Pote, rodilha e coité

No Brumado dos anos cinquenta havia água encanada, sim. O gerente da fábrica, um atlético e benquisto Afonso Arinos, desdobrava-se para manter a operariada satisfeita e amparada. E dos potes e das bilhas, o povo foi chegando ao filtro que, inicialmente exalando um gosto de barro queimado na água, ia-se amaciando ao longo do tempo. E dava até para ostentar para os visitantes.

Em nossa casa estávamos ainda um estágio abaixo, com a talha que, se não me engano era produzida num município de São Paulo, e Steffani era a sua marca, gravada bem visível. E em nossa casa podíamos ainda esnobar o almejado filtro: tínhamos a preciosidade de uma cisterna, bem juntinha de nossa cozinha. Quatorze metros de profundidade, cercada por uma caixa circular de cimento e protegida por uma coberta.

Papai e mamãe haviam tomado a providência de mandar furá-la, por um tal de Sinhô, logo que se mudaram para a casinha que lhes emprestada a Companhia, em 1950, se minha asserção coincide com a verdade dos fatos e atos. E ficamos com o requinte da água de cisterna.

Tia Vicentina que sempre pajeava o mais caçulinha da casa durante as alternâncias de papai e mamãe na "fapa", era a referência para as baby-sitters de hoje: contava casos de sua infância e juventude vividas na Onça e, quando repetia a narração, nunca alterava uma linha sequer.

Batidas as dez da noite ela se aprontava para ir embora, juntar-se à mãe e a uma penca de irmãs solteironas, e de um único varão, todos empregados na mesma fapa.

Seu ritual era destrancar a tampa da cisterna, tirar um balde d´água - operação a que chamava bardágua - e passar o conteúdo para o pote de barro que trouxera. Depois, enrodilhava a rodilha de pano, que metia entre a cabeça e o balde, tomando o cuidado de botar um coité, de meio coco na superfície para o líquido precioso não lhe tombasse pelo caminho de regresso, que era correspondente a uns 3 quarteirões de terra crua, cravejada de pedregulhos.

E, assobiando rua afora, expressava sua satisfação pela paga de seu serviço, certa de que no dia seguinte ia ter mais.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 28/06/2016
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