Álbum de dores

Íris revelava fotos em seu quarto escuro; no cômodo que antes era a suíte de seu quarto. Hoje, em volta de tantas fotografias espalhadas, era a primeira vez em anos que ela sentia algo de diferente; sentia-se dona daquele trabalho; já que antes seu namorado Leo se encarregava daquele serviço e ela era a fotógrafa. Agora ela fazia as duas coisas. O namorado se foi mas as despesas permaneceram e não podia se dar ao luxo de um assistente.

Fosse qual fosse o motivo Íris estava angustiada. O quarto improvisado não parecia certo, a iluminação também não e os sorrisos e olhares a sua volta muito menos. Ela só queria dormir e esquecer que tinha vida mas aquele combustível que alimentamos com o passar dos anos tinha sido acumulado com fervor nos seus anos felizes com Leo e, apesar de estar queimando mais rápido com a solidão, ainda parecia que ia fazer Íris resistir aquilo por mais longos anos.

3 horas depois Íris pôde descansar então deitou, fechou os olhos e em poucos minutos já estava em sua casa da árvore da infância. Ela entrou, sentou no chão e logo apareceu uma garotinha que parecia querer brincar. Tinha olhos azuis chamativos, cabelos loiros e usava um vestido daqueles que diz "eu tenho uma mãe que quer que saibam que tenho". Íris também era uma criança. Ambas deviam ter 5 anos e começaram a dançar e brincar até que a casa caiu inteiramente e, antes que desse para pensar no que tinha acontecido, Íris acordou. A princípio achou o acontecido perfeitamente normal para um sonho e então voltou a dormir. No entanto, quando acordou novamente sem ter tido sonho algum, a garotinha lhe veio à mente. Nada podia deixá-la mais aflita quanto o quarto para o qual estava prestes a voltar.

Os dias se passaram e ao invés do costume visitar Íris e acomodá-la a sua nova vida, o que passou a acompanhá-la foi a constante ideia de fugir. De quem ou o quê ela não sabia e como não sabia também para onde, tentava como podia ignorar tal ideia. Como tudo tem que ter uma explicação, nos dias que se seguiram, Íris começou a entender a razão de sua aflição.

Nas suas primeiras horas revelando fotos ela se lembrou que alguns dias antes da morte de Leo, ele tinha revelado fotos para um casal que perdeu a filha num acidente com o ônibus escolar. Ela olhou as fotos apenas uma vez e não se lembrava das feições da garota mas havia uma característica que não tinha como esquecer: aqueles brilhantes e grandes olhos azuis. Então, logo recordou que haviam ficado cópias para o caso de mais algum familiar querer os últimos momentos felizes da garota, um dia antes de seu aniversário.

Íris não teve dificuldade em encontrar as cópias e quando olhou para os olhos da garota teve impressão de que tinham mexido. Então deixou cair as fotografias no chão. Enquanto se chamava de tola e ria de si mesma, se abaixou para pegá-las e viu um vulto branco passar com rapidez. Ela ergueu os olhos e não viu nada. Voltou os olhos para as fotos caídas e então notou que em uma delas a garota simplesmente havia sumido. Foi para a cozinha, abriu uma garrafa de vinho tinto e quando acabou com a última gota dormiu debruçada na mesa ali mesmo. Acordou 6 horas depois. Era sua cliente. Ela não se lembrava mas o envelope com a fatura de cartão de crédito ao lado do seu braço esquerdo a fez lembrar. Então fez o melhor que pôde para disfarçar a ressaca e a fotografou. Quando estava levando a moça na porta ouviu uma risada infantil e então uma pergunta:

_Tem filhos?

Íris desperta para a realidade e pensa "ela também ouviu" e responde:

_Não, deve ser na TV. Está ligada.

Não estava, é claro. Então se despediu e foi vistoriar a casa pequena em busca da garota. Ela sabia que era loucura mas tão certo quanto isso é que a garota estava lá. Íris precisava saber por quê. Olhou em cada canto e nada. Então voltou para o quarto escuro onde ficou mais algumas horas. Depois tomou banho, comeu e foi dormir. Sua cabeça doía e agora a iluminação do quarto escuro a atraía então deixou a porta aberta já que não tinha nenhum trabalho para terminar.

Sonhou de novo com a garota dos olhos azuis. Íris estava em sua cama e parecia ter sua idade atual. Porém a garota parecia ainda mais jovem com um sorriso enorme no rosto. Ela estendeu a mão para Íris mas essa não conseguia se mover então a garota fechou a cara e pareceu emburrada. De repente sumiu. Íris permaneceu na cama por muito tempo e nada aconteceu até que entendeu que não estava sonhando. Foi para a cozinha, não encontrou outra garrafa de vinho então começou a chorar. Quando não tinha mais fôlego resolveu voltar para a cama onde permaneceu acordada, imóvel até o sol nascer. Quando isso aconteceu, foi em busca dos pais da garota. Ela ainda tinha o telefone deles e, portanto foi fácil. Contou-lhes o que estava acontecendo desesperadamente sem prestar atenção que o que dizia era absurdo. Foi expulsa de lá pelo pai como se estivesse querendo brincar com a dor deles. Enquanto Íris ia embora chorando, a mãe da garota dizia sem compreender:

_O que você fez? Nós também estamos vendo nossa menina por todos os lados. Ela não está enlouquecendo e nem brincando e sabe disso!

_É o melhor para ela achar que não é real. Talvez ela pare de assombrar essa pobre mulher.

_Você sabe que não vai resolver. As pessoas são energia pura. Fotografias só são tão reais porque capturam parte dessa energia. E quando tentam manter uma pessoa morta viva, é isso o que acontece!

_E você sabia disso quando pediu para revelar as fotos, não sabia?

Sim, ela sabia. Seu silêncio era a resposta.

Íris chegou em casa mais calma depois de encontrar uma amiga no caminho que pagou 3 cervejas. Resolveu postar alguns anúncios na internet para atrair serviços. Ela precisava se ocupar com qualquer coisa. Seu celular estava com a bateria fraca então ela o ligou na tomada e deitou no sofá que estava próximo. Estava entretida quando o celular avisou que a tomada tinha sido desconectada, olhou para a tomada e viu que realmente estava. Íris perdeu o controle.

_Já pode parar de brincar, mocinha. Eu não sei o que você quer de mim mas se puder me dizer e se mandar eu agradeço.

Risadas foram ouvidas.

_Que droga! Eu preciso trabalhar. Preciso manter minha vida. Não tenho culpa se perdeu a sua.

Então somente a energia de sua casa acabou e ela gritou. Logo em seguida outro grito foi ouvido e sua dona apareceu diante de Íris com olhos em chamas azuis.

_Eu não posso sumir. Não posso seguir meu caminho e a culpa é sua e do seu namorado!

_Não fui eu quem revelou suas fotos. E com certeza você já foi atrás do Leo!

_Sim mas você o ajudou; fotografou e continuou com este trabalho. Não finja que é inocente.

_Mas o que tem de tão ruim nisso? É apenas meu trabalho.

_Deixe a beleza da vida para os vivos, os mortos não precisam dela.

_Tudo bem, eu prometo que não vou fotografar ou revelar fotos de mortos. Eu juro!

_É claro que não vai!

Então a garota estendeu a mão direita e olhou fixamente nos olhos de Íris. Estes começaram a queimar. A mulher gritava de dor e a garota ria. Quando soube que Íris não conseguiria recuperar a visão nem se tivesse muito dinheiro, parou e sumiu. Ninguém viu mas ela reapareceu na fotografia que havia sumido. Íris sabia que era seu fim. Aquele combustível que queimava no fundo de sua alma se esgotou com o olhar inflamável daquela garotinha. Ela sabia que nunca mais ia captar paisagem, lágrima, sorriso ou olhar algum novamente e, sem nem mesmo ter forças para usar seu cérebro normalmente, não conseguiu encontrar uma saída para resolver aquilo. Então lembrou da garrafa que estava na lata de lixo, rastejou até ela e com ajuda do tato a encontrou. Quebrou ela no chão e com o maior caco de vidro cortou sua garganta. Era apenas mais uma pessoa fraca que não suportou as dificuldades da vida, diriam, já que não sabiam o que se passou mas, mesmo que soubessem, quem poderia culpar uma garotinha que mesmo tendo sua vida roubada por um motorista irresponsável polpou a vida de uma mulher e ainda tentou lhe dar uma nova maneira de enxergar o mundo?