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Amélia explodiu em uma gargalhada aguda. Seus olhos lacrimejavam de animação. Ela estava sentada à mesa de um bar bem próximo de casa; todas suas amigas estavam ali também. Comemoravam seu quinquagésimo aniversário bebendo grades e mais grades de cerveja gelada, enquanto ela permanecia nas caixinhas de suco. Quem a visse ali, esbanjando alegria e juventude, jamais imaginaria todos os problemas que enfrentou para estar de pé até hoje. Recém curada de um câncer pulmonar, Amélia lutava diariamente contra o vício — que a dominou por mais de trinta anos — em tabacos. Ela fumava de todos os tipos e todas as formas, desde cigarros de palha até charutos importados. Costumava brincar dizendo que o maior prazer de sua vida era absorver fumaça e gabava-se do apelido que ganhou ainda durante a adolescência: Chaleira. O medo de a doença voltar também era constante. Só de imaginar células cancerígenas rodeando seu corpo, escolhendo a dedo o próximo órgão que dominariam, ela entrava em desespero. Mas hoje não era dia de tristeza. Mordeu o resto de bolo que estava em seu prato e passou a mão pelos olhos, secando-os.

— Eu juro! — exclamou Renata, a amiga mais nova da mesa, aquela que também arrancara gargalhadas de todas há alguns segundos atrás. — Julinha poderia estar aqui para vocês não acharem que estou brincando

— terminou, sorrindo. Estava contando sobre sua última aventura nos motéis da vida, na qual o homem fugiu e deixou a conta para que ela pagasse.

— Ainda bem que por esses perrengues eu nunca passei — sorriu Amélia. Orgulhava-se de ter casado com seu primeiro namorado. Por conta disso não tinha histórias para contar quando o assunto era algo relacionado a homens-problema.

— Sorte sua, Mel — disse Vanda, a amiga mais antiga de Amélia. — Lembro de uma vez que... — E seguiu contando.

A tarde caía lentamente na rua. As nuvens de pouco a pouco iam abrindo espaço para o sol dar o seu espetáculo final. O dia seguiu sem chuva, apesar de a semana inteira ter passado embaixo d’água. Já estavam no bar há mais de quatro horas e Amélia sentia um cansaço extremo. Seu corpo ainda estava se recuperando e ela não podia se dar ao luxo de extravasar assim. Os remédios eram pesados, pareciam mais soníferos, mas ela manteve-se disposta durante o tempo todo. Havia feito o bolo, fritou os salgadinhos e ainda fez almoço para o marido.

— Acho que já vou indo — disse ela, quando as estrelas finalmente tomaram conta do céu. As amigas concordaram, afinal, todas acompanharam a dureza de seu tratamento. Compreendiam seu cansaço. Despediu-se de cada uma com um abraço e os típicos beijos no rosto. Deu tchau também para Alberto, o vizinho e dono do bar, e começou a caminhar de volta para casa.

A noite estava clara e um vento aquecedor tomava conta das ruas. Pegou-se pensando em Gabrielle, sua única filha. Do bar dava para ver a entrada de sua casa, mas ela não tinha visto ninguém entrando ou saindo de lá. Bom, talvez eu não estivesse prestando tanta atenção assim, pensou. Lembrou-se que havia deixado o celular em casa e ficou mais calma. Talvez a filha tivesse lhe telefonado para avisar que chegaria mais tarde e ela não viu. Tudo bem. A calçada rapidamente foi engolida pelos seus passos largos e logo estava em casa.

— Tô de volta! — anunciou alegremente ao passar pela porta da frente. Demorou-se na última palavra para demonstrar a sua alegria.

— Ei, amor — respondeu Marcos, seu marido. Ele ainda estava no sofá, exatamente onde ela o deixou. Deu-lhe um beijo.

— A Gabi já chegou?

— Não.

— Nem ligou?

— Também não.

Ela concordou com a cabeça e foi em direção ao quarto. O celular estava em cima da cama, a tela acesa. Pegou-o e logo foi apagando as notificações. Suas amigas falavam e mandavam fotos freneticamente pelo grupo que elas possuíam num aplicativo de conversas. Procurou por chamadas perdidas, mas não havia nenhuma. Foi conferir as mensagens e logo seu coração foi envolto por um calor de conforto. Gabrielle havia lhe mandando oito mensagens, sendo a última delas um “Parabéns!!”. Sorriu. Amava-a demais. Clicou no tópico da filha e a conversa abriu-se instantaneamente. Antecedendo a felicitação havia várias fotos. Por um segundo ela desejou que o câncer tivesse ceifado a sua vida.

Uma lágrima de pavor escorreu volumosa pelo seu rosto, que estava contorcido de choque. Uma das fotos que ali se exibiam mostrava sua filha caída no chão, nadando em seu próprio sangue e com os olhos ainda abertos, porém sem vida. Gabrielle estava com uma corda amarrada no pescoço, com sangue descendo pela boca. O resto de seu corpo era algo indescritível. Um amontoado vermelho de carne e ossos quebrados. As fotos seguintes mostravam, de perto e com todos os detalhes possíveis, como estava cada parte do cadáver.

O celular caiu no chão com um estalo oco. Amélia quis gritar, chorar, explodir-se em milhares de pedaços. A dor a paralisava. Nada físico era comparável àquilo. Numa tentativa falha de falar, ela fez um som murcho, vago e estúpido. “Parabéns!!”.

— Mar... Marcos — foi tudo o que conseguiu dizer antes de cair no chão, desmaiada e varrida por um dor que ela jamais havia enfrentado até então.

Ricardo Coutins
Enviado por Ricardo Coutins em 21/08/2017
Código do texto: T6090765
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