O Reflexo do Abismo

Durante a mais escura noite de Julho, em umas das enumeráveis celas da assombrosa prisão, um velho chorava em silêncio arrependido da vida macabra de assassinatos. Ele, já sem esperanças de sentir mais uma vez o gosto da liberdade, refletia sobre a sua trilha de estupidez. O fardo da farda suja de sangue lacrimejavam os olhos fechados pela dor de sua pouco sã mente.

E em sua psicótica esquizofrenia ele vê, através das grades de aço, as sombras de sua cela tomarem a forma de um diabrete, um duende infernal agente do Caos e da Maldade. Começa, então, o chamado.

Ele se esguia por entre as barras e invade o cubículo, ri da figura anestesiada em sofrimento, afogada em solidão e raiva de si mesma. O ser de sombras se aproxima do decadente. A luz da Lua penetra a cela e quando o diabrete passa pelo feixe de luz é revelada uma pele cinzenta, cheia de vermes e cicatrizes de chicotadas, um bocarra aberta com centenas de dentes pontiagudos e afiados, olhos azuis como o mar caribenho, orelhas pontudas e uma cauda espinhenta e delgada.

O homem observava o serzinho se locomover habilmente por entre a cela até ficarem cara a cara. O fedor putrefato da criatura não representava outra coisa senão as lembranças dos cadáveres empilhados e a voz infantil do sorridente monstro, as memórias mais pesadas da coletânea de pecados. Enquanto suas lágrimas acabam, relembra de um dos muitos inícios – de um diálogo com um tal monstro.

Um homem fardado, sentado largado na poltrona, enquanto se embriaga com uísque, em uma sala grande, com piso de madeira, móveis – mesa, cadeiras, estante de livros, bancos, armário e escrivaninha – envernizados, uma lareira de pedra acesa e quadros de velhos enfeitando as paredes brancas. Um ambiente escuro, totalmente abandonado, cheio de pó, tomado por uma sombra, com as lâmpadas apagadas e janelas fechadas, apenas com a pequena lareira acesa, iluminando somente a poltrona.

Ele estava quase dormindo, ou desmaiando, até que um calor sobe pela garganta e a mente se escurece, começa a perder-se da realidade e a ver coisas de sombra. As coisas se remexem e se aglomeram, até formarem uma figura, abstrata e temível, emitindo uma aura do Adversário e o homem percebeu todo aquele lance de maldade e profanação, que saia de sua imaginação. Mas não sabia ele que a criatura maligna que roubou-lhe o ar, sufocando-o, era uma cria de sua mente perturbada... e a criatura da noite disse:

“Eu atendi o chamado! ”, ela grita. Sua voz é a mesma do oficial, o mesmo tom e emoção. E este responde com:

“Qual chamado? ”, pergunta, hesitando em saber. Sua mão com a garrafa de uísque fica trêmula e, conforme as sombras ficam em silêncio, o suor escorre até que a garrafa escorrega das mãos encharcadas e se espatifa no chão enchendo-o de cacos e de um pouco da bebida que sobrara, quando ambos ficam face a face. Nesse momento, a figura cresce e suas sombras pegajosas formam um sorriso de dentes serrilhados, e ela diz, com um tom totalmente diferente:

“Você sabe quem sou...”, a criatura se afasta e começa a crescer. Então a sala e a própria lareira são envolvidas pelo assombroso ser, que continua cresce até ocupar todo o ambiente e confundir-se com o universo.

O bêbado encara o vazio a sua frente. Engole em seco. Com a mão direita faz o gesto de “Pai, Filho, Espírito Santo”. Não pisca. Seus dentes rangem. O suor escorre por todo o corpo.

E a treva penetra a alma. E este termina a frase:

“[...] O abismo olha para você”. Os olhos lacrimejam e quando ele os fecha a criatura o invade pela boca, pelos ouvidos, nariz e ânus. Quando suas pálpebras abrem, o homem vê sua sala como sempre, em sua mão uma garrafa de uísque intacta e seu corpo seco, sem quaisquer gotas de suor.

Ele vira a garrafa e bebe no gargalo o pouco que restara. Seu corpo estava forte e saudável, mas sua mente, pelo contrário, ruíam.

As sombras foram grandes e manipuladoras. E o homem foi controlado por elas. Pois nas trevas não há culpa ou medo, elas não precisam ser correspondidas, é único a sensação de estar envolto a essas chamas de prazeres e vigores. Entretanto, assim como sua contraparte, causa uma sede, um vício [uma fornalha cujo abastecimento à lenha deve ser feito ininterruptamente]. E a lenha desta é, senão outra coisa, o assassinato brutal direta ou indiretamente do espírito ou corpo.