Encapsulada

Encapsulada

“Toda hora é hora de fazer o que é certo” – Martin Luther King

1

Daqueles dias cinzas, aquela era uma tarde quente e seca no Planalto Central. Dulce terminou de conferir uma parte do novo estoque da livraria e foi falar com sua chefe, Dona Dolores:

- Preciso sair, não estou muito bem. – O relógio marcava quatro da tarde, Dulce não estava bem, sua cabeça doía, ela se sentia zonza e suas mão estavam úmidas de suor. Ela havia tomado os remédios, mas o dia de trabalho não havia feito bem.

Dona Dolores não fez uma cara muito amistosa, mas não ofereceu resistência, a moça realmente não parecia bem. Além disso Dolores mantinha um relacionamento íntimo com o pai de Dulce, ela não queria que houvesse nenhum desentendimento.

Ao passar pela porta de saída da livraria Dulce escuta uma voz:

- Dulce espere! – Era sua colega de trabalho Cíntia.

- A Dolores pediu pra eu ir com você até a estação do metrô.

Dulce e Cíntia caminharam em direção à estação de metrô no terminal rodoviário de Brasília, era apenas o segundo dia de trabalho de Dulce após ela ter ficado quinze dias afastada devido a uma crise de ansiedade.

Dulce era do interior de Goiás, ela chegou em Brasília com dezessete anos de idade para estudar e criar um futuro, no começa ela morava com a tia, hoje com vinte e sete anos de idade ela morava em Taguatinga em um pequeno apartamento alugado, formada em História, ela trabalhava em uma livraria no Plano Piloto, ela havia conseguido esse emprego por intermédio de seu pai, funcionário do senado federal, que ela só havia conhecido quando foi para Brasília, além de trabalhar na livraria.

Ainda faltavam algumas quadras de caminhada, Dulce e Cíntia conversavam trivialidades. Embora Dulce estivesse abatida a caminhada seguiu tranquila, até que Cíntia pega em seu ombro, aponta para um enorme mural, um grafite com uma figura monstruosa e diz:

- Que coisa horrível! O que é isso?

Era uma pintura aparentemente feita com latas de aerossol como qualquer outra dos muros de Brasília, porém o estilo de pintura era muito elaborado, tratava-se de um ser monstruoso de cor verde-acinzentado, orelhas pontudas, chifres negros que faziam voltas, uma língua esticada e perturbadora, além de olhos vorazes e penetrantes.

Aquilo chamou a atenção de Dulce que por um minuto esqueceu seu mau estar e mergulhou na análise do estilo estético daquele personagem. Dulce era graduada em História e no momento fazia o mestrado em História da Arte. Em meio a vários pensamentos, Dulce diz:

- É um gárgula!

Na verdade, tecnicamente gárgulas são esculturas, desaguadouros, destinados a canalizar a água dos telhados das catedrais e prédios públicos. Mas o senso comum mostrava as gárgulas como símbolos do mal que habita entre os homens. A dedução de Dulce se concretizou ao perceber que na ponta da língua da figura havia um cano que escoava às aguas do telhado do prédio, um conjunto comercial. Depois disso ela disse para Cíntia:

- O mau habita entre nós.

- Vira essa boca pra lá! Tá amarrado! – Responde Cíntia, apavorada.

As duas continuaram sua caminhada até a estação de metrô.

2

As moças caminharam até a quadra do terminal rodoviário, Cíntia se despediu de Dulce e voltou para a livraria. Na calçada antes da entrada do terminal haviam vários vendedores ambulantes oferecendo produtos importados, também haviam vendedores de artesanato e haviam pessoas que apenas estavam ali esperando qualquer coisa.

Dentre os diversos personagens havia um mendigo, um homem sentado sobre um papelão, com uma corcunda protuberante, e com uma caneca de alumínio com algumas moedas, ele tinha a barba e o cabelo compridos e sujos, o mendigo estende uma das mãos para Dulce e pede:

- Ei moça! Me dá uma ajuda?

Dulce não se dignou a responder, apenas olhou brevemente o homem em sua miséria e continuou sua caminhada, até entrar na estação do metrô, passar pela catraca e descer até a plataforma para esperar seu trem, ainda sentia dores de cabeça, por seu rosto escorria o suor frio e ao pisar no chão havia aquela sensação de flutuar não de uma maneira prazerosa, mas de forma pesada e desconfortável.

Dulce embarcou no trem para Taguatinga, não estava cheio, sentada ela olhava pela janela e via a alternância dos cenários, hora abertos e luminosos, hora passando por túneis fechados e escuros. Dulce via as pessoas, quase todas olhando para baixo, para os seus telefones, ouvindo músicas, navegando pelas redes sociais. As pessoas se encapsulam nos seus mundos interiores, dentro da cápsula de metal que era o vagão do trem, dentro de seus bolsos e armários existem dezenas de cápsulas, para dormir, para não sentir dor, para não surtar. Somos uma sociedade de cápsulas, pensou Dulce.

O que ela não sabia é que nem todos naquele trem estavam alheios, como ela imaginava. Havia alguém prestando atenção em Dulce, e ela sentia isso. Mas essa sensação se confundia com o seu mal-estar.

A razão de sua crise nervosa foi o fim do primeiro ano do mestrado, a quantidade de tarefas para cumprir na universidade e no trabalho, além da quantidade de contas a pagar.

Ela também era afligida pela ansiedade social, queria ter estudado mais, queria ter passado no concurso público, queria estar casada e com filhos.

O perfeccionismo realmente a esmagava, com frequência ela dizia para sim mesma e para os outros: “Deveria ter feito melhor. Preciso melhorar.”

Dulce também carregava o peso do passado, ela não conheceu o pai durante sua infância, sua mãe faleceu enquanto ela tinha doze anos de idade, foi criada pelos avós. Foi aí que ela desenvolveu o perfeccionismo compulsivo, ela se culpava pela morte da mãe e pelas circunstâncias da vida, embora ela não tivesse controle nenhum da situação, sempre ficou considerando as consequências das coisas que fez ou que deixou de fazer.

Divagando assim, a viagem passou em um instante. Ela desceu em Taguatinga na estação da Praça do Relógio, ainda era necessário caminhar mais cinco quadras até chegar ao seu apartamento.

3

Dulce seguiu caminhando, mas cada passo seu parecia um tambor de batida grave e pesada. Ela já estava se acostumando com o ritmo, mas foi entre uma batida e outra que ela sentiu algo diferente, um calafrio. Ela parou a caminhada, olhou para trás e não viu nada anormal, algumas pessoas, carros, nada diferente. Voltou a caminhar.

Um quarteirão depois, o calafrio voltou, dessa vez como uma pontada. Novamente ela parou, pensou em pegar o telefone e ligar para uma ambulância, ou para alguém ir buscá-la, olhou para trás novamente e a um quarteirão de distância ela viu parado de pé olhando para ela um homem com cabelo e barba compridos e roupas que pareciam trapos. A princípio não era nada demais, mas a sensação de invasão era forte.

Ela começou a caminhar em ritmo acelerado o tambor sob seus pés agora tocava como uma orquestra, a respiração e o coração se aceleraram, refinando uma melodia de pavor. Dulce olha para trás e a o homem a está seguindo, ele andava calma e friamente, a distância que era de um quarteirão, agora era de meio quarteirão.

Dulce tentou correr, em sua cabeça ela sentia-se correndo, sentia dores no peito a respiração pesada, seu ouvido começou a zumbir. Olhou para trás novamente e o homem estava a apenas alguns metros dela, caminhando calma e tranquilamente com o olhar apático e vidrado, parecia olhar dentro da alma da moça.

Ela fechou os olhos e tentou correr com todas as forças, o zumbido agora tocava como uma sirene em seus ouvidos, ritmado pelo tambor de seus passos. Foi então que ela se sentiu agarrada por trás, braços fortes de homem cobriram seu corpo, a mão do homem cobriu sua boca, abafando qualquer grito, faltou ar, ela desmaiou.

Dulce sentiu sua pele molhada pelo orvalho. Um ar frio penetrava seus pulmões. Ela entreabriu os olhos e viu a luz das estrelas. Ela estava deitada em uma área de mato parecia um parque ao longe ela viu algumas pessoas fazendo caminhada, ela ficou parada por alguns minutos até criar forças e soltar um grito de socorro e erguer seu braço. Foi quando ela ouviu um cachorro latindo e vozes de pessoas conversando, não viu mais nada.

Dulce acordou novamente agora em um quarto de hospital. Ela acordou deitada em uma cama e com o soro em seu braço, estava com roupas do hospital e estava tudo calmo. Então apareceu uma enfermeira, que disse:

- Olá Dulce! Tudo bem com você?

- Acho que sim, o que aconteceu? Porque estou aqui? – Pergunta Dulce.

- Aparentemente você teve um colapso nervoso, você foi encontrada nas proximidades do Parque da QNL, tudo indica que você vai ficar bem agora, algumas pessoas chamaram a ambulância e te trouxeram pra cá, o policial Henrique está aqui para fazer algumas perguntas, vou chama-lo, aguarde só um instante.

A enfermeira sai e depois de um tempo, entra o policial com um bloco de anotações, que diz:

- Boa noite Dulce, meu nome é Soldado Henrique, estou aqui para verificar o que aconteceu. Você se lembra de alguma coisa?

Dulce se ergueu, apoiou as costas na cabeceira da cama e respondeu:

- Só lembro que estava caminhando indo para casa, havia um homem me perseguindo, depois disso apaguei e não lembro de nada.

- A que horas foi isso?

- Por volta das 17:30.

- Você pode descrever o suspeito?

- Era um homem com roupas velhas e rasgadas, cabelo e barba cumprida. Acho que era um mendigo.

- A senhora foi atacada por um morador de rua?

- Sim, e acho que foi o mesmo mendigo que havia visto uma hora antes perto da rodoviária do Plano Piloto.

- O morador de rua seguiu a senhora pelo metrô?

- Acho que eram a mesma pessoa.

- A senhora foi encontrada às 20:00 em um terreno baldio próximo ao Parque Vivencial da QNL.

O Soldado Henrique anotou algumas coisas no bloco e encerrou a entrevista:

- Por enquanto é só Dulce, vou deixar você descansar, logo conversaremos mais.

Dulce achou estranha a forma como ela foi questionada, apenas algumas perguntas, sem muitos detalhes, mas ela ainda não estava bem, então voltou a se deitar na cama e a descansar.

4

Com um suspiro assustado Dulce acordou a meia-noite com o quarto escuro, o céu estava encoberto e parecia que ia chover, dava pra se ouvir sons de trovão, e poucas luzes da rua penetrando pela janela. Foi aí que ela começou a se fazer perguntas como: Que hospital era aquele? Porque ela estava sozinha no quarto? Porque nenhum parente apareceu?

Tudo estava estranho, e terrivelmente silencioso, não havia barulhos típicos de hospital. A pulsação de Dulce começou a acelerar, ela também começou respirar ofegante. Foi quando caiu um raio bem próximo que provocou um som estrondoso e que iluminou todo o quarto. Foi então com as luzes projetadas na parede do quarto que Dulce ficou ainda mais assustada quando viu na parede à figura de um gárgula sinistro, o mesmo que ela havia visto na rua, pintado com tinta fluorescente tinha chifres pontudos e uma língua asquerosa.

Completamente abismada com a situação, Dulce respirou fundo e em um extinto de sobrevivência, tirou o soro do braço, se levantou da cama e começou a vasculhar o quarto, do outro lado da sala havia um pequeno armário com frascos, gases e outros equipamentos, ela achou um bisturi e voltou para a cama para aguardar pelo pior. Após alguns minutos hesitando, ela esconde a ponta da mangueira do soro e grita por ajuda:

- Enfermeira! Enfermeira! – Ela gritou várias vezes, sem nenhuma resposta, depois de um tempo, a porta se abre e entra uma pessoa vestida com roupas brancas de enfermeira.

- Sim Dulce, está tudo bem com você?

- O que está acontecendo aqui? Porque estou sozinha nesse quarto? Que hospital é esse? Onde estão meus parentes?

- Calma Dulce! Calma! Você está muito nervosa, precisa de um sedativo. – A enfermeira vai em direção ao armário e pega um frasco e uma seringa.

Dulce fica avaliando a enfermeira, quando ela se aproxima da cama. Dulce percebe que não era uma mulher, e sim um homem e incrivelmente parecido com o soldado Henrique, e também com o mesmo olhar vidrado do mendigo do metrô.

Quando a falsa enfermeira procura a mangueira do soro. Dulce cria coragem e em um único golpe, ela crava o bisturi na barriga do sequestrador, que cai no chão sangrando e com a mão na barriga ele grita:

- Sua vaca! Você vai morrer!

Dulce deixa o homem se arrastando no chão e saí correndo do quarto, após percorrer alguns metros ela vê o homem de pé saindo do quarto cambaleando, ela consegue entrar em outra sala na qual havia uma porta trancada. Dulce olha e vê uma janela que dá para a rua, ela estava no primeiro piso de um prédio, ela sobe em uma cadeira, alcança a janela e consegue saltar sobre a lona de uma marquise em baixo, a lona se rasga e Dulce cai no chão se machucando, mas ainda em condições de andar. Era de madrugada, não havia ninguém na rua e ela sai correndo descalça. Ela olha para trás infinitas vezes e ninguém está atrás dela a perseguindo.

Dulce corre até encontrar um posto policial. Ela obtém socorro e é levada para um hospital de verdade dessa vez, por mais exausta que Dulce estivesse ela agora resolveu não dormir, não relaxar, dessa vez ela não iria deixar que as circunstâncias fossem maiores do que ela.

Dulce descreveu o local onde ela estava para os policiais, no dia seguinte, eles deram notícias que encontraram o local, a sobreloja de um sobrado comercial. Porém não havia nada lá, o imóvel possuía um anúncio de aluguel, mas não havia móveis, nem sangue, nem pinturas e nem marquise estragada.

5

Alguns dias se passaram, nada fora do normal havia acontecido. Dulce voltou a trabalhar e a estudar, ela ainda morava no apartamento em Taguatinga e se deslocava de metrô. Ela não tinha outra opção, a família e os colegas se sensibilizaram no início e tentaram ajudar, mas após alguns dias a rotina normal voltou.

Dulce se mantinha em estado de alerta, mas ela não estava satisfeita, não havia explicação para aquela história. Foi após um dia de trabalho em que chegando ao metrô, passa por outra calçada de acesso do terminal, passa perto de algumas pessoas e vê um rapaz que a princípio, não tinha nenhuma semelhança com o que a raptou, porém ele olha para Dulce e diz:

- Moça, me dá uma ajuda.

Dulce se apavora, dá um grito e sai correndo, todos ficam olhando para ela. Quando ela chega ao seu destino, antes de chegar em casa ela passa em uma farmácia e compra um bisturi. Já era noite e Dulce a caminho de casa, passando pela Praça do Relógio, vê um homem deitado sob uma árvore ao longe, ela chuta os pés do homem que acorda assustado, Dulce grita:

- Você quer uma ajuda?

Ela estende sua mão segurando o bisturi. Nos olhos do homem havia pavor, ele coloca os braços sobre o rosto para se defender. De repente, na mente de Dulce quando ela vê a face do gárgula sobre o rosto daquele homem moribundo, a mesma figura demoníaca que ela já tinha observado duas vezes. Seu primeiro instinto era de ódio e de raiva. Mas ao invés de consumar sua intenção, Dulce volta atrás e baixa sua mão, ela se acalma respira fundo e diz:

- O mal não habitará aqui.

Dulce pede desculpas ao homem, e volta caminhando pra sua casa com uma leveza e tranquilidade que jamais tinha experimentado, era como se uma forte tempestade houvesse passado e agora ela estivesse navegando em paz e calmaria.

Nos dias que se seguiram Dulce não se sentiu mais ansiosa, aos poucos ela parou de tomar os remédios. Ao invés de se encapsular em seus problemas; por meio de uma decisão, Dulce agora estava livre. Dulce nunca mais voltou a ver aquele demônio.

Fim

Bruno Maia

“A dor, como é óbvio, em especial a dor física, encontra-se amplamente difundida no mundo dos animais. Mas só o homem, ao sofrer, sabe que sofre e se pergunta o porquê; e sofre de um modo humanamente ainda mais profundo se não encontra uma resposta satisfatória.”

Salvifici Dolores