Bons Sonhos, Doutora

-Você sabe quem eu sou, Doutora.

Nada mais precisa ser dito. O silêncio é muito alto, quase ensurdecedor. Crescente, o pânico transborda até se projetar no fio de voz que ainda lhe restava.

-Vá embora, Augusto! Não sou mais sua médica!

Suspiro, fazendo um gesto negativo com a cabeça, em desaprovação à sua atitude ruim. Quem é Augusto?

Seu lapso momentâneo de coragem não dura muito -e nem deveria-. Embaixo do tapete envelhecido, há um pequeno objeto metálico. Há semanas eu via ela tirar e recolocar a chave lá. Gosto do contraste do brilho metálico do utensílio em relação ao bege envelhecido do tapete, que continha as palavras "Bem vindo" gravadas, recebendo gentilmente quem estivesse disposto a passar por ali. Oh, obrigado, tapete. Ao menos você sabe como ser cortês. Assim como tenho visto ela fazer, pego o objeto como se fosse um ritual. Pegue. Encaixe. Vire. Puxe. Em um simples passo eu estava dentro da casa amarela. Os gritos. O pânico. Oh, o doce som do desespero.

-Ele entrou! -Gritam e eu apenas sorrio, me deliciando com o momento.

"Sim, entrei", penso. "Talvez vocês devessem tomar mais cuidado ao andar na rua. Ouvi dizer que tem um maníaco a solta.".

Pra sorte delas, eu não sou um maníaco. Não...Eu sou um Corvo. Não o pássaro, obviamente. Mas sou a personificação viva da sua simbologia. É ingênuo (e até levemente arrogante) esperar que algo de bom venha de mim. Eu sou o "presságio de coisas ruins". Insolentes! Nada trago além de beleza. Há tanta serenidade na morte, mas já na vida... Ah a vida. Ela é caótica. Tão bagunçada quanto um tornado que destrói tudo por onde passa. Não importa aonde você olhe, você só consegue avistar o caos e a calamidade. Sempre vivendo a um passo da anarquia.

Eu sou a liberdade.

Por que vocês nunca apreciam isso?

"Louco" eles disseram. Como um pássaro qualquer fui prendido em uma gaiola, também conhecida como Hospital Psiquiátrico. Lá nós éramos divididos. Na minha ala residem os "agressivos". Instáveis. Assassinos, estupradores, piromaníacos... Toda a escória. Todos os insanos, assim como...

Bem, como eu.

Mas as pessoas sempre acreditam em mim quando o momento delas chega.

-Você é louco, Augusto!

-Eu já disse que esse não é o meu nome!

Aumento meu tom de voz, deixando a raiva me dominar por uma fração de segundo. As palavras que saíam dos meus lábios machucavam a minha garganta.

O líquido viscoso escorre entre os meus dedos. Os lambo com prazer, sentindo o gosto metálico do sangue da médica. Um sorriso brota nos meus lábios e a faca cai no chão, ao lado da carcaça já sem vida da mulher. Seus belos cachos dourados se encontravam vermelhos e emaranhados na poça do seu próprio sangue.

Você sempre quis ser ruiva, não quis, Doutora?

Quando abro os olhos, a claridade me cega momentaneamente. De volta à sádica realidade. Canônica. Num gesto simples e deselegante me deito no chão. A camisa de força branca limitava os meus movimentos, mas isso não me impedia de me debater. Eu precisava pegá-la, eu precisava... Mas ela se encontrava protegida por trás do vidro.

-Augusto! Dopem ele, ele está delirando!

A voz da médica estressada soa pelos auto falantes. De repente, dois enfermeiros entram e eu olho pro vidro, por onde eu sabia que ela me observava. Sorrio mostrando os meus dentes amarelados e minhas covinhas enquanto os homens grandes aplicavam algo nas minhas veias, que fez o meu corpo amolecer. Então foi só um sonho... Mas de sonhar também se vive. Sinto minha vista ficar embaçada e ir escurecendo aos poucos. E lá vamos nós novamente.

Bons sonhos, Doutora.

Agatha Garcia
Enviado por Agatha Garcia em 01/12/2016
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