Anatomia do improvável

"As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão". (André Gide)

Tolstói disse que é um engano supormos que o belo é bom. Mas, compreende-se o equívoco. É uma questão natural. Literalmente. Na natureza, a beleza é sinônimo de bons genes e um férreo sistema imunológico. Como somos uma espécie com tendência a ilações indutivas, caímos na armadilha. Sempre, me dou a licença de afirmar.

A primeira vez que a vi, fui tomado por um êxtase inopinado. Como todos aqueles que, ao menos uma vez, se viram frente a algo belo, e que não entenderam onde aquilo se encaixava num mundo que parece ter esquecido que a beleza deveria sera regra, não a porcaria da exceção.

Passou à minha frente, enquanto eu ia a algum lugar qualquer, fazer algo mais qualquer ainda. Congelei, por uma nesga de segundos. Seus olhos cruzaram os meus, por uma nesga de segundos ainda mais breve. Eu, por falta de completa competência neste assunto, diria que eram azuis. Mas, estaria sendo leviano. Eram de uma cor que nós, limitados em sentidos, achamos por bem nomear azul. Minha certeza oblíqua, como toda certeza que vale a pena ter, sabia ser uma cor fora do espectro de nossas capacidades. Uma cor que sussurrava aos que ela encaravam. Sibilava, seduzia, algo assim: está perdido.

Outra coisa não aconteceu. Fui-lhe atrás. Tamanha era minha vontade, que perdi a compostura, aquela que manda não correr atrás de senhoritas (não sabia nem mesmo se senhora não era seu título formal) que passeiam ao sol estival em tardes propícias a seja lá o que intentam. Aproximando-me, pedi: senhorita! senhorita!

Ela parou. Volveu as madeixas flavas, os cabelos áureos, o cetim dourado, encarou-me com descrença, mas deu-me um voto, perguntando: sim?

Parada, sua beleza recrudesceu. Literalmente. Uma prestidigitação, isso sim. Não importava. Engasguei-me com o impacto. Depois engoli a incredulidade. Por fim, num surto de atrevimento, pedi-lhe o nome, sem dar nenhuma explicação para a abordagem petulante. Era, já, escravo da imprudência. Refém de uma paixão. Sim, existem aquelas que ocorrem à primeira vista, e consomem ansiosas qualquer bom senso, ou cautela.

- Juliana - escorregou entre aqueles lábios intumescidos, rubros sem o engodo de cosméticos. E, outra vez, entre as sílabas, escutei: está perdido!

Hoje, uma vaga lembrança, uma peça da memória, ilumina um sorriso naquele olhar. Um sorriso sutil. E, pleno, amplificado de terror e com o gosto da morte. Naquela boca, vislumbro num canto da minha cabeça, o olfato doce da insídia. A que me corrompeu. Eu, alma serena, sujeito pacato. Incapaz de selar fleuma àquelas formas lânguidas, metidas em volúpia.

Olho para o teto. Sinto o seu cheiro adiantar-se. Parece que há madressilvas como arautos de sua chegada. A corda aperta com mais força que o necessário meus braços e pernas à cadeira. A porta se abre. Ela entra. Linda! Linda! Linda! Meu coração se aperta. Ela se aproxima. Meu coração atropela-se na batidas. Como ela é linda! Linda! Linda! Retira a faca da bainha. A lâmina brilha ao passar pelo fio de luz que entra pela pequena janela basculante.

- Juliana, eu te amo!

O corte arranca um naco generoso da minha coxa esquerda. A dor é lancinante. Claro que grito.

Antes de sair, abocanhando seu acepipe, com fúria e certa elegância, ela me diz: está perdido!

Ao bater a porta, escuto seus passos se afastando e a dor, agora em meu coração, aumentando. Daí, grito: Juliana, não vá. Fique! Tenho muito mais carne. Juliaaaaaana!