As lágrimas do Joãozinho... (EC)

Nunca a pacata cidadezinha de Nossa Senhora do Divino Perdão houvera passado por tantos atropelos e agitação!

Desde que uma devota da padroeira da cidade afirmou que vira a antiga imagem que servia de adoração a grande parcela da pequena população ribeirinha, verter lágrimas douradas enquanto ouvia seus lamentos, o sossego acabou para todos.

A bem da verdade, logo no inicio, o relato da Dona Getulina foi levado como galhofa pelos demais habitantes e devotos da cidade.

Porém, foi só o velho Jeremias afiançar que também ele presenciara tal milagre, ‘a coisa’ tomou tal amplitude que o pároco, Padre Felisberto teve de implementar horário de visitação em virtude do grande número de pessoas que começou buscar a Paróquia para ‘ver com seus próprios olhos’ o milagroso fenômeno!

Costuma-se dizer ‘pela aí’ que noticia ruim chega logo, porém, no caso narrado, mesmo não se tratando de noticia ruim, chegou logo logo às cidadezinha vizinhas e o séquito de visitantes, antes restrito aos moradores da cidadezinha expandiu-se numa velocidade siquer imaginada pelo mais expert dos profissionais de marketing...

A situação, que em tempo recorde havia fugido ao controle do pároco também começou preocupar a cúpula diretiva administrativa do pequeno municipio. Efetivamente o contingente encarregado de manter a ordem no local deixava muito a desejar para controlar a quantidade de romeiros que chegavam provindos das cidadezinhas próximas.

A outrora pacata cidadezinha estava em autêntico pandemônio, com as cercanias da Paróquia se transformado em um verdadeiro mercado ao ar livre, onde se comercializavam desde santinhos com a história das lágrimas da padroeira até travesseiros, cinzeiros, colares, leques, abajures, sombrinhas, lenços ... Tudo com o mesmo motivo: Imagem da padroeira vertendo lágrimas!

Foi aí que o Bispo encarregado da região onde localizava-se a Paróquia resolveu interceder. Contatou o Pároco e solicitou uma mostra das lágrimas vertidas pela Santa, para que providenciasse um exame com o intuito de verificar a veracidade do fato, com a comprovação de que se tratava mesmo de lágrimas e não de um outro tipo de liquido qualquer.

Não a contragosto, haja vista estar ‘ensandecido’ com a notoriedade que havia alcançado sua humilde Paróquia e, por extensão, sua própria pessoa, responsável pelo local no qual se deu o evento, o Padre Felisberto solicitou que um de seus auxiliares, o coroinha Joãozinho providenciasse a coleta para a qual o muniu de um competente utensílio no qual deveria colher o material requerido.

Dentro em pouco, já estava em retorno o Joãozinho trazendo consigo o precioso frasco contendo em seu interior um líquido amarelado, cor de ouro, afiançando ter colhido dos olhos da Santa!

Sem pestanejar, o Padre Felisberto enviou um portador para que entregasse em mãos a preciosa encomenda, o que foi devidamente cumprido pelo mensageiro.

Com o avanço da medicina e consequentemente maior rapidez nos resultados dos exames realizados, já no mesmo dia do envio, chegou a resposta relativa ao resultado do exame, enviada pelo Bispo ao Pároco.

Ansiosamente, com a expectativa de ler uma resposta positiva no resultado requerido, o Padre Felisberto abriu o precioso envelope que continha o seguinte diagnóstico: “Em minucioso exame realizado no material encaminhado por Vv.Excelência, apuramos que trata-se de URINA, com a cor amarelo límpido, com pouca cristalização denotando que, provavelmente foi expelido por uma criança.”. Assinava a afirmação um conceituado médico, responsável há muito pelos serviços realizados por também conceituado Laboratório de Análises Clínicas da capital.

As coisas tomaram sentido imediatamente na cabeça do velho Pároco. Estabeleceu um paralelo entre as ocorrencias havidas no surgimento das lágrimas da Santa e percebeu que sempre eram nos dias em que o coroinha Joãozinho o estava auxiliando nos trabalhos paroquiais. O espevitado do garoto já havia ‘aprontado das suas’ em outras ocasiões e não queria acreditar que houvesse chegado a tanto nesses seus arroubos de brincadeiras inconvenientes!

Levantou-se abruptamente e tanto quanto permitiram suas cansadas pernas, ‘voou’ em direção ao local onde se encontrava o garoto.

Num repente, adentrou a salinha reservada aos coroinhas e quase teve uma síncope cardíaca na cena que presenciou: Em um canto, com a imagem da Santa em uma das mãos, direcionava seu jato de urina para um orifício localizado no topo da cabeça da imagem...

O velho Pároco, estarrecido, apoiou-se na parede junto à porta de entrada e nem teve forças para esboçar reprimenda que pretendia aplicar ao solerte auxiliar!

Da mesma forma que todo o palco montado para exaltar o pretenso milagre ocorrido, houve o desmanche, com as responsabilidades civis não divulgadas em nome da preservação da boa imagem da religião e por haver sido cometido o despalpério pela inconveniência de um incólume incapaz...

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Lágrimas de Ouro

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