Davi tinha certeza absoluta que havia algo doce... tipo um pedaço de ameixa, inserido dentro daquele último copo de conhaque que tomou na festa.

- Idiotas... – Sussurrou... – Pensam que sabem tudo... ficam citando outros e outros e outros e outros... “antes de ler o livro que o guru lhe deu, você tem que escrever o SEU”, diria Raul Seixas... há! Estou criticando o ato de citar, citando! Hahaha!

Trôpego, olhava fixamente os próprios pés. Não havia nada a se ver na rua vazia. A rua que sempre via. E mesmo que tivesse alguém, eram sempre as mesmas pessoas e os mesmos “bom dia” de sempre. Talvez fosse urbano demais para tudo aquilo... talvez não combinasse com aquele povo. Mas a verdade é que saiu da cidade dizendo que o problema é que não combinava com ninguém por lá também, então talvez o problema estivesse nele mesmo, apenas nele.

Parou um pouco, encostou uma mão num muro. Sentiu um prego que quase o furou, ajeitou a posição antes que pudesse se ferir, tossiu um pouco e o vômito veio mais ligeiro que um cuspe. O conhaque saiu misturado com suco gástrico e havia realmente algo ali. Era algo preto e redondo..., mas não era ameixa. Parecia uma pedra, mas aparentava ser um pouco mole, talvez oca por dentro. Enojado e ainda engulhando Davi virou o rosto, tentando olhar para frente sem se sentir tonto e nauseado. Não faltava muito... era apenas uma ladeira, viraria à esquerda e estaria praticamente na porta de casa.


- Psssiu! – Fez uma voz atrás dele.

Davi se virou bruscamente, caindo para trás de bunda no chão. Não havia ninguém. Ele estava bêbado demais, mas nunca ao ponto de duvidar de si mesmo. Ouviu uma risadinha..., mas essa risada parecia ecoar por toda a rua vazia. Davi não conseguia sentir medo, pois não acreditava em assombrações, em males invisíveis, até mesmo porque nem mesmo no bem invisível ele acreditava. Era um ateu convicto, amante das ciências e das artes palpáveis. Não acreditava que Deus fosse responsável pela nona de Beethoven, mas que o artista tinha sido somente, - e simplesmente - talentoso o suficiente para produzi-la... unindo sorte, oportunidade, estudo, sacrifício e muito talento. Como que, seguindo com esmero a receita para o bolo mais gostoso do planeta.

Só que mais uma vez a risada ecoou... era uma risada meio infantil, mas de forma alguma de uma criança. Parecia mesmo um adulto com algum problema nas cordas vocais. Davi olhava em sua volta, girando o corpo aturdido. Acabou vomitando mais uma vez no chão, caindo em seguida quase por cima do próprio líquido espalhado..., rolou um pouco no chão da ladeira e acabou adormecendo, apenas por alguns segundos.

Quando Davi acordou... à medida que seus olhos focavam o que via, estava ali parado em sua frente um pequenino sujeito, com uma túnica verde e um chapéu pontudo. Ele não parecia exatamente um anão... pois era na verdade, bem mais baixo do que um. Também não era uma criança, de jeito nenhum... tinha uma longa barba que atravessava o seu rosto bochechudo de queixo a queixo. Ele sorria um sorriso enorme, mas que de forma alguma era acolhedor... e sim, muito feio, com sobrancelhas grossas e um ar irônico no semblante.


- Diga “OLÁÁ...”, companheiro! – Ele disse, numa voz cantarolada.

Davi o ignorou e se levantou, sacudindo a sujeira em sua calça e cabeça, irritado. Sua cabeça doía num início precoce de ressaca, talvez causado pela queda. Quando se levantou, olhou o pequenino homem a sua frente e ainda bêbado, deu uma gargalhada zombeteira. Ia dando meia volta, deixando-o totalmente ignorado, quando sentiu uma mão enorme e gelada cutucando sua perna. Virou-se mais uma vez para olhar o pequeno homem... desta vez, um pouco irritado e agressivo... Davi ficava um tanto agressivo quando bebia. Quando deu uma boa olhada nas mãos do sujeito. Eram enormes, muito maiores do que as mãos de um homem comum, com enormes unhas pretas que mais se pareciam garras.


- Diga “OLÁÁ”, companheiro! – Ele repetiu, desta vez com uma voz ainda mais cantada. Porém, seu olhar era extremamente maldoso e parecia ficar muito pior com a rejeição de Davi.

Davi era um homem arrogante. Muitas vezes se sentia superior a outras pessoas. Principalmente quando bebia, isso se tornava bastante evidente e aflorado. Era de fato um sujeito inteligente, (“acima da média”, como dizem as pessoas) ... quando queria aprender uma coisa, aprendia sozinho e era o seu próprio mentor. Tornava-se especialista no que fazia, sempre.
Aprendia teorias com o intuito de refutá-las em seguida, lia os maiores filósofos e pensadores só para chamá-los de imbecis (ou citá-los em mesa de bar, quando queria chamar alguém de ignorante ou atrair atenção). Devorava romances que no início achava maravilhosos e já nas últimas páginas chamava-os de perda de tempo. Esse era Davi. E não seria um sujeitinho baixote e com roupa de palhaço que tiraria de Davi a sua quase inerente arrogância. Davi fez um “RUM!! ”, e se virou mais uma vez, dando as costas para o pequenino.

Desceu a ladeira devagar, com muito esforço para não cair novamente... e quando já estava bem no final, antes de virar à direita para entrar na rua de sua casa, olhou para trás. O sujeito não estava mais lá. Davi sentiu algo no peito. Algo muito perto de compaixão... de pena... até mesmo de culpa. Lembrou de história de pessoas que precisavam apenas de um mínimo de rejeição para se convencerem a morrer.

Já tinha lido sobre isso em algum lugar... ou visto num filme..., pessoas que perderam tudo e que buscam algum mísero resquício de bondade em pessoas aleatórias. Muitas vezes uma briga no transito, um olhar repreensivo, uma grosseria na fila do pão ou do banco, eram a gota d’água. Isso passou pela cabeça de Davi. Na verdade, muitas vezes coisas assim invadiam sua mente. Mas talvez seja mais fácil para uma pessoa sem dogmas, viver sem culpa. E a bebida era um bom recurso contra pensamentos bondosos. Ele dormia e acordava com toda a sua arrogância calibrada.


- Ei Ploc!! Fiuuu! Eiiii... amigã-ãão...

Talvez o Ploc..., o seu cão labrador de dois anos de idade, fosse o único ser no mundo inteiro que conseguia suportá-lo na mesma casa. Ploc não pretendia discutir com ele se ele chegasse todos os dias com ração, água e carinhos na barriga.

- Plooooooc!!! Migão!! Migão?? MIGÃO!!! – Davi berrou quando viu o cachorro caído num canto do quintal. – MEEE-UUU DEEEEEEEEEEEEUS!!! – Tentou correr e tropeçou mais uma vez de maneira abobada nos próprios cadarços, caindo de cara na terra fofa e molhada do seu quintal.

Tentou se arrastar e sentiu mais uma vez as garras geladas alcançando novamente os seus pés. Foi puxado pra trás com uma força sobre-humana.


- Olá, companheiro. Por acaso você disse “meu deus? ”.

Ele estava ali mais uma vez. E Davi se encontrava agora ajoelhado em sua frente. Mesmo ajoelhado ainda era bem maior que ele. Seu sorriso era constante e diabólico e seus olhos eram verdes e penetrantes.

- O qu... que... você... você...
- Sou um duende. – Ele respondeu rindo.

Davi passou a mão no rosto várias vezes, freneticamente, soltando um riso debochado, porém incrédulo e cheio de medo.


- Você disse “meu Deus”?! – Ele perguntou novamente...
- O que você quer?! Que eu acredite em você? No Diabo!?! EM DEUS???

O duende então pôs sua mão gelada no rosto de Davi, acariciando sua face. Davi sentiu um arrepio mortal por todo o seu corpo, sentiu-se incrivelmente perdido e infeliz.

- Isso, que eu estou sentindo... isso é morrer? – Davi perguntou desolado e chorando.
- Não, meu amiguinho. Isso é só um pouquinho.

Davi então caiu de lado aos pés do duende. Ele queria desmaiar... na verdade ele queria morrer. Queria que aquilo tudo fosse - finalmente - a sua gota d’água..., mas estava errado pois era apenas o início de uma nova vida.

- ... o que você quer de mim? – Perguntou num tom resignado.
- Quero que diga “OLÁ”, companheiro! – Respondeu o duende.
- o-olá... – Respondeu Davi com lágrimas nos olhos, e o duende sumiu pra sempre.