traduzir.

Ou dar um norte ao menos.

No dia seguinte fui procurar o ambientalista que devia estar entupido de drogas em um dos lugares de sempre.

E ia pensando no som que emanava daquele grande buraco.

O som nefasto do rio subterrâneo.

4 - Velhos espíritos

Megaron, o velho chefe, tomou a pedra nas mãos. Na roda, de pernas cruzadas fumavam a erva. O pálido jornalista e o viciado estavam atentos as palavras do ancião.

Megaron não gostava do vermelho ambientalista, achava que sua "amizade" escondia oportunismo com a tribo, aceitou ajudar pois o achado era um pedaço da história de seus irmãos, de outros velhos espíritos, entorpecido pela erva começou.

"Aqui conta velho espírito. Nossos irmãos não viviam aqui embaixo. Eles corriam com bichos da árvore, do mato, nadavam com os peixes e os botos.Um dia terra quebrou e caíram fundo.

Quem viveu protegeu quem se machucou e ficaram presos no escuro. Esperaram descansar, passar, não tinha fogo, não tinha luz e nem calor. Esperaram encontrar irmãos que morreram caindo.

Então encontraram rio e festejaram tomando água do rio.

Viram luz e ficaram felizes com a luz."

Megaron mostrou aos dois uma parte da pedra que mostrava homenzinhos se curvando para algo grande e bizarro.

"Mas luz vinha dele, dele que os jogou lá, que com pele brilhante deixava que irmãos pegassem peixe estranho no rio, que irmãos pudessem ver um pouco.

Quando dormia, ele apagava e irmãos ficavam bastante tempo no escuro. E muitos irmãos adoeceram e morreram, morreu força da aldeia, homem forte caiu, velho caiu, criança caiu.

Quando acordava irmãos se levantavam de novo e ficavam felizes. Mas ele tinha fome e comia alguns irmãos; pra fazer isso só estendia braços sentado onde ficava. Depois dormia e da água vinham outros que comiam irmãos e irmãos guerrearam com outros.

E irmãos passaram vida assim, nos sonhos sabiam que ele veio da água fria e estava ali pra criar filhos.

Ele falava na cabeça de sonho dos irmãos.

Irmãos eram peixe, irmãos eram caça dele.

Ele engoliu o Sol!"

Os olhos do jornalista brilhavam com a descoberta, uma prova da história da tribo subterrânea. Megaron estava estático, o ambientalista foi o primeiro a falar:

- Meu, temos...

E foi cortado pelo índio:

- Fechar buraco, sumir com pedra, ninguém mais deve achar isso.

- Não. Temos...

- Fechar buraco. Sumir com pedra.

Apavorado o jornalista viu o viciado ser massacrado com as bordunas. Megaron apontou pra ele:

- O que fazer?

O filho da cidade grande respondeu:

- O buraco está fechado, eu vou sumir com essa pedra.

O chefe apontou fora da aldeia:

- Então vá com espírito paz!

5 - Reunião da semana

No Tártaro, Lucien recebia suas instruções durante a reunião.

- Eis o que fará:Pelo nosso jornal local você vai soltar a matéria dizendo que os rumores foram infundados e que a criatura encontrada não tinha nada de anormal. Vai dar a entender que tudo não passou de uma montagem para levantar o turismo na região. E por falar nisso, como vai o turismo da região Nero?

O ex apresentador de tv respondeu:

- De vento em popa, a hotelaria está lucrando três vezes mais desde a descoberta.

Lucien pediu a palavra:

- Posso perguntar o porquê dessa pedra ser tão importante?

Os outros membros da sala sorriram, o presidente respondeu:

- Imagine um despertador, o despertador mais antigo já conhecido feito por uma tribo que vivia no subterrâneo nas entranhas da selva, o gatilho de uma imensa arma.

Lucien não compreendia:

- Desacreditar a descoberta não faria o local ser ainda mais procurado? Como o túmulo de João Relojoeiro?

O presidente sorriu:

- Sim mas a ironia nos proveria mais lucros visto que não recuperamos o despertador, talvez nem iremos precisar dos talentos de Cecília com a propaganda.

- Você disse se tratar do gatilho de uma arma. O que seria essa arma?

O presidente fez uma cara grave:

- Faltam alguns níveis para que conheça essa verdade. Te adianto um petisco: seria algo que acabaria com tudo e mudaria o curso de nossa História, se alguém sobrevivesse para registrar, é claro.

Lucien empalidece sob a luz do entardecer.

6 - A espera e o sonho

Você é menor que um poro para meus olhos, sua limitada brincadeira chamada vida se resume as últimas semanas, quando teve acesso ao conhecimento da minha existência.

Sabe que eu existo mesmo, não?

Suas mãos tremendo denunciam, você me escuta desde que tocou a pedra mas começou a entender quando saiu da aldeia. Você me escuta acordado e te atormento até no sono.

E faço isso sem estar desperto, faço isso enquanto espero e sonho.

Sonho com vocês, vocês que foram desenvolvidos pelos Anciões, bobos da corte e gado com delírios de grandeza.

Vocês, cujos aparelhos sensitivos não suportam nossa influência.

Não adianta empurrar essas susbstâncias para me calar.

Eu te alcanço nos sonhos.

Você acorda no meio da mata, com a cabeça cheia das palavras certas, com a pedra nas mãos para me chamar.

E sabe do fundo da alma que o selo não vai me segurar lá embaixo, meus filhos podem ficar presos mas eu não, quando eu me levantar falarei na cabeça de todos.

Orgulhe-se.

Enquanto sonho falo somente com alguns.

E a terra se abrirá, uma escuridão horrenda cobrirá sua visão. Sentirá ventos devastadores e pensará que seu Sol foi engolido.

Nos vãos dos meus dedos notará as grandes cidades lá embaixo.

Paralisado, mijado de medo perceberá que minha imensidão tapou o astro rei.

E que você grita surdamente nas linhas da minha mão.

Acordou.

Estou aqui novamente, gostou do sonho?

Viu parte de mim que é maior que sua imaginação. Vá para a floresta!

Ou sonhará com o que eu quiser acordado ou não.

Abra a porta.

7 - Segurando a porta

- Puta que o pariu! Vou te dizer, tem gente que não sabe o quanto é trabalhoso tocar um hotelzinho igual esse. Ontem um cretino resolveu sujar todo o saguão com o cérebro, se atirou por uma janela do quarto. O pai dele veio até aqui, falou que o moleque era jornalista e o escambau. Queria que eu explicasse o que tinha acontecido. Olhei nos olhos do pobre e disse "seu...filho...se...matou". Ele não deixou nem uma gorjeta ou bilhete, não pagou nem a estadia do dia.

O sujeito de meia idade que ouvia perguntou:

- E o que você fez? Cobrou o pai dele?

O dono do duas estrelas respondeu:

- Eu não porra! Eu que encontrei o menino sabe? Vi a zona que o cimento fez com a cara dele, chamei a polícia e o caralho! Fiquei com pena do pai. Quando se é jovem... parece que o mundo vai acabar toda semana. Está olhando né? Gostou do meu novo aparador de porta? Encontrei lá fora perto do coitado, parece que algum hippie sujo entalhou nela toda. Pode pegar pra ver, vai lá!

Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 26/07/2016
Código do texto: T5710156
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