O Albatroz Evanescente - DTRL29

Quando abri os olhos e saí do estado de entorpecimento em que me encontrava, não fazia ideia de onde eu estava - e nem sobre o quê. Mas, mesmo assim, eu sabia que estava em movimento, e parecia ser no mar, pois me sentia cansado e enjoado. Tive uma dificuldade absurda para me manter em pé. Fui chacoalhado para todos os lados e então percebi que eu estava em uma cabine. Havia lá uma cama estreita e um amontoado de roupas, dentre outras coisas que não pude distinguir devido à escuridão do ambiente.

Enquanto eu era arremessado de um lado a outro com bruta violência, achei, sem muito esforço, uma porta. Assim que a abri, vi-me em um corredor de madeira com lamparinas presas às paredes. Tive certeza, nesse momento, que eu estava em alto-mar, num navio. Andei, cambaleando, pelo corredor, e cheguei a uma outra porta, uma maior do que a da cabine. Hesitei, mas a abri, e então me deparei com a proa de um grande navio.

O mar estava agitado demais e os navegantes mal conseguiam se manter em pé - mas isso não era motivo para pararem o trabalho que cada um exercia ali, pois, notei, eles continuavam seus afazeres sem reclamarem. Içavam velas, traçavam cordas, limpavam o convés, desciam e subiam de altos mastros, e eu ali, parado, observando-os, sem saber o porquê de eu estar ali.

Senti, enquanto eu me perguntava mentalmente sobre isso, um empurrão em meu ombro. Era um homem alto, forte e negro, e segurava um balde encardido e uma esponja velha.

—O que faz aí parado? - ele me perguntou. — Pegue isto.

Ele, então, jogou o balde e a esponja em mim; eu fiquei quieto, sem reação.

— Limpe! — ordenou ele, antes de sair e passar por uma porta ali perto.

Eu olhei desconfiado aos quatro cantos possíveis, tentando entender o que se passava, mas ninguém parecia interessado em me explicar. Todos passavam apressados por mim, me empurrando e me ignorando, fingindo não ouvirem meus pigarreios e meus "com licensa". Sem opção sobre o que fazer, me agachei, peguei a esponja, molhei-a na água e comecei a esfregar o piso. Fui, aos poucos, me aproximando de um velho homem baixinho e banguela que fazia o mesmo trabalho que eu me atrevera a fazer. Ele, percebendo que eu me aproximava, começou a ir à direção oposta, a fim de me evitar. Mas fui persistente. Fui seguindo-o até encurralá-lo contra a lateral do navio, e ele me lançou um olhar assustado e profundo, como se soubesse exatamente o que ia perguntar.

— O que você quer? — perguntou-me ele, sem parar de esfregar o chão.

— O que é isso? Que lugar é este? Você sabe?

— Se eu fosse você eu apenas trabalhava. Nada de perguntas.

— Como eu vim parar aqui?

Lembro-me de ter deixado a esponja de lado e avançado para cima do homem, o que lhe assustou. Porém, me recompus.

Notei alguns homens me observando estranhamente. Peguei a esponja de volta e recomecei a esfregar. Levei minha visão à frente e percebi que navegávamos rumo a uma tempestade. Nuvens negras e pesadas se formavam, e me arrepiei ao pensar que aquele navio ia diretamente para lá.

— Por que estamos indo para aquela tempestade? — perguntei ao velho homem.

Ele esperou alguns segundos, pensativo ao esfregar. Parecia estar escolhendo as palavras adequadas.

— Vamos caçar — disse ele, enfim.

— Caçar? O quê, baleias?

— Não — ele riu —, baleias não.

— Então?...

— É que...

Mas antes que pudesse responder, o velho ao meu lado foi atingido por uma dolorosa chicotada em suas costas. Ele caiu e gemeu de dor. O homem que o atingira — notei ao me virar por um segundo — era alto, robusto e cheio de cicatrizes, e me ameaçou com o chicote quando o fitei. O homem chicoteado voltou a se ajoelhar e a esfregar, e eu, contra minha vontade, também.

O céu parecia estranhamente escuro devido à tempestade que se aproximava, mas vi o que era escuridão quando a noite, sem demora, chegou. Não era possível enxergar um centímetro além do navio, e qualquer esforço para forçar a vista era inútil — e eu não estava em condições de forçar nada, pois passei o dia inteiro a limpar aquele maldito navio. Ao final do dia meu corpo estava dolorido, principalmente as costas, então quando fomos levados ao porão do navio, onde iríamos dormir, senti um certo alívio.

Éramos mais ou menos vinte e cinco homens, e fomos amontoados, jogados e orientados a dormir no chão. Com tanta coisa que se passava em minha cabeça, era quase impossível de eu conseguir dormir, ainda mais sabendo que uma tempestade mortal era o destino daquele navio. Descartando "dormir" de minha lista de "coisas a fazer", procurei, por entre aqueles homens sujos e indigentes, o velho com quem eu conversara mais cedo. Não foi difícil de achá-lo, embora eu percebesse claramente que ele tentava me evitar. Fui até ele e insisti que terminasse de me contar o que se passava, mas ele não falou assim de imediato. Ficou apenas me encarando por algum tempo, o que me deixava desconcertado e impaciente. Porém, após aquele silêncio, ele falou:

— Quer mesmo saber o que vamos caçar? Tem certeza?

— Quero saber o porquê de eu estar aqui e não me lembrar. Que navio é este?

— Este — e ele começou a rir, mostrando-me seus poucos dentes — é o Albatroz Evanescente.

— E quem me trouxe aqui? E por que não me lembro de nada?

— Provavelmente foi trazido a este navio para ajudar na caçada. Todos nós fomos. — Ele, então, sentou-se em um caixote de madeira em um canto daquele porão imundo.

— Se queriam pessoas para caçarem deveriam ter contratado caçadores — eu disse, impaciente.

— Você é louco? Conhece alguém que esteja disposto a zarpar no Albatroz? Este navio — e senti, todos sentiram, o casco do navio ranger — está amaldiçoado.

— Amaldiçoado? — questionei, incrédulo. — Como assim?

— Em que mundo você vive? Por onde esteve? Não conhece a estória do Albatroz?

Senti um arrepio agudo quando ele me disse aquilo.

— Estive trabalhando muito — respondi, inseguro. — Não tenho tempo para ficar ouvindo essas estórias de bêbados.

O homem me pareceu um pouco ofendido com o que ouviu, mas pouco me importei.

— Ah, mas essa não é uma "estória de bêbado". Aconteceu de verdade, neste navio, quando ele ainda carregava o nome de "Lady Eva".

— "Lady Eva" — repeti, bem baixo.

— Sim. Quer conhecer essa estória, senhor? — Ele me perguntou de um jeito peculiar que tornava difícil dizer não. Fiquei absurdamente tentado a ouvir o que ele tinha a contar, então, despreocupado, peguei outro caixote e sentei-me à frente dele. Os outros que tentavam dormir por ali, notei, também se aproximaram para ouvirem a estória, embora, àquela altura, eles já soubessem do ocorrido.

...

— "Foi há alguns anos" — começou ele, falando em um tom místico, tentando parecer o mais sobrenatural possível. — "O 'Lady Eva' navegava sobre as águas calmas do Atlântico; sua bandeira negra, içada no mastro mais alto, tremulava ao vento leve que vinha do leste. O capitão Hasting comandava sua 'fiel' tripulação com total competência. Seu nome ganhou fama e notoriedade pelos sete mares, o que acabou atraindo uma inveja demoníaca por parte de alguns marinheiros. Estavam cansados do modo como o capitão estava levando a tripulação. Eram piratas, mas Hasting parecia, aos olhos de alguns subordinados, desviar-se do rumo que pretendiam seguir.

"Um motim, liderado por J. Smith, em uma noite tempestuosa, foi anunciado ao som de 'tomem o navio'. Quase um terço da tripulação juntou-se a Smith; o restante manteve-se leal ao capitão. A batalha pelo navio foi sangrenta e pesada, com ambos os lados tendo inúmeros mortos e feridos. O grupo dos amotinados estava em evidente desvantagem numérica, e Smith sabia que era só questão de tempo até seu motim fracassar. Então ele teve uma ideia, uma ardilosa ideia: chamou o capitão Hasting para um combate mano-a-mano, cujo vencedor ficaria com o navio.

"O capitão Hasting era mais experiente em relação ao seu oponente. Era mais velho e mais sábio, e sem pensar duas vezes aceitou o desafio de competir pelo navio. O resto dos marujos se colocou em círculo, e dentro dele deu-se início à luta. No princípio, era quase impossível dizer quem iria vencer. Smith era jovem e ágil, mas o capitão vivera sua vida com uma espada na mão, e contava com sua vasta experiência para vencer seu rival. E, devo dizer, com o avançar da luta, o capitão Hasting controlou a luta, e teria vencido facilmente se não fosse uma anomalia da natureza mostrando a cara bem naquela hora. O mar, outrora calmo, começou a se agitar num súbito instante. As nuvens se aglomeraram em poucos segundos e uma tempestade se formou, e com ela veio uma ventania sem igual.

"Smith, a essa altura, se encontrava caído, a ponta da espada do capitão ameaçando-lhe o pescoço. O capitão, audacioso e vitorioso, estava em pé, hesitando sobre matar o autor do motim devido às intempéries.

— 'Por todos os demônios do inferno!' — pragueijou o capitão. — 'Foi você quem fez isso?'

"Smith apenas sorriu, mas a preocupação ainda era evidente em seu semblante. Parecia tão preocupado em relação à tempestade inesperada quanto Hasting.

— 'Maldito seja!' — disse Smith, mirando diretamente os olhos de seu inimigo. - 'Devia sentir-se envergonhado de usar esta espada. Não és digno nem de ser chamado de pirata. Profana os nomes dos verdadeiros homens do mar.'

— 'Maldito são os ingratos, jovem; como tu. Tinhas tudo aqui, tudo que querias, mas desejavas algo que eu não podia te dar. Queria ser eu.'

— 'Não' — disse Smith, sorrindo como um louco. — 'Não, não tu. Eu seria melhor.'

"Em meio à tempestade que ali se instalara; ao vento que ali soprava, e ao chacoalhar do 'Lady Eva', ouvia-se, com impressionante nitidez, o som de aves a se aproximarem. Até o bater das asas era audível. E não demorou muito para serem vistas, lá no céu, por entre as nuvens carregadas e negras, os albatrozes mais magníficos que aqueles piratas já viram. Ficaram hipnotizados, inertes e abobados ao verem aquelas aves que, lá no alto, iam em um voo solene rumo ao navio.

"Smith, vendo a distração do capitão à sua frente, arrastou-se para o lado e pegou sua espada, que jazia caída ali perto. O capitão, sem reação imediata, ficou a observá-lo. Viu, ali, diante de seus olhos, Smith erguer a espada e gritar algo que ele não compreendeu. Viu, ainda, os albatrozes voarem sobre a cabeça de Smith, e um deles foi atravessado pela lâmina da espada do pirata traidor. Naquele mesmo instante, o albatroz recém-ferido, morto, ganhou um brilho espectral, e seu tamanho multiplicou cinco vezes, tornando-se uma ave colossal fantasmagórica.

— 'Maldito seja!' — gritou smith. — Que o demônio preso à ave seja seu algoz. — E, no segundo seguinte, dois raios caíram simultaneamente. Um atingiu o próprio Smith, matando-o na mesma hora. O outro atingiu o capitão Hasting, mas não o matou, apenas o feriu a ponto de desfigurá-lo.

"Mesmo mutilado pelo raio, o capitão ainda pôde ver o que aconteceu em seguida. A ave reabriu os olhos — agora vermelhos — e saiu, sem nenhuma dificuldade, da espada. Alçou voo e partiu rumo aos piratas que se juntaram a Smith, atravessando-os, e, ali mesmo, morreram um a um. Depois, foi à tempestade e desapareceu em meio à chuva e ao vento. Os piratas sobreviventes socorreram o capitão ferido e partiram dali com o navio. Porém, estavam longe de casa, e no caminho de volta passaram por várias tempestades, e em cada uma delas o gigante albatroz sobrenatural apareceu e matou um dos tripulantes. Ao chegarem em terra firme, só restavam no navio o capitão desfigurado, seu imediato e dois marujos."

...

Atônito, meditei, nos segundos que sucederam à narrativa empolgante do homem, sobre o relato sobrenatural que ouvira, e cheguei à única conclusão cabível: aquele homem era completamente louco. Um albatroz-fantasma? Maluquice! E, ao que dirigi essa última exclamação a ele, foi-me devolvido uma expressão fechada, uma mescla de ódio e indignação.

Vi que a vontade dele era de me xingar ou bater; eu, particularmente, não esperava que ele fosse ficar bravo por eu não dar créditos à estória que me foi contada. Mas, antes que ele pudesse me xingar (ou bater), um estrondo alarmante nos surpreendeu. Vinha de cima. Eram batidas contínuas, como alguém que bate à porta com desespero.

— Alguém está chamando — observei, olhando para a portinhola que dava acesso ao convés.

— Estamos todos aqui — disse o velho. — Só dormem lá em cima...

— O quê? Quem dorme lá em cima?

— O capitão. O capitão Hasting.

As batidas que ecoavam pela madeira, por poucos segundos, sincronizaram-se com as batidas do meu coração, impedindo-me de seguir a linha de raciocínio que eu almejava alcançar. Ele dissera "Hasting", o mesmo da estória que contara há pouco, então só podia significar que...

A porta foi aberta e ouvi de imediato o vento cortante lá de fora. Vi, com esperada dificuldade, a silhueta de um homem, e, mesmo sem poder vê-lo claramente, senti que me mirava diretamente.

— Para fora, todos, agora! — a voz do desconhecido que abrira a porta chegou aos meus ouvidos com perfeita nitidez. Um som rouco, grave, profundo, que, acredito eu, ressoou em mim assim como nos homens ao meu lado.

O homem da voz rouca, então, afastou-se, deixando a portinha aberta. Em uma desorganização apressada, saímos, subindo a frágil escada até ao convés. Lá, a escuridão, abafada por nuvens sólidas que pareciam infinitas, era sufocante, e eu, tentando ver o rosto do homem que nos ordenara sair, me decepcionei mais uma vez. Ele estava de costas, sobre um casaco negro que o fazia ficar ainda mais corpulento; seu rosto estava coberto pelo capuz.

Não conseguindo ver o homem de frente, dediquei-me, então, a observar o cenário ao meu redor. As nuvens, como já relatei, cobriam o céu em peso. A chuva caía, aos poucos, mas o que me preocupava realmente era o vento. Rajadas de ar nos atingiam com precisão e, às vezes, nos jogavam ao chão. Comecei a temer pelo barco. O casco rangia e eu o ouvia a todo momento. As ondas e o vento, juntos, estavam prestes a afundarem aquele navio.

— Não se preocupem, terminaremos o que iremos fazer antes mesmo do mar nos engolir. — Aquela voz rouca, audível e perceptível a todos nós, era, curiosamente, agradável de se ouvir. Me virei, assim que ouvi a voz, e vi que o grande homem encapuzado olhava ao céu, mais precisamente ao olho da tempestade.

Eu poderia fazer uma lista de coisas que eu vi na vida e que me impressionaram, mas, devido ao entorpecimento que sofri para ser levado àquele navio, não me lembrava de muita coisa. Mas, se lembrasse, com certeza o que eu vi (e relatarei em seguida) estaria no topo da lista. Cheguei a dar um passo atrás e arregalar os olhos ao testemunhar aquela cena, e tive certeza, mesmo sem olhar para os lados, que todos naquele navio — talvez à exceção do capitão — fizeram o mesmo.

De lá, de dentro da tempestade já formada, por entre as nuvens pesadas, em meio ao vento violento, surgiu, audacioso, a maior — e mais sinistra — ave que já tive o desprazer de ver. Quero dizer, apreciá-la era agradável; se tratava de algo singular, uma obra-prima da natureza sobrenatural. Era um albatroz de proporções exageradas; suas asas, envergadas em pleno voo, passavem facilmente dos cinco metros. Seu bico, também maior do que o comum, parecia bem mais ameaçador do que os dos albatrozes normais.

O que me frustrou foi que a visão que me encantara durou apenas alguns segundos. O gigante albatroz branco, até então visível aos meus olhos, tornou-se límpido, transparente, e então, invisível. Toda a tripulação do navio se alarmou ao desaparecimento da criatura. Mas, juro, ela reapareceu, já mais próxima do navio, perfeitamente física, mas, um segundo depois, foi-se, sumindo à vista de todos nós. Mesmo diáfano, ainda pude ouvi-lo, seu canto único e agourento penetrando meus ouvidos com clareza.

— O que estão esperando? Cada um, pegue uma espada! — A voz grave do misterioso homem encapuzado cortou o assombroso canto do pássaro espiritual.

Ainda em choque com o que acontecia — e tudo ali acontecia mais rápido do que parecia —, corri, lutando contra a chuva e o vento, a um canto do navio onde se encontravam várias espadas dentro de um velho barril. Peguei uma e me postei junto aos outros homens, encostado a uma mastro para não ser derrubado pelo chacoalhar da embarcação.

Os relâmpagos que ornavam a fria e escura noite tornaram-se uma ajuda essencial, pois, quando iluminavam o céu, davam-nos a clareza necessária para enxergarmos a ave, pelo menos quando ela se encontra em sua forma carnal.

— Ali! — gritou o homem da voz rouca, apontando o braço direito para o alto, a bombordo.

Olhei, de súbito, ao local indicado e, acima do "Albatroz Evanescente" — o navio, não a ave —, planava, encarando-nos, a bela porém diabólica ave. Ela deu o bote, mirando-nos, e, quando se aproximou em uma distância crítica, foi golpeada por uma avalanche de lâminas — ou teria, se não tivesse assumido sua forma espectral justo quando a golpeamos. Três segundos depois e ouvi o ruído da grande ave, e, ao que olhei para cima, lá estava ela, mirando ao grande homem destacado sobre o casaco preto. Mesmo estando lá no mastro mais alto, pude ver os olhos vermelhos da criatura.

— Droga! — pragueijou um senhor ao meu lado, deixando sua espada cair. Virei-me a ele e o vi tocando seu peito, na altura do coração. — A ave, ela... ela encostou em mim. Senti seu corpo atravessando o meu.

Então, no segundo seguinte, ele se ajoelhou, sua face carregando horror e medo. Depois, caiu por completo, de bruços, totalmente morto. Olhei para cima e o albatroz ainda estava lá, sobre o mastro, parecendo satisfeito ao nos contemplar, como se estivesse escolhendo sua próxima vítima, e, para minha infelicidade, ele lançou seus olhos rubros sobre os meus, gelando-me o coração. O pássaro, audacioso como sempre, alçou voo em minha direção. Por impulso, dei alguns passos para trás. A ave estava carnal, física e visível, e se aproximava velozmente à minha frente. Ergui, por puro reflexo, minha espada, e a maldita ave tornou-se apenas um espírito transparente mais uma vez. Tentei golpeá-la sem vê-la, às escuras, mas um tranco estrondoso arremessou-me longe. O navio batera em algo. Ao que rolei pelo chão, devido à batida, vi que metade dos homens também tinha caído; os outros se encontravam apoiados em mastros e em cordas, e, mesmo instáveis, não caíram.

Levantei-me com pressa. Mesmo com a chuva e o vento contra mim, consegui localizar minha espada, e eu a peguei. Meu primeiro pensamento foi em relação à ave. Será que me tocara? Será que sofreria o mesmo destino daquele pobre velho? A princípio, nada senti. Tateei todo meu corpo e tudo parecia normal, mas, naquele momento, minha atenção foi tomada pelo homem parado à minha frente. O homem encapuzado. Enfim pude ver seu rosto, e, devo-lhes dizer, era mais agradável ver o albatroz.

Era como se ele não possuísse pele. Só consegui distinguir algumas saliências que pareciam cicatrizes, espalhadas pela carne exposta. Um de seus olhos me pareceu apenas uma órbita vazia, o que me fez sentir náusea.

— Recomponha-se, Jhon! — gritou o homem, a mim. — Não posso acabar com essa maldição sozinho.

Aquilo me pareceu estranho — muito mais do que já estava sendo até então. Ele sabia o meu nome, e me encarava sorridente, ou, pelo menos, tentava sorrir . Era como se ele me conhecesse há anos.

— Como sabe meu nome? — perguntei.

— Jamais esqueço dos rostos que navegam comigo. Você estava aqui quando esta maldição começou. Era o meu imediato. Sobreviveu àquela ave até voltarmos ao continente, quando, em um último ataque, assim que atracamos, a ave o derrubou. Você caiu do navio, bateu a cabeça e perdeu a memória, mas sobreviveu.

A voz rouca do capitão Hasting me trouxe muitas lembranças à mente. Em uma fração de segundo me lembrei de tudo: o motim, o surgimento do albatroz diabólico, o raio deformando o capitão, a volta para casa, as inúmeras tempestades em que fomos atacados, nossos companheiros morrendo um a um, e, por fim, lembrei-me da ave a me atacar assim que chegamos em terra firme. Chovia muito. Eu estava prestes a descer do navio quando o albatroz me surpreendeu e quase me tocou, me derrubando por falta de equilíbrio.

— Não se preocupe, isso acaba hoje, eu prometo. — A voz do capitão me despertou do meu breve devaneio.

Então, vi-o postando-se à frente de todos, erguendo sua espada acima, onde avistara o albatroz pela última vez, e proferiu as seguintes palavras:

— "Venha, ave dos infernos, que arrancaste de mim minha tripulação, um a um, entre as intempéries que pairavam sobre os sete mares. Venha, ave demoníaca, procedente do hades, filha do traidor, cuja maldição irá cessar assim que a lâmina da minha espada atravessar seu corpo ora espectral ora carnal. Venha, ave de nascimento sobrenatural, que testemunhara as inúmeras cicatrizes que cobrem meu rosto, e que viste, ao clarão dos relâmpagos, minha carne queimar. Venha a mim! Faça seu último voo! Enuncie seu último agouro!"

O maldito pássaro surgiu, intimidando-nos, seu canto lúgubre a ecoar em nossos ouvidos. A claridade dos frequentes raios nos permitia ver a ave deslizando no ar, sobre o navio, enquanto se encontrava visível. Mas não permaneceu nesse estado por muito tempo. Tornou-se translúcida ao som dos trovões ensurdecedores.

— O arpão!!! — gritou o capitão, sem nem deixar de olhar para cima, como se tentasse adivinhar de que lado a ave viria.

Logo, três homens trouxeram uma grande caixa com uma lança acoplada em cima, presa a uma longa corda. Ouviu-se, naquele momento, o pio obscuro sobre nós.

— Lá! — O capitão apontou para cima, à esquerda, e o arpão foi apontado àquela direção. — Esperem...

Não podia ver o albatroz, mas sabia que estava bem próxima.

— Esperem... — insistiu. Ele parecia ter certeza de que a ave iria se mostrar antes de atacar.

E ele estava certo. A poucos metros de nós, a ave tornou-se sólida, palpável e avistável, bem na direção em que o capitão ordenara apontar o arpão.

— Agora! — Um dos homens acionou a arma e a lança cruzou o ar, cortando chuva e vento, parando apenas ao penetrar letalmente a ave assombrosa.

Estava escuro para ver aonde ela havia caido, mas sabíamos que ainda estava no navio. Prestamo-nos a correr à direção em que a lança fora atirada e lá, na madeira úmida do navio, jazia um belo albatroz, branco, natural e morto. A ave estava comum, do tamanho normal e sem os olhos vermelhos. A lança atravessava seu corpo, onde atingira o coração.

— A maldição acabou — anunciou o capitão, ajoelhando-se perante a ave morta. Os relâmpagos, subitamente, sumiram, assim como os trovões. O vento soprou mais leve e a chuva, aos poucos, parou. Até o mar ficou mais calmo. As nuvens se espalharam, e frágeis raios do arrebol iluminaram o céu até então escuro.

O capitão, ao se levantar, cravou sua espada no pássaro morto e veio até mim. Ficou a me encarar. Então eu perguntei a ele:

— Por que me trouxe de volta aqui? Não fui de nenhuma ajuda. Quase morri, de novo.

— Eu não o trouxe aqui para matar a ave, Jhon, e sim para vê-la. Achei que se o trouxesse aqui poderia recuperar sua memória e se lembrar do que esqueceu. Essas eram as duas coisas que eu queria fazer antes de morrer. Fico feliz de ter conseguido realizar ambas.

Ele, depois de me contar isso, caiu no chão, ao lado do albatroz, ambos mortos. Suas cicatrizes desapareceram em seguida.

Tema: criaturas infernais; competição.

Renent Douglas
Enviado por Renent Douglas em 20/10/2016
Código do texto: T5797842
Classificação de conteúdo: seguro
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