Parabéns

Somente às quatro da tarde, duas horas após o horário previsto, o radiocomunicador de Ramiro deu sinal de vida.

- Alguém na escuta? - Perguntou uma voz de mulher em meio à estática.

- Ramiro - respondeu ele, enquanto nos aglomerávamos ao seu redor, ansiosos. - Cadê o helicóptero? Não demora e vai escurecer nessa merda!

- Então... - disse a voz no rádio. - Estamos com problemas aqui na base e não vamos poder mandar o helicóptero hoje. A recomendação é que vocês procurem um local abrigado e aguardem pela manhã.

- Isso é alguma piada? - Resmungou Fabrício. - Não somos soldados, somos só uma equipe de campo!

A voz no radiocomunicador prosseguiu inalterada em meio à estática:

- Vocês sabem como a coisa funciona. Se ficarem quietos e trancados num local seguro, é extremamente improvável que sejam incomodados pelo que quer que seja.

Nos entreolhamos, realmente assustados. Éramos quatro técnicos terceirizados, eu, Ramiro, Fabrício e Jana, à serviço de uma empresa que avaliava ativos de antes da guerra, os quais depois eram leiloados. Normalmente, éramos levados de helicóptero até um ponto distante dos Territórios, declarado "seguro" pelos militares, fazíamos o levantamento das propriedades na região, equipamentos agrícolas remanescentes e benfeitorias, e ao fim do dia retornávamos ao acampamento avançado. Trabalho burocrático, basicamente. Por questões de segurança, todos andávamos armados com pistolas calibre 40, mas haviam sido pensadas mais em função de cães selvagens do que de outra coisa qualquer.

- Temos que agir logo - disse Jana, olhando em torno. - Vai ser péssimo ficar nesse descampado quando o sol se pôr.

Estávamos em campo aberto, nas coordenadas marcadas para o resgate pelo helicóptero da base, com duas motocicletas que nos haviam servido para o deslocamento na região. Geralmente, trabalhávamos em equipes de dois, para agilizar o serviço e cobrir uma área maior.

- Tem uma sede de fazenda, três km ao sul - decidiu Ramiro, após uma rápida confabulação com seu parceiro Fabrício. - A casa está em bom estado.

Não havia tempo para deliberações. Montamos nas motos e seguimos para lá.

* * *

O sol estava se pondo quando entramos, empurrando as motos, na cozinha da sede da fazenda. A porta havia sido arrombada, muitos anos atrás, e o interior estava uma bagunça, após anos de abandono. Pelo menos, as janelas ainda estavam intactas, inclusive com as cortinas empoeiradas no lugar. Escoramos a porta com um freezer horizontal enferrujado e subimos para o andar superior. Para vigiar melhor o terreno ao redor da casa, Ramiro e Fabrício se instalaram no quarto principal, voltado para a estrada por onde havíamos vindo, e eu e Jana ficamos no quarto dos fundos, sobre a cozinha.

A noite caiu. Não havia uma única luz artificial visível nos campos à nossa volta, somente o brilho das estrelas no céu negro. Por razões de segurança, também não acendemos qualquer iluminação dentro da casa e comemos nossas rações no escuro.

Havíamos decidido nos revezar em turnos, cabendo o primeiro a Ramiro e Fabrício, mas o certo é que nem eu nem Jana conseguimos dormir. Ficamos sentados no chão do quarto - um quarto de menina - conversando para passar o tempo.

- Quem será que vivia aqui? O que terá acontecido com eles? - Perguntou-se ela.

- Essa região não foi das mais atingidas... - ponderei. - É possível que tenham conseguido fugir antes dos combates.

- Gostaria de pensar que sim. E que talvez possam voltar para cá um dia...

Pensei comigo mesmo que, se depois de tantos anos ainda não tinham reclamado a propriedade, era muito provável que nenhum dos antigos donos houvesse sobrevivido. Mas evitei verbalizar minha dúvida, para não aumentar o clima de desânimo reinante.

Por volta de meia-noite, Fabrício foi até o nosso quarto.

- Acordados?

- Acha mesmo que alguém consegue dormir essa noite? - Indagou Jana.

No escuro, não dava para ver a expressão dele, mas pelo tom da voz, percebia-se que achara graça.

- Ramiro dormiu, meia hora depois que começou nosso turno. Preferi não acordá-lo. Está tudo calmo.

- Ótimo - respondi. - Então fique aqui. Vamos lá para a frente.

A passos cautelosos, usando a luz do mostrador do relógio como fonte de luz, nos deslocamos até o quarto da frente.

Em lá chegando, rapidamente percebemos que Ramiro não estava ali.

- Pode ter descido - comentei, tentando parecer despreocupado.

- No escuro? Por que faria uma estupidez dessas? - Questionou apreensiva Jana.

- Vamos voltar para o quarto dos fundos, - decidi, sacando a pistola - ver se o Fabrício tem alguma ideia do que pode ter acontecido.

Quando finalmente chegamos ao quarto dos fundos, Fabrício igualmente havia desaparecido.

* * *

A luz cinzenta da manhã nos encontrou sentados no chão do quarto, costas contra costas, armas na mão. Assim que clareou o suficiente para andarmos sem tropeços pela casa, demos uma geral em todos os cômodos, atrás do paradeiro de Ramiro e Fabrício. Inútil. Nunca foram encontrados.

Retornamos nas motocicletas ao ponto de resgate, e finalmente vimos descer o helicóptero militar. Ao saber da nossa história, o piloto nos cumprimentou:

- Parabéns!

- Pelo quê? - Indaguei.

- Vocês se mantiveram juntos o tempo todo; nos Territórios, isso pode representar a diferença entre vida e morte.

Há alguma coisa nos Territórios que espreita aqueles que ficam sozinhos, no escuro, esperando pela luz da manhã. Para alguns, nada acontece. Para outros, em noites sem lua, a luz do dia jamais chegará.

- [26-05-2017]