Quero Matar Papai Noel

Jake Chambers sentou no primeiro degrau da escada de sua casa. O chão era aveludado, cor vermelho escuro, o carpete era bem quente. Isso era bom porque ele estava vestindo apenas uma calça jeans e uma camiseta de pijama amarela de manga comprida. Mesmo sendo um dia típico de Natal, frio e com neve, Jake não sentia frio nenhum.

Pelo contrário, ele sentia calor. Sua adrenalina estava a mil, seus sentidos estavam alertas, seus pés se moviam de um lado para o outro. Ele estava ansioso. Lembrou-se da época que tomava remédio para ansiedade, sob justificativa da sua gorda médica de que “Ele é muito agitado, ninguém gosta de crianças assim. Vai ter dificuldades para arranjar um emprego. Talvez até mesmo uma namorada.” Sua mãe havia comprado a conversa. Seu pai? Indiferente. Ele? De jeito nenhum. Jake até admitia que ele era um pouco agitado mesmo, mas ele não achava isso ruim. Qual o problema de estar sempre alerta? Sempre...

Um barulho. Na janela.

Tic.Tic.

Ele olhou bruscamente, já preparando para se levantar, mas era apenas um morcego. O animal havia trombado no vidro do lado de fora da janela, agora ele se recompunha olhando confuso para os lados. Sua cabeça virou para Jake e ficou ali parada por uns segundos.

“O que que foi?” – ele pensou, provavelmente esquecendo que morcegos eram cegos.

O pequeno animal se colocou em pé e, como um bêbado que tenta voar, se jogou no mato de novo. Não deu pra ver o destino, já que passava da meia noite, e estava muito escuro lá fora.

Não muito mais claro, estava a sala de estar da casa de Jake. A única iluminação no grande cômodo de receber visitas dos Chambers era uma árvore de natal montada no canto direito do lugar. Era alta, imponente, digna de uma belo cartão de Natal: “Hey, não falamos com vocês o ano inteiro, mas lhes desejamos um Feliz Natal e um próspero Ano Novo. Os Chambers.”

Os enfeites iam desde grandes bolas vermelhas, amarelas e azuis, a até mesmo anjos, duendes e um tipo de fita colorida. Deveria ter ali também alguns metros de pisca-piscas enrolados pelas “folhas” da árvore e, claro, uma enorme estrela amarela no topo. Tinha um miniatura dele também logo embaixo da estrela, segurando aquele grande saco vermelho.

“Você é um dos poucos que não vi ainda. Será que você tem essa aparência mesmo, parceiro?” – Jake pensou enquanto coçava a nuca.

O Coelho da Páscoa definitivamente não tinha a aparência que as pessoas imaginavam. Oh, não senhor. Jake se lembrava da primeira vez que o tinha visto: Já fazia uns dois anos. Ele estava voltando da aula pela avenida que sua mãe dizia “não vá por lá, é muito movimentada”, e ele havia percebido algo no canto do seu olho. Quando olhou, notou uma espécie de coelho gigante parado em pé ao lado de um poste comendo chocolate. Pasmém. Não era bem um coelho, pelo menos não um comum. O animal tinha quase três metros de altura, e era gordo. Muito gordo. Ele tinha um olhar melancólico, e comia ovinhos de chocolate enquanto parecia olhar para o nada.

Jake chegou perto dele e parou do lado do animal. De perto, ele era mais assustador ainda. Seus pêlos eram brancos com mechas cor caramelo, sua boca era bem grande, e tinha dentes amarelos. Seus olhos eram pretos e não tinham pálpebras, então ficava difícil saber para que direção ele estava olhando. As orelhas eram realmente grandes, pareciam duas folhas de bananeiras, mas diferente da maioria dos coelhos fofinhos, elas não estavam em pé; Estavam caídas, murchas. Ele podia fingir tocar violão com elas se quisesse. E se tivesse um senso de humor também, coisa que o Coelho parecia não ter.

O menino ficou parado em sua frente por pelo menos dez minutos. Nesse tempo, o Coelho pigarreou e cuspiu no chão umas quatro vezes e tirou cera da orelha outras duas. A cera foi algo realmente nojento de ver, já que cada bolinha de sujeira que ele fazia tinha o tamanho de um pão bengalinha. Quando o minuto onde de “Ignorando Jake” ia começar, ele pareceu notar o menino.

O Coelho encarou Jake e mexeu de leve alguns bigodes brancos do seu nariz. Colocou mais dois ovinhos de chocolate na boca. Pareceu ficar intrigado. Ergueu a pata esquerda e parou seus dedos(que supostamente eram pra ser fofinhos) na altura do rosto de Jake, que continuava encarando. O Coelho começou a mexer a pata vagarosamente de um lado para o outro, como um oculista que faz um exame de vista. Quando os olhos do menino acompanharam o movimento, ele fez um “Chiiiic” muito fino, o que não combinava nada com o tamanho do animal.

O Coelho ergueu as orelhas e mexeu nervosamente o nariz, aproximou a cabeça do rosto de Jake. O menino pode sentir um cheiro de grama, e o bafo do animal era um odor parecido com o de feno com um pouco de chocolate, claro. O grande Coelho continuou encarando Jake e ameaçou erguer os braços novamente e começar todo aquele ritual de oculista.

- Estou te vendo, parceiro. – disse Jake sem emoção.

- Chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiic. – dessa vez o Coelho deu um pulo para trás.

- Você não fala não?

- Você pode me ver? – a voz do Coelho saiu arrastada, com um leve sotaque caipira, “podi mi veeeeeer?”

- Posso. Fadas, duendes, bruxas e malignos também.

O grande Coelho se repôs e fingiu tirar pó dos seus pêlos. Jake pode reparar como aquele animal era enorme e gordo. Como ele fazia para entrar nas casas?

- Certo, garoto. Faz décadas que não vejo um do seu tipo. O último foi no Canadá. Nem me lembre, ele queria vir junto comigo.

- E o que você fez?

- Comi ele.

Pela primeira vez desde que tinha começado a ver esses seres, Jake se sentiu genuinamente assustado. Percebendo isso, o Coelho corrigiu:

- Estou brincando. Dei ovos a mais para ele, e ele calou a boca. Mas me diga, não lhe incomoda o fato de que as pessoas que estão em volta te vejam conversando com um poste?

- Pensei nisso, amigão. Não vê? – Jake apontou para seu fone de ouvido que percorria por seu corpo e ia parar no bolso. – As pessoas nunca se ignoraram tanto. E, se alguém reparar, estou falando no celular.

O Coelho fungou.

- Você é esperto.

*

Jake sorriu ao lembrar do Coelho da Páscoa. Ele era um cara(cara?) engraçado, mas estava extremamente fora de forma. Antes de sumir, ele confessou a ele que queria se aposentar, mas tinha um enorme problema, ele era uma entidade. E entidades eram imortais. Se você não morre, você não se aposenta.

“Tive dó de você, você realmente parecia cansado. Aaah, mas você não.” – ele estava olhando para o pingente do Papai Noel, pendurado logo abaixo da estrela da árvore.

Nunca teve tanta raiva de alguém como tinha do Papai Noel. Jake não conseguia entender a lógica: Por que crianças com pais ricos ganhavam melhores presentes? Por que algumas crianças sequer ganhavam presentes? Existiam alunos na escola de Jake que iam para a aula de chinelos e que ficavam felizes em receber uma caixa de lápis de cor, e aí quando chegavam no Natal, nada.

Do outro lado, existiam meninos que falavam “Meu celular”, “Vamos de carona com meu carro”, “Notou a roupa da Kelly?”.

- Não, seus filhos da puta. O celular é dos seus pais. O carro é do seu pai. Não fale da roupa de ninguém, não é todo mundo que nasce em berço de ouro. – Jake murmurou enquanto desenhava vários círculos no piso de madeira da escada com a ponta da unha.

Mas isso não importava, a opinião de Jake não importava. O que importava era que esse tipo de criança recebia muitos presentes, e as meninas e meninos que iam de chinelos, não. E isso tinha que mudar.

Quero dizer, isso só poderia ser um sinal, não? Jake era um adolescente de 16 anos que tinha plena consciência de como o mundo funcionava, e via as injustiças da sociedade. Junta-se isso ao fato de que, com mais ou menos 6 anos de idade, descobriu que podia enxergar entidades. Quero dizer, isso só pode ser um sinal.

Olhou mais uma vez para a sala escura. A árvore continuava ali, como uma armadilha para homens gordos que se vestem de vermelho. A mesa de jantar possuía dois pratos virados para baixo e um pote de biscoito de gergelim no centro. A lua iluminava uma grande árvore do lado de fora da casa dos Chambers, e a sombra formada por ela se esparramada pelo chão. A penumbra era sinistra, parecia uma bruxa gritando com os braços abertos.

- Hm. – Jake espiou em volta. Olhou no grande relógio de parede que ficava em cima da mesa. Tinha um formato de um rosto de palhaço, e marcava 01:01 da madrugada.

“Por onde será que ele vai entrar?”, se perguntou enquanto olhava para a janela. “Nós não temos chaminé. E aquela janela... Muito pequena. Bom... Se o Coelho da Páscoa era daquele tamanho, o Papai Noel pode ser magro... Vai saber.”

Jake não gostava disso. Ele preferia ter uma estratégia, mas não saber como o Papai Noel ia entrar ali o deixava preocupado. Ele também não sabia como era o temperamento do velhinho(ele era velho mesmo?), e isso poderia ser um problema.

“Vamos supor...” – Jake apontou um dedo para a porta e começou a mexe-lo enquanto pensava – “Ele entra pela porta, já que eu deixei aberta. Ele vai andar por toda a casa sem me ver, já que a parede me esconde. Eu poderia pegar ele sem problemas. Mas... – o dedo foi para a janela – Se ele entrar ali, já ficamos frente a frente. E ai... Bom, veremos.”

*

40 minutos haviam se passado e nada ainda. Jake estava começando a ficar apreensivo. Será que ele ia vir? Ah, mas claro que sim. A casa dele era uma das escolhidas pelo Papai Noel, ele já a visitava a anos. O menino sempre ouvia os barulhos, as pesadas passadas, a leve mexida nos galhos artificias da árvore, mas vê-lo? Oh, isso já era outra história. O velhinho era rápido. Coisa de quinze, vinte segundos, e o silêncio voltava a reinar na grande sala dos Chambers.

Embora Jake nunca tivesse reparado o horário que ele costumava chegar (se é que tinha um horário certo), ele já estava achando ruim tanta demora. Ainda bem que ele havia dormido a tarde toda e...

Bump.

“Uau. Dessa vez o barulho foi alto”.

Erguendo as sobrancelhas e inclinando um pouco o pescoço, Jake olhou em direção a porta e seu coração quase parou: Alguém estava tentando girar a maçaneta. Tentou uma. Duas.

“Não é possível que esse é o plano A dele.”

A maçaneta voltou a descansar, imóvel como uma maçaneta deveria ser. Jake voltou a ficar ansioso, esperando para ver qual seria o próximo movimento do ser que estava do lado de fora da casa. Alguns minutos se passaram, e como um raio, a janela do lado direito da sala se abriu. Na hora, o vento invadiu o cômodo, balançando a as pontas da toalha que cobria a mesa ao lado da árvore. A toalha era vermelha, obviamente. Obrigado por perguntar.

Atônito, Jake observou depois de alguns segundos, um grande saco vermelho ser arremessado janela adentro e se espatifando no tapete da sala. O saco era enorme, cor vermelho sangue, e estava amarrado com um grande laço dourado, no formato de gravata borboleta. Quando atingiu o solo, fez um barulho muito parecido como o de jogar uma grande caixa de isopor no chão.

O coração de Jake estava a mil. Mesmo ele já estando acostumado a enxergar entidades desde criança, desta vez estávamos falando de uma que ele nunca vira. Estamos falando do grande Papai Noel. Da entidade das entidades.

“De um grande filho da puta. Mas oh, como eu quero vê-lo.”

Segundos (que mais pareceram horas na cabeça do menino) se passaram. Quando subitamente, como um fantasma que decide aparecer, não se assustem crianças, o Papai Noel simplesmente atravessou a parede da sala dos Chambers, como se ela não existisse.

*

Nessa hora, nesse exato momento, muitas coisas passaram pela cabeça de Jake. Foram dezenas de perguntas e reações de surpresas, mas todas podem ser resumidas no seguinte pensamento: “MAS QUE PORRA?”

Embora seus pensamentos estivessem fervilhando e batalhando uns contra os outros, a única coisa que o menino conseguiu fazer foi ficar olhando boquiaberto aquele homem que acabara de atravessar a parede de sua sala se abaixar e pegar o saco vermelho que estava no chão.

Jake não pode deixar de reparar em como o Papai Noel realmente se parecia com as figuras e imagens que vemos por ai, diferentemente do grande Coelho da Páscoa. O Papai Noel era realmente velho. E gordo. Se ele pudesse chutar, talvez uns setenta anos distribuídos em 1,85 de altura, com um peso de três dígitos. Ah, com certeza. Sua roupa era vermelho escuro, quase bordô. Usava um grande cinto preto, com vários compartimentos, em um deles uma garrafa de água estava encaixada, no outro dava para ver um papel enrolado como um antigo mapa do tesouro. Mas o último compartimento do cinto realmente surpreendeu Jake: Um maço de cigarro. Sim. Aparentemente, o Papai Noel fumava. O velhinho vestia duas grande galochas pretas que iam quase até metade da tíbia. A maior diferença que Jake pode notar daquela entidade para o “Papai Noel comercial” era a touca. Enquanto o que conhecemos usava uma pequena touca vermelha com um pompom no final, o verdadeiro usava um capuz vermelho, costurado a jaqueta. O capuz cobria o rosto, jogando uma sombra sinistra por cima. Essa visão fez os pelos do braço do menino se arrepiarem.

- Eu estava esperando você. – a voz de Jake não foi tão grossa quanto o menino tentou fazer parecer, mas foi o suficiente para assustar a entidade.

O Papai Noel olhou assustado em direção ao menino e ameaçou pegar alguma coisa de dentro do casaco, quando Jake se levantou e acendeu a luz da sala. O menino parou a cerca de quatro metros de distância do velhinho e o ficou encarando.

- Uau, isso é que entrada. – falou pela primeira vez Noel. Sua voz era rouca, pesada, e um tanto firme. Para Jake, lembrou muito a voz de um dos seus super heróis favoritos, Logan. “Que saudade.”

Enfim.

- Bem... Precisamos conversar.

O Papai Noel pareceu surpreso. Lentamente, retirou o capuz da cabeça e revelou seu rosto. O rosto tinha muitos detalhes, mas Jake só pode focar em um:

- Caramba, você é careca.

- Ora, isso faz alguma diferença? Vocês só me imaginam de touca. Eu poderia ter um rabo de cavalo, um coque e outras mil coisas. Ninguém jamais tira minha touca no seu mundo.

Ele tinha razão.

- Certo... – Jake só conseguia olhar para a grande e brilhante careca daquele homem. Pelo menos ele era bem barbudo, tinha uma enorme e desgrenhada barba.

O Papai Noel olhou em volta e caminhou em direção à mesa de jantar. Puxou uma cadeira, a colocou de frente para o menino, e sentou. Como se estivesse em casa, puxou um cigarro do maço e analisou por uns quatro ou cinco segundos. Tirou um isqueiro (vermelho também, obrigado por perguntar) de um grande bolso do jaqueta, acendeu o cigarro e começou a fumar.

Jake o olhou como se dissesse “Você está louco?”

- Relaxe, garoto. É muito raro eu encontrar pessoas como você hoje em dia, antigamente eu via mais, essas crianças com toque. Os tais iluminados. – deu uma jogada de fumaça para o alto – Estou me ajeitando porque quero conversar, minha profissão é muito entediante, se me entende.

- Eles não podem te ouvir de jeito nenhum? – disse Jake apontando para o andar de cima.

- Quem? Seus pais? Oh não, eu poderia gargalhar até meus pulmões explodirem para fora.

Eu estava pensando em gritos, Papai Noel. Gritar e ninguém ouvir. Perfeito.

- Mas me diga... Sobre o que quer conversar, garotão? – Noel se inclinou na cadeira e cruzou os braços. Quer saber de onde as renas vieram? Elas estão ali no seu jardim, se quiser vê-las. Como eu faço para percorrer o mundo inteiro em uma só noite, talvez?

O velho teve um ataque de tosses que pareceu durar séculos. Quando se acalmou, deu uma cusparada no chão. Voltou a fumar. Está tudo bem agora.

- É... – o velho olhou para a pequena poça esverdeada no chão – Isso seus pais vão ver. É melhor limpar. Sabe, coisas materiais não ficam junto comigo no meu mundo. Por isso que tive que jogar meu saco pela janela, não ia conseguir atravessar a parede com ele.

Uma pergunta a menos.

- Cale-se.

Pela primeira vez desde que entrara na casa, o Papai Noel pareceu estar incomodado.

- Quero saber quais são seus parâmetros para os presentes. Quero saber por que algumas crianças ganham ótimas coisas e outras não. Sendo que muitas vezes quem merece, são as pobres.

Os olhos do velhinho se arregalaram. Ele estava realmente surpreso com a pergunta.

Jake continuou.

- Você. Você deve ter algum tipo de oficina ou laboratório onde faz os presentes. Ou... Sei lá, você tem poderes. Foda-se, não me importa. A questão é: Uma entidade como você têm a capacidade de transformar vidas. Você pode levar comida para os famintos, levar remédios para quem necessita. Existem pessoas lá fora que estão morrendo em camas de hospitais, e abrem seus presentes e encontram um par de meias. E ai, na casa de ricos que gozam de boa saúde, um celular da última geração.

O menino parou. Olhou para o Papai Noel, que não esboçava reação alguma.

- Você – Jake apontou diretamente para o velho – É a única entidade que provavelmente tem o poder de mudar o mundo. Em uma noite, uma única noite, você poderia salvar vidas e mudar histórias. Por que não dá moedas de ouro para uma família que passa fome? Ou um carro? Eles poderiam vender e melhorar significantemente de vida. Pagar o aluguel. Você sabe o que é pagar aluguel, Papai Noel? É não saber onde você vai morar no mês seguinte caso fique sem dinheiro. Por que não ajudar essas pessoas? O que muda no mundo quando você dá um Xbox para um idiota que já ganha duzentos dólares por mês do papai só para gastar com comida e festas?

O Papai Noel permanecia sem reações. Seus olhos estavam fixos no garoto, mas suas sobrancelhas estavam inclinadas, como se estivesse estudando algo raro. Uma nova espécie de gorila foi descoberto nas selvas, os nativos o chamavam de Pé-Grande. Ah, eu falei que ele existia.

Alisou a barba. Continuou encarando Jake por longos segundos. O silencio que pairava no ar era perturbador. Deu uma última tragada no ar e respondeu.

*

- Uau, eu adorei. Você deveria ser politico, garoto. Essas perguntas são justas, muitas pessoas fariam se pudessem me ver. Mas, mesmo assim, estou surpreso. Você deve ter uns... Quinze, dezesseis anos? E já percebe todos essas problemas sociais. Uau.

O Papai Noel começou a bater palmas lentamente. Suas grandes luvas negras de inverno faziam as batidas ecoarem pela sala. Jake percebeu um sinal de ironia ali.

- Mas, garoto, você está esquecendo de uma coisa – agora o dedo do velhinho que apontava de volta para o menino – Embora você possa me ver, você não entende como funcionam as coisas. Você não entende como funciona o seu mundo e, muito (saiu como um muuuuuuuuuuuito) menos o meu. O mundo das entidades.

Noel jogou o cigarro longe e continuou:

- Nós seguimos regras. Vocês não podem sequer desconfiar de nossa existência. Estamos aqui como regentes mas, ao mesmo tempo, como figurantes. Ajudantes de palco. Me responda garoto, já que você parece ser tão inteligente, como é que eu poderia fazer quilos de comida aparecerem em mesas humildes sem chamar a atenção? Como, garoto, eu poderia trazer remédios caríssimos, ou que até mesmo ainda nem existem, para salvar vidas de pobres pessoas, sem que alguém desconfiasse da minha existência? Entenda de vez: Eu ajo secretamente. Um carrinho ali, uma camiseta rosa aqui, um... Um par de meias para uma casa pobre. Não porque eu quero, eu poderia muito bem levar dinheiro para eles, mas como fica o meu lado, garoto?

- Meu nome é Jake, pare de me chamar de garoto.

O velho continuou, como um trem que ignora tudo que está a sua frente:

- As pessoas me veneram, Jake. Me adoram. Contam histórias sobre mim, inventam detalhes que não estão lá (apontou para a careca), elas me amam. Não importa se eu trazer um misero lápis de cor, ou o ultimo smartphone lançado, elas continuam me adorando. As pessoas acreditam que cada um tem o que merece, elas não jogam nas minhas costas. Eu só sou o Papai Noel. Acreditem na magia do Natal, crianças.

Ele olhou sério para Jake.

- Não importa o que eu quero, não posso quebrar as regras. Ninguém pode.

- Que regras? Quem fez as regras? O que acontece se você quebrar.

Noel sorriu.

- Os malignos fizeram as regras. Eles estão aqui desde sempre, desde o inicio.

O menino parou por um segundo.

- Você já viu um maligno, não é Jake? Ah(aaaaaaaaaaaah), já viu sim. Eles controlam tudo, garoto. Fazem as regras serem cumpridas, fazem o seu e o meu mundo funcionar. Não importa se você acha certo ou errado, o mundo... Os mundos... Funcionam assim. Me diga, qual maligno você viu?

- Não quero falar sobre isso.

- Eu imaginei. Ninguém quer. Você quer saber o que acontece se começar a cogitar que o Papai Noel realmente existe? Se, por uma fagulha de curiosidade, alguém tentar chegar ao nosso mundo?

Jake não respondeu.

- Muitas coisas acontecerão, mas a primeira delas com certeza vai ser os malignos virem atrás de mim. E eu, como entidade, sou imortal Jake. Pode imaginar o sofrimento infinito sem eutanásia? Sem piedade?

- O que eles ganham fazendo isso com a humanidade?

- Eu não sei. Eles não falam uma única palavra, são mudos.

- Honestamente, isso não muda muita coisa. O fato é: Você tem poderes. Você e mais todas essas entidades. Você vê as pessoas te adorando, se vestindo com suas roupas, cantando suas músicas, mas, na verdade isso só serve para aumentar seu ego. Eu duvido muito que você não posso salvar uma vida, nem que seja de vez em quando. Um remédio a mais chamaria tanta atenção assim deles? Somos sete bilhões de pessoas, meu chapa, você acha que mil dólares a mais para um família no mês de dezembro, ia chamar tanta atenção assim? Como você consegue entrar em uma casa que tem uma arvore inteira dedicada a você e ignorar uma menina que está passando fome dormindo no quarto ao lado? Eu não acho que isso chamaria tanta atenção assim.

Papai Noel ficou levemente vermelho e se levantou. Parecia irritado.

- Olha aqui garoto, não me importa o que você acha ou não. São as regras. Eu poderia deixar comida para essa menina? Sim, mas não posso e honestamente não quero. Você acha que eu gosto de ser assim? Ter que ficar o ano inteiro produzindo coisas para levar para crianças mimadas e idiotas mundo afora? Eu faço isso porque fui criado para tal.

- Você poderia mudar isso, se quisesse. – Jake ergueu a voz- Ter sido criado para tal função não faz de você um robô. Voce poderia viajar outros dias do ano, salvar uma vida por semana. Diabos! São tantas ações pequenas para você, mas tão grande para os humanos. Com um grande poder como o seu, você deveria ter remorso de não fazer nada para o mundo.

- E eu não faço? Não vê as pessoas cantando felizes? Não vê adultos vestidos como eu distribuindo presentes pelas ruas? O Natal não é sobre Jesus, menino. É sobre o Papai Noel. Tudo o que acontece de bom nessa data é por minha causa. Está ai minha função.

- As pessoas te idolatram...

- Eu chamo isso de gratidão.

Silêncio. Os dois permaneceram ali, se encarando. Gratidão. A última palavra que saíra dos lábios do Papai Noel ainda ecoava no ar e, principalmente, na mente de Jake. Gratidão. Gratidão pelo que? Por serem enganados? Por receber migalhas, quando poderiam estar recebendo coisas muito maiores?

- Vá embora. Seu covarde. – os olhos do menino se encheram de lágrimas, enquanto seus lábios tremidos pronunciaram a ultima palavra. Covarde.

Noel olhou para os olhos do menino e disse:

- Isso, chore. A realidade é dura. E você tem muita sorte de eu não ser igual a algumas outras entidades, que não se importam em agredir os seres humanos. – o velho cuspiu no chão, perto dos pés de Jake – Me chamar de covarde... Por um momento achei que você era inteligente. Mas reparei que você é só mais um desses adolescentes de hoje em dia. Vamos salvar o mundo sem sair do sofá. Vamos chamar os poderosos de covarde.

Papai Noel se inclinou e colocou seu rosto bem próximo ao de Jake. Seu bafo cheirava cigarro.

- Você é que é covarde. Se quer mudar o mundo, comece fazendo algo útil.

O velho se virou, abaixou e pegou o saco. Abriu, e ficou alguns segundos com o braço direito dentro dele procurando algo. Foi tempo suficiente para Jake dar alguns passos para trás e puxar um taco de baseball que havia deixado escondido atrás do corrimão da escada.

Noel tirou da caixa um embrulho em formato triangular e ergueu na altura dos olhos. Sem se virar para olhar para Jake, disse:

- Quer saber? Sem presente para você esse ano.

Foi a última coisa que ele disse antes de sentir uma grande pancada em sua nuca e desmaiar.

*

Estava frio.

- Hora de acordar, não temos a madrugada inteira. – era a voz de Jake.

Um jato de água gelada. Estava mais frio ainda agora.

O Papai Noel abriu os olhos e se deparou com uma cena digna de filmes de terror: A mesa que anteriormente tinha apenas uma toalha vermelha e um pote de biscoitos, agora estava perfeitamente arrumada, como em uma ceia de natal. Jake estava sentado ao seu lado (mas perpendicularmente falando), e na sua frente havia um grade prato de comida. Tinha arroz, salada, alguma coisa marrom misturada em cima de tudo e vários pedaços de carne. Separado de toda a comida, como uma ilha se destoa do oceano, havia uma grande poça de catchup.

Por falar nele, o vidro de Catchup com letras garrafais imprimidas em seu rótulo soletrando H A M M E R estava bem a frente do prato do menino. Garrafas de refrigerante estavam espalhadas pela mesa e várias vasilhas com comida quente também. O cenário todo era iluminado com uma leve luz alaranjada.

- Você gostou? Eu comprei essa lâmpada só para você. Para dar esse tom sinistro. Esquentei o resto da ceia, preparei a mesa, tudo para você Papai Noel. Eu chamo isso de gratidão. – Jake deu uma piscada de canto de olho para o velhinho.

Noel tentou falar, mas percebeu que havia algo em sua boca. Tentou tirar rapidamente dali o que quer fosse, mas notou o obvio: Seus braços e pernas estavam muito bem amarrados junto a cadeira. Jake observava tudo enquanto mastigava uma garfada atrás da outra.

- Não se dê ao trabalho. Você está bem preso. E ah, antes que perca energia com isso você não pode ficar intangível e atravessar a cadeira e as cordas como um fantasma. – Os olhos do velhinho se arregalaram em desespero. Ele notou que estava nu. – Eu conversei bastante com o Coelho sobre entidades o dia que eu o encontrei e ele deixou escapar uma coisa: Vocês não nascem com poderes. Algum artefato, alguma vestimenta ou sei lá o que é dado para vocês, e ai... Plim. O dele era a caixa de ovos de chocolate. Já que eu não sei qual era o seu, te deixei nu. – Jake fez uma cara de “fazer o que, não é?”

- Hmmmmmmm – o Papai Noel tentava falar de todas as maneiras.

Jake se levantou de súbito e, como se estivesse mirando ali por um bom tempo, acertou um tapa na bochecha de Noel.

- Cale a boca. É o seguinte: Eu vou tirar minha meia suja da sua boca por três motivos: O primeiro é porque eu quero conversar com você. O segundo é porque quero que coma. Não preparei essa mesa a toa. O terceiro... Essa é boa hahaha, o terceiro é porque ao menos que tenha alguma criança iluminada por aqui, ninguém vai te ouvir.

O menino faz uma pinça com os dedos indicadores e polegar da mão direita e puxa a meia da boca do velho. Um fio de baba vem junto.

- Você está maluco? Me solte agora moleque.

- Cale a boca, cretino! – outro tapa. Dessa vez muito mais forte. Papai Noel sente algo quebrando do lado de dentro da bochecha esquerda. Um dente talvez. Mastiga o pedaço de cálcio e engole. As nutricionistas recomendam.

- Coma. – Jake pega um garfo, espeta um pedaço de carne no seu prato e oferece a Noel. O velho cerra os lábios. – Eu vou enfiar esse garfo na sua testa se você não comer. Tem um lado ruim de você ser imortal, mas tem o lado bom também.

Jake ri. Noel olha para os olhos da criança e vê algo assustador ali. Vê os olhos de alguém que estava gostando daquilo, de alguém que estava executando algo a muito tempo planejado. Tanto o estudo da linguagem corporal como a poesia dizem que os olhos são a porta de entrada da alma. Bem, se esse é o caso mesmo, ali naqueles globos oculares estava morando um gigantesco cachorro de três cabeças, que guardava seu conteúdo. (E seu dono).

Abriu a boca e engoliu. Sem mastigar.

O menino ofereceu mais, e o Papai Noel foi comendo. Não estava ruim. Talvez ele só fosse louco mesmo e quisesse jantar e conversar. Agora o arroz. Mais carne, com catchup. Mais arroz. Purê. Você não vai oferecer coca-cola?

Jake começa:

- Me escuta, quero fazer um trato. Já percebi que você é um covarde, então vou lhe oferecer uma coisa: Me dê o seu artefato ou roupa que faz você ter os seus poderes e eu sairei pelo mundo afora sendo o Papai Noel que as pessoas merecem. E em troca você sai livre dessa. E aposentado.

Aproveitando que o menino havia parado de colocar comida em sua boca, Noel responde:

- Você realmente está louco. Não é assim que as coisas funcionam, moleque. Eu não poderia simplesmente dar tudo para você, e sair de cena. Eu nasci para essa função, eu sou o que sou.

- Ou você aceita ou vai ficar aqui sofrendo para sempre. Qual a escolha? – Jake faz a pergunta em tom de “Café ou água, senhor? Ah sim, perfeito.”

- Para sempre? Uma hora seus pais vão acordar.

- Ah sim. Mas temos a madrugada inteira, posso muito bem te arrastar para o meu quarto, ou te deixar largado em algum canto mesmo. Você é só uma cadeira agora na visão do mundo. Qual sua escolha?

- Eu não vou escolher porra nenhuma, seu...

Jake volta a enfiar comida na boca do velhinho, que cospe no chão logo em seguida.

- Você não deveria fazer isso, fica parecendo que ela morreu em vão. Deu tanto trabalho para escolher entre as nove.

Entre O QUE?

- MEU DEUS! O QUE DIABOS VOCÊ ESTÁ DIZENDO? – O Papai Noel nunca havia gritando tanto na vida como agora. Era um grito de ira, loucura. Como um grito de alguém que tivesse percebido que estava com a conta bancária zerada e “ah, a casa não está em seu nome.”

- Rodolfo, Corredora, Dançarina, Empinadora, Raposa, Cometa, Cupido, Trovão e... Relâmpago. Certo? – Jake ia contando nos dedos enquanto falava. Tinha um pouco de gordura no ultimo dedo. Ele chupou. – Qual será que eu matei? Elas não tinham nome nas coleirinhas vermelhas. – deu de ombros.

Tirou uma coleira vermelha do bolso da calça do pijama e jogou em cima da mesa.

Noel não estava acreditando.

- Você não está falando sério. Não é real. Mas que PORRA você fez, Jake? Por todos os deuses, divindades e malignos, que diabos você fez? – vociferou.

Jake permanecia alheio.

- Eu acho que não era o Rodolfo. Ele que tem o nariz vermelho, não é?

Minhas renas. Até algumas horas atrás eu estava entregando presentes para as crianças, voando pelo planeta. Relando nas estrelas enquanto eu voava. Intocável no céu. E agora estou nu, amarrado na sala de estar de um menino completamente insano porque o mundo não é justo. Isso não pode estar acontecendo.

- A vida dá voltas, não? – o garoto pareceu perceber que Papai Noel estava divagando em seus pensamentos – Agora você pode por favor tomar a sua decisão?

Noel não sabia mais no que pensar. Deveria dizer qual era o artefato e ver no que dava? Ou se segurar mais um pouco? O que mais o menino havia planejado? Poderia tentar fugir, mas nesse momento era a opção menos plausível, estava muito bem amarrado e o garoto estava atento. Mas um hora ele teria que dormir, e ai... Talvez. A grande dúvida em sua cabeça era o que diabos aconteceria com ele se Jake assumisse seu posto. Iria se aposentar em paz? Ai a opção não seria tão ruim. Ou iria virar assunto dos malignos? Neste caso, preferiria ficar sofrendo na casa dos Chambers.

Os malignos. Era isso.

- Eu não vou dizer o que me dá os poderes, garoto. E você tão pouco vai continuar me torturando. E vou lhe dizer o porquê: Se essa loucura continuar, você vai estar mudando significativamente a existência da realidade. Isso está ok, mas o problema é que estará fazendo isso entre um humano e uma entidade, ou seja, departamento dos malignos.

Jake olhava sem compreender. Noel reparou que estava ganhando campo.

- Em resumo, se algo grave acontecer aqui entre nós dois, eles vão vir te julgar. E ai – esboçou um sorriso – Nem deus vai te salvar. Literalmente.

Alguns segundos de silencio pairaram no ar. O velho estava falando a verdade sobre essas coisas serem “departamento dos malignos”, mas ele estava chutando sobre se eles se importariam com isso ou não. Aparentemente a duvida bateu na mente do menino, já que o mesmo permanecia calado.

Resolveu falar.

- Então é um não? OK.

Jake enfia o garfo no meio da testa do Papai Noel.

Como se ela fosse feita de papel, o utensilio simplesmente a invade e perfura todas as camadas da pele, passa pra falar um oi para os vasos sanguíneos e atinge o sistema nervoso. A dor é lancinante, Noel parece sentir que vários marimbondos haviam decidido picar furiosamente sua cabeça ao mesmo tempo, e agora estavam girando sobre seus ferrões apenas para aumentar o sofrimento. Sente o sangue subir até os três buracos que o garfo havia feito e começar a escorrer pelos olhos e nariz.

Tem muito sangue. E ele é bem quente. Por um momento, parece que tudo vai ficar escuro e ele vai desmaiar, mas na verdade é apenas o peso de suas pálpebras com a correnteza vermelha que está caindo sobre elas. O rio de sangue agora se divide em dois córregos pelas bochechas já que existe uma grande pedra chamada nariz no meio dele. Volta a ser um só perto do queixo, pingando no peito nu do velho, onde já existia antes uma grande poça salgada que vamos chamar de suor. Senhoras e senhores, é assim que um rio nasce, toma forma e desagua no mar. Digam obrigado.

Jake observava toda aquela cena com um prazer estranho. Ele se sentia um pouco mal por estar fazendo aquilo com uma figura histórica, infantil e amada por todas as crianças. Mas, como já dizia o poeta, no fim não somos todos animais? De carne e osso? O Papai Noel não tinha nada de santo, e nem de caridoso. Ele era um ser humano como ele, como seu pai, como seu vizinho, e como o presidente dos Estados Unidos. Diabo, existiam muitas pessoas que não gostavam daquele cara e, se pudessem, o torturariam. Então... Por que não torturar aquele homem nu que estava em sua cadeira? Somos todos humanos. De carne e osso. Toooooodos no mesmo barquinho indo direto para o bueiro. Vamos torcer para flutuar.

Noel estava gritando, mas isso era irrelevante já que ninguém ali poderia ouvir.

- Ainda bem que só eu posso te ouvir. Imagina? Quantos gritos você ainda vai dar apenas hoje? E se fomos somar todo o tempo que você vai ficar comigo?

O velho tentou responder, mas não conseguiu. Estava preocupado demais olhando para o garfo que estava pendurado em sua testa como um trampolim em uma base de mergulho. Com um leve movimento da cabeça, ele balançava um pouquinho.

Jake se inclina e olha bem nos olhos do seu refém. Vê incredulidade neles.

- O que é que tá poder? Me diga.

Papai Noel continua olhando para o garfo tentando entender o que está acontecendo.

- Sabe onde vai ser o próximo garfo? – Jake pega o outro garfo que estava em cima da mesa e encosta as três pontas metálicas no pênis mole do velhinho. A pele se arrepia com a sensação gelada que isso dá.

- Não. Por favor, não. Não tenho fator de cura, não posso recuperar isso. Olha o que você fez, como vou poder... – Noel estava implorando.

- Então ME DIZ. – Jake empurra mais forte ainda o garfo, a pele do pênis se encolhe, mais um pouco iria começar a ceder.

Mas um movimento captado de canto de olho faz o menino parar tudo. Parecia que algo tinha entrado atrás do armário que ficava perto da janela. O grande armário de porcelanas da sua mãe.

Semicerrando os olhos, Jake começa a notar que ali existe uma forma escura, esguia e alta. Algo estranho, algo...

- É um maligno! É um maligno! – urrou o Papai Noel. Nunca esteve tão feliz de ver um. – Eu lhe disse seu merdinha filho da puta, eles não iriam deixar...

Finc. Mais sangue. Dessa vez, no pênis. Jake havia enfiado.

Os gritos de agonia do velho nada mais eram que ecos na mente do menino, já que o mesmo parecia hipnotizado com o vulto que estava parado logo atrás do armário. A silhueta parecia se esconder, mas ao mesmo tempo parecia intencionalmente deixar uma parte do corpo à mostra, como se dissesse “Estou vigiando.”

Devo ir até ele? – foi o primeiro pensamento de Jake. Antes de se decidir, a sombra fez algo que o fez ficar onde estava: Um tipo de extensão do vulto se ergueu a frente do corpo e, no seu ponto terminal, surgiu uma grande mão branca. Ela possuía finas veias azuis por toda sua extensão, e grandes unhas cor de marfim. Unhas de um predador – garras – e, com uma leveza e rapidez assustadoras, a mão havia se aberto em um sinal de “pare.” Permaneceu nessa posição por mais alguns segundos e depois evaporou no ar junto com todo o vulto.

*

Embora assustado com o que tinha visto, Jake em tom sarcástico:

- É isso? Esse é o grande julgamento do maligno?

Olhou para o Papai Noel que chorava com a cabeça baixa enquanto olhava para o garfo que agora estava fincado no seu órgão genital. A espada de Arthur cravada na grande rocha. Jake olhava para os lados de maneira nervosa, como se esperasse que o ser escuro voltasse. Mas a sala estava vazia.

- Bom... Vamos continuar... – Antes que pudesse fazer mais alguma coisa, Jake subitamente sente um grande chute em seus calcanhares.

Sem tempo de reagir, o menino cai de boca no chão e vê as pernas do Papai Noel (que agora já estavam começando a ficar vermelhas de sangue) livres. Como? Sem pensar duas vezes, o velhinho dá um chute com a perna direita em sua cabeça.

Jake roda atordoado pelo chão. Sentiu alguns dentes serem moídos.

O Papai Noel, como se já estivesse planejando aquilo a algum tempo, se coloca de pé e corre de costas contra a parede. Ao se chocar com ela, a cadeira quebra e o velho cai sentado no chão; Um pedaço da madeira ainda persistia em ficar preso junta as cordas das mãos, ele agora tentava se liberar.

O menino sentia muita dor na bochecha, mas ao se lembrar de que não poderia gritar ao menos que quisesse que sua noite de diversões acabasse mais cedo, engoliu seco. Começou a se levantar enquanto esfregava o rosto e tentava entender como o Papai Noel havia conseguido se soltar já que o nó estava muito apertado. Olhou com raiva para o velho que estava quase já liberando os dois braços.

Pois bem. Não vai dizer o que te faz especial então? Sem problemas. Eu mato você agora e depois testo tudo. Um de cada vez.

Jake se joga para cima do Papai Noel com a mesma raiva e intensidade dos seus últimos pensamentos. Se senta na grande e ensanguentada barriga do velho enquanto tenta apanhar uma lasca de madeira no chão. Noel, percebendo isso, estica o único braço livre (o direito) e agarra o colarinho da camiseta do menino e o joga para o lado e para longe de si. Jake rola novamente pelo chão. Noel agora consegue soltar o braço esquerdo e já está se levantando. Enquanto faz isso, com um urro de dor, ele puxa os dois garfos que estão cravados em seu corpo: O primeiro, na testa, sai rápido. O segundo não, e ainda por cima parece que trouxe pedaços do órgão junto. Alguns grânulos brancos começam a surgir do buraco que anteriormente ficava a cabeça de seu pênis, e esses grânulos caem no chão como flocos de neve no Natal.

O velho olha para aquilo com uma sensação de pavor mas, simultaneamente, raiva. Vira sua cabeça para Jake e ve que o menino ainda está atordoado do chute na cabeça, mas já está prestes a se levantar. Papai Noel não perde tempo e cruza a sala com passadas rápidas e acerta um chute bem no estômago do menino. Com um “uff”, o garoto está no chão novamente. A ira volta a tomar conta do psicológico do bom velhinho e ele começa a pisotear o corpo inteiro de Jake, que continua indefeso no chão. Cabeça, pescoço, barriga, barriga, barriga, pescoço, cabeça, erra um, braço, barriga de novo e cabeça para terminar. Em cada uma dessas pisadas, Noel sentiu que seu calcanhar fosse como um martelo. E Jake sentiu todas as marteladas.

Enquanto está ali parado olhando para o menino que há alguns minutos atrás estava brincando de enfiar garfos no seu corpo, uma voz surge na cabeça de Noel, que diz: “Pare! Pare! Está louco? Vai mata-lo. Ele é só um menino.” Acho que todos temos essa voz na cabeça, a voz que diz que estamos exagerando, que devemos parar enquanto a coisa não fica preta. Mas já que ele não é a única voz, temos que ouvir as outras também.

Passando a mão no sangue insistia em continuar jorrando de sua testa, o velho decide que essa voz não deve ser ouvida nesse momento. Ele olha em sua volta e vê um taco de baseball apoiado perto da escada. Ah, então foi assim que ele foi derrubado. Jake continua deitado em posição fetal aos seus pés, com as mãos cobrindo a cabeça e emitindo alguns barulhos abafados de dor.

Como um maníaco que já sabe que tem todo o tempo do mundo, ele caminha pela sala em busca do taco. O agarra e passa a mão, o alisando. A madeira é fria, e ela não está nem ai para o jeito que é utilizada. Resistência é o nosso lema, diz uma frase slogan entalhada do lado oposto de onde Papai Noel segurava o objeto. Um grande rebatedor com um boné vermelho sorria enquanto essas palavras eram colocadas como se saíssem de sua boca no desenho. Resistência. Bater, bater e não quebrar.

Ergueu os olhos do bastão e um segundo antes de voltar sua atenção ao menino, percebeu que, no topo da escada, havia uma criatura. Parada como uma estátua, com longos cabelos negros uma camisola branca. Embora parecesse, definitivamente não era uma pessoa. Papai Noel sabia sentir os cheiros dos malignos à quarteirões de distância. Aquele provavelmente estava tentando assumir uma forma humana de uma mulher, e estava falhando: Embora o corpo estivesse perfeito, a cabeça estava torta, inclinada em um ângulo que daria muitas dores para alguém normal. Existiam também varias rachaduras pela pele da mulher, como se ela fosse feita de vidro; A boca estava aberta, porém não tinha dentes. Mas definitivamente os olhos eram a pior parte: Estavam estáticos, mas olhando para o lado errado. Não olhavam para Noel e para toda aquela cena bizarra que ocorria na sala dos Chambers, e sim para fora da casa. Para a janela e para a noite lá fora.

- O que diabos você quer? – Papai Noel falou segurando o taco com mais força.

O maligno, para não perder o costume, não disse nada. Apenas fez o mesmo gesto que havia feito para Jake: Sustentou a mão no ar em forma de “Pare!” por alguns segundos e depois escureceu a ponto de virar uma sombra viva, e desapareceu.

Noel olhou apreensivo para aquilo. Era nítido. Haviam tentado matar a maior entidade de todas, a mais influente. Isso era assunto para os malignos. Mas ele iria mostrar agora que sabia se virar muito bem e seguir as regras. Jake ia pagar.

Atravessou a sala segurando o taco e parou em frente ao menino que ainda gemia no chão. Era possível que tivesse tido algum tipo de traumatismo craniano, talvez. Mas a questão era que Jake não demonstrava qualquer tipo de reação. Isso vai facilitar as coisas.

Noel ergue o taco ficando com os dois braços completamente esticados sobre a cabeça e desce o objeto com a força máxima que conseguiu colocar. O alvo: A cabeça do menino. Quando a arma atinge o alvo, um “Ploc!” bem alto é ouvido, e o coro cabeludo do garoto deixa transparecer que o crânio dele havia afundado um pouco. Sem pensar em mais nada, o Papai Noel continua com as pancadas:

Uma. Duas.

Quem ele pensa que era? Me amarrar, me furar... MATAR uma rena. Matou algo que tinha milênios de idade só pelo fato do mundo não ser do jeito...

Três.

...Que ele queria. Sabe garoto, às vezes o mundo é ruim. E você tem que aceitar, por que senão pode acabar em um lugar ruim.

Quatro. Cinco.

Como esse que você está terminando.

Seis. Sete pancadas. Sete “plocs”. Sete pedaços de crânio quebrados. Sete áreas afundadas na cabeça.

Quem acho que era? Achou que poderia... MATAR O PAPAI NOEL?

Oito. Algo explode e jorra sangue na parede atrás da mesa de jantar. No canto da sala, a árvore de natal observa tudo como um vigia que não pode fazer nada além de assistir. A grande estrela dourada faz o mesmo. Assim como o pequeno pingente de Papai Noel que se balança levemente perto do topo da árvore.

Agora tinha apenas uma pessoa respirando na sala dos Chambers.

*

Papai Noel terminou de fechar a grande caixa vermelha onde havia colocado o corpo de Jake. O corpo, falando nele, estava numa posição inumana, encaixado e enfiado pelos cantos como um cobertor. Cabeça para baixo, com o pescoço deslocado alguns centímetros para o lado, já que o braço tinha que entrar ali também. As pernas formavam uma espécie zigue-zague quadrado, com os joelhos se dobrando para trás.

Colocou um laço dourado em cima da caixa e amarrou bem firme. Pensou por um instante e decidiu tirar um cartãozinho em branco do bolso: Agora já estava de roupa, luvas e todo o resto. Se sentia bem melhor, se sentia uma entidade.

Papai Noel abriu o cartão e escreveu com letras de quem não está muito acostumado a escrever:

DE: PAPAI NOEL

PARA: OS CHAMBERS

FELIZ NATAL, FAMILIA CHAMBERS! HO HO HO!

Desejava do fundo do coração de que algumas crianças da nova geração dos “iluminados” ficassem sabendo do caso que ocorrera ali nessa madrugada e soubessem o que acontece quando alguém resolve se meter em coisas maiores que si mesmo. Desejava também que os pais de Jake algum dia descobrissem a verdade, e soubessem que o tipo de criança que ele era.

Mas ele não iria contar nada. Oh não. Ele seguia as regras.

Fechou o cartão e, com um carinho assustador, o colocou em cima da grande caixa vermelha que continha o corpo do menino. Com o pé direito, arrastou o presente para baixo da árvore.

Olhou para a janela e via que o dia estava começando a raiar.

Hora de ir.

*

Noel sentiu a grama do jardim de Jake assim que atravessou a parede. Sair daquela sala foi uma sensação maravilhosa. A primeira coisa que notou foi que as renas continuavam onde ele tinha deixado; a segunda foi que todas as nove estavam lá. O menino havia blefado.

- Filho da puta. – disse em voz alta enquanto contava os animais nos dedos para ter certeza. Sim, nove mesmo. – Filho da puta.

A sensação de achar que estava comendo um pedaço de uma das suas renas de estimação havia sido uma das piores coisas que havia passado pela sua cabeça em toda sua milenar vida. Claro que, enquanto ele estava lá dentro planejando fugir, o pensamento havia ido embora; Mas Noel tinha certeza de que seria aquele tipo de coisa que ia voltar para assombra-lo nas noites de insônia.

E tudo tinha sido uma brincadeira. Um blefe. Talvez para enlouquece-lo. Talvez para Jake tentar mostrar que não estava brincando. Bom, isso ele nunca saberia mesmo. O importante era que o ultimo que havia blefado agora estava empacotado em um presente de Natal. Digam obrigado.

Começou a cruzar o gramado para ir buscar o saco de presentes que ele mesmo havia arremessado de dentro para fora da casa a instantes atrás, quando seu corpo ficou paralisado. Era como se ele tivesse ficado preso dentro de uma estátua de gesso, e só conseguia mexer os olhos. Mas a diferença era que não era gesso, e sim, seu próprio corpo.

Antes que pudesse pensar o que diabos estava acontecendo, ouviu um altíssimo e assustador barulho atrás de si. Parecia como se você tivesse quebrado várias garrafas de vidro, as colocado dentro de um enorme saco e saísse arrastando por ai. O barulhou continuou por incontáveis segundos.

E ai veio o cheiro.

Um maligno.

O coração do Papai Noel quase parou. Tinha um maligno se aproximando dele, e a única coisa que ele podia fazer para se proteger era fechar os olhos. Começou a batalhar contra o próprio corpo, tentando mexer braços, pernas, qualquer coisa. Mas nada aconteceu. Ele havia sido enfeitiçado.

O contraste do cenário era bizarro: Na sua frente, jazia um grande saco vermelho cheio de presentes em um lindo gramado verde e um trenó com as lindas e lendárias renas do Papai Noel. Não me pergunte o gosto que elas tem, ninguém nunca matou nenhuma para experimentar.

Porém, nas suas costas, onde não conseguia enxergar, Papai Noel imaginava mil coisas sombrias e sanguinárias se aproximando. Todas em conjunto: Um, dois. E elas tinham barulho de vidro quebrado. Olhando para o gramado, Noel viu que uma grande e alta sombra se projetava em suas costas. Começou a suar frio.

- Precisamos corrigir algumas coisas.

A voz era impossível de definir. Parecia grave, mas sussurrava em tom fino; Era alta, mas não fazia eco. Era a primeira voz que ouvia a voz de um maligno. E “ouvir” não era a palavra certa, já que ela estava em sua cabeça. Telepatia, é isso. Eles conversam pela mente.

- O que vocês querem? – Noel disse em voz alta. Ele, mesmo paralisado, tremia o máximo que conseguia.

- Você conhece as regras. Matou um ser humano. Interferiu diretamente em seu mundo e sua história. Precisamos equilibrar isso agora.

- Não! Vocês não entendem. Não estavam assistindo? Eu... Eu apenas me defendi. – enquanto falava, o velho percebia que a sombra se mexia loucamente atrás dele, como se orquestrasse uma grande sinfonia. Pelos deuses, como era bom estar paralisado para não ter que ver aquilo.

Nós ajudamos você a fugir. Teve uma chance.

- Foram vocês que cortaram...

- Tudo isso aconteceu pois você dizia seguir as regras acima de tudo. Decidimos te soltar. Era para você ter ido embora. Mas, ao matar o menino, você colocou sua vontade em primeiro lugar e quebrou as regras. E era exatamente isso que ele queria que você fizesse: Mudasse o mundo de acordo com sua vontade.

Papai Noel entendeu. Ao matar Jake, provou que o garoto estava certo ao dizer que ele era um hipócrita e não fazia as coisas diferentes não por causa dos malignos ou pelas “regras”, e sim porque simplesmente não queria. Isso levou lágrimas aos seus olhos.

- Esperem! Eu não mereço isso, eu não...

- Não estamos aqui para julgar. Estamos aqui para executar quem não segue o que deve ser seguido. O manto vai ser passado para outro. Você não é o primeiro e não será o ultimo Pa...

- Não! Vocês não podem fazer isso! – o velho gritava com todas as forças, e tentava se mexer, mas nada adiantava. – Eu sou uma entidade, sou imortal, sou...

A visão do bom velhinho começa a escurecer, e ele sente seu corpo ficando gelado. O mundo ao redor gira e ele ouve barulhos estranhos e estridentes vindos de trás dele. Ouve risadas assustadoramente grossas, ouve choro, ouve gritos, têm a impressão de que o próprio inferno está chegando. O fim do mundo. O fim do seu mundo. Mas ele se recusa a desistir.

Não pense que não sentiremos sua falta...

- Eu sou UMA LENDA! Sou querido, idolatrado!

- Isso não é fácil de ser feito...

- Todos gostam de mim! Eu sou o único e incomparável...

.... afinal, todo mundo ama...

Papai Noel.

Bruno Basso
Enviado por Bruno Basso em 16/10/2017
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