*Alma penada - Coisas que só acontecem comigo - XXI.

Alma penada

Coisas que só acontecem comigo – XXI

Por esse tempo, fazíamos o anteprojeto da BR-226 entre Grajaú e Porto Franco, no Maranhão. Abrindo a picada na mata, longe de tudo e de todos, sem conforto algum, expostos a todos os perigos e sem um socorro imediato, no caso de um acidente súbito. Vida rude de pião, que a sociedade citadina desconhece.

Coisa que muito me entristece é ver uma cruz na beira de uma estrada. Fico pensando em quantos não sofreram e até morreram naquela construção, para que os frutos fossem colhidos no futuro, para o bem de todos.

O banho de canequinha ou “banho tcheco” era a única opção que nos restava, num banheiro que não passava de um cercado de varas. Fora isso, só o banho no riacho à noite, o que era muito arriscado, por isso, nós evitávamos.

Nosso único lazer, nas horas de folga, eram os jogos de cartas. Após o jantar jogávamos “buraco”.

Sou de uma geração que nasceu e cresceu sem televisão, graças a Deus! Época em que pais e avós se assentavam no terreiro, para contar estórias aos filhos e netos. Versavam quase sempre sobre príncipes, princesas, fadas, bruxas e assombrações que, por bem ou por mal, acabaram se fixando em nossas memórias.

Não sei de quem foi a desastrosa ideia de, certa vez, armarem o acantonamento próximo ao cemitério de um lugarejo conhecido como Moita de Pau. Nessa localidade, existia apenas uma casa, pois os outros moradores já tinham arribado dali. O cemitério, por sua vez, não tinha mais que dez covas.

Eu desaprovei a ideia logo de cara e não demorou para que, nos dias subsequentes, começassem a chover histórias sobre almas penadas. Colegas que foram tomar banho e ouviram conversas no cemitério, vultos de gente andando e por aí vai...

Falar se falava, mas ninguém assumia, de fato, os fatos. A mim, pareciam invencionices e nada mais. Verdade que, muitos dos nossos, diziam ter mais medo dos vivos, nunca dos mortos, mas na hora do “pega pra capar” é que se conhecem os heróis e os covardes!

Tínhamos um pequeno gerador de energia elétrica, que funcionava à gasolina e era ligado após às 18 horas.

Certa vez, cheguei do campo e já estavam pondo o jantar. Nem tomei banho, pois como sabia que o jogo de cartas viria logo em seguida, pedi a um dos ajudantes que me fizesse a gentileza de colocar água no banheiro, para que eu pudesse tomar banho antes de dormir.

Pois bem, terminamos a partida já próximo da meia-noite e, quando eu me preparava para ir tomar banho, misteriosamente o gerador desligou-se, coisa que nunca havia acontecido antes.

Mesmo assim, com o auxílio de uma lanterna, fui à procura de uma vela e acabei encontrando uma branca, dessas comuns. Coloquei-a sobre uma das estacas do banheiro improvisado e acendi-a. Em seguida, comecei a operação lava a jato.

Era uma noite de verão, com um calor próprio de nosso tempo nordestino. Nenhuma brisa, por mais sutil que fosse, soprava ali, de modo que nem as folhas das árvores se moviam. O silêncio também imperava, por isso, qualquer ruído, causado até por um simples lagarto que passasse, era possível ouvir.

Comecei a desconfiar de que alguma coisa estava errada, porque a chama da vela tremelicava sem parar, embora não soprasse vento algum. Parecia que alguém, de caso pensado, estivesse assoprando-a, com o intuito de apagá-la.

Em seguida, ouvi passos sobre as folhas secas, que não pareciam de animais. Quem vive no campo ou tem intimidade com este, sabe muito bem diferenciar as coisas. Eram passos de gente se aproximando, como alguém que quer pregar um susto.

Como o banheiro tinha apenas 1,60m de altura, quem estivesse dentro via facilmente quem estava do lado de fora. Eu sabia que quase todos já estavam dormindo e que nenhum dos nossos se atreveria a andar no escuro, àquela hora, pois corria o risco de ser picado por uma serpente.

Nesse momento, ouvi um pigarrear do lado oposto do acampamento, a cerca de dez metros de onde eu estava, o que me deixou ainda mais tenso. Os passos continuavam se aproximando, no mesmo compasso, enquanto eu permanecia imóvel, todo ensaboado.

A porta do banheiro dava exatamente para o lado de onde vinham os sons, portanto, se eu corresse, iria dar justamente onde estava o perigo.

Liguei a lanterna e apontei-a para o lado suspeito, vasculhando tudo minuciosamente, mas nada encontrei. Foi quando o pior aconteceu...

Não é novidade para nenhum dos diletos e generosos amigos que me leem ou para você, que me lê agora, que tenho um medo danado de alma penada. Pode parecer bobagem, mas de todas as manifestações religiosas do mundo, a que eu não seguiria nunca seria a doutrina espírita. Enfim, são apenas cismas minhas, que espero não sejam confundidas com críticas...

De súbito, olhei para a vela e vi que a chama não mais tremia. No entanto, o tamanho dela se encolhera de tal forma, que agora só restava um toco que continuava se consumindo aceleradamente, de forma incompreensível.

Como aquilo acontecera, até hoje não sei. Eu continuava impassível. De repente, senti um calafrio que fez os pelos de meus braços ensaboados se eriçarem por inteiro. No mesmo instante, um sopro gélido passou sobre meu ouvido direito. Era sopro de gente, que passou piando, como o pio da coruja, e apagou a vela.

Senti o tambor d’água balançar e, desesperadamente, corri no escuro, rumo à minha barraca de campanha. Comigo na tenda tinham dois estagiários do Curso de Estradas que ainda estavam acordados, conversando.

Quando me viram pelado, todo ensaboado e branco como cera, perguntaram-me:

– Que diacho foi isso, cara?

– Uma alma penada!– respondi.

Falei “alma”, mas antes mesmo de pronunciar a palavra “penada”, os dois apagaram a vela e se embrulharam em suas redes, com a velocidade da luz.

Fui tateando as lonas e consegui chegar até a minha rede e só saí para retirar o sabão no dia seguinte, às cinco e meia da madrugada. Saí correndo descalço no escuro, machuquei os pés, ganhei arranhões e ainda perdi a lanterna e as pilhas.

Eu mesmo fiquei uma pilha por muitos anos. Ainda por cima, fui chamado de ‘cabra frouxo’...

O que aconteceu naquela noite até hoje não sei. Só sei que, daquele dia em diante, ninguém mais tomou banho no tal banheiro à noite...