SOLDADINHO DE CHUMBO

O que vou relatar aqui aconteceu comigo, e é assim: Absolutamente fantástico.

O dia era 14/09/1999, aniversário de 13 anos do meu único filho, Arthur.

Durante um bom tempo eu não estive presente, não por opção, mas sim por condição, pelo menos era assim que eu enxergava. Minha profissão, meu trabalho exigia que eu me deslocasse constantemente, e fazer com que minha família me acompanhasse. Além de muito desgastante, principalmente para ele, era também muito dispendioso. Morávamos em Altamira, no Pará, e meu trabalho se concentrava principalmente nas grandes cidades do sul e sudeste.

Quando ele completou 6 anos, eu e minha esposa decidimos que eles deveriam permanecer em Altamira, seria melhor para o Arthur, além de ficar próximo dos avós, ele iria de fato iniciar sua fase de estudos, e ficar mudando de escola não seria bom, enfim, obviamente estaríamos sempre em contato e eu os visitaria sempre que possível.

Bem, no início era mais fácil, mas com o passar do tempo a frequência foi diminuindo, às vezes porque a distância era muito grande, às vezes pelo tempo, tanto que o último aniversário dele que eu participei foi quando ele fez 9 anos. Mas de qualquer forma estávamos sempre juntos, nos falávamos e nos víamos pela internet. É... também era desta forma que eu enxergava.

Mas neste dia seria diferente.

Cerca de 3 meses antes, minha família se mudou para Colina do Alto, uma pequena e excelente cidade do interior de São Paulo. Graças às economias que fizemos durante todo este tempo, compramos uma casinha lá. É que eu também, depois de ficar “pulando” de cidade em cidade, estava bem perto de ter meu trabalho muito mais concentrado naquela região.

Então eu me programei e saí em viagem para estar com o Arthur neste momento tão especial. Eram cerca de 600 km de distância de onde eu estava, eu seguia tranquilo, tinha tempo de sobra para não decepcionar meu filho mais uma vez. Tudo ia bem, até que, por volta das 15:00 hs, próximo da cidade de Tenório, uma antes de Colina do Alto, fura o pneu traseiro direito. Sem dúvidas um aborrecimento, mas nada que não pudesse ser facilmente resolvido, não fosse o lugar onde o pneu resolveu furar.

O acostamento era quase um brejo, com várias moitas, e eu não conseguia apoio para o macaco. Bom, tirei o casaco, empurrei o carro um pouco para trás e parei em um lugar mais firme. Mesmo assim ainda precisava de uma base. Então tive a ideia de usar o tapete do passageiro como base para o macaco, e deu certo. Assim que terminei uma forte chuva começou. Tive sorte, pensei. Rapidamente então prossegui minha viagem, apenas mais uns 90 km e chegaria ao meu destino. Para chegar a Colina do Alto era preciso atravessar a cidade de Tenório por dentro, e, ao me aproximar da entrada desta cidade o inimaginável aconteceu: O pneu estepe, novinho, que eu nunca tinha utilizado que eu havia acabado de trocar, furou. Novamente o traseiro direito, que coincidência infeliz.

Bem, agora ficou difícil, constatei. Agora sou obrigado a procurar um borracheiro, vou ligar para casa e avisar que talvez eu atrase um pouco.

Cadê meu telefone?

Ah, está no bolso do casaco. Essa não!!!

Quando troquei o pneu lá atrás tirei o casaco e o estendi em uma das moitas, e ao empurrar o carro e abrir a porta do passageiro para tirar o tapete, o casaco ficou fora da minha visão.

Mas estranho... Mesmo tendo saído com pressa devido à chuva, não me lembro de tê-lo visto pelo retrovisor. Tenho certeza de que ao retornar para a rodovia eu olhei o retrovisor, se ele estivesse na moita eu o teria visto. Certamente o vento deve ter levado o casaco da moita para o meio do mato. Ahhh, minha carteira, com meus documentos, cartões, dinheiro, também estavam num dos bolsos do casaco, que vacilo.

Bem, ao mesmo tempo em que eu tinha como consolo o fato de que ninguém encontraria meu casaco naquele mato, e que eu certamente iria resgatá-lo ao retornar para aquele lugar, também havia o enorme problema de não ter outro pneu para trocar.

Parei de lamentar e decidi procurar ajuda. Vou seguir a pé, alguma boa alma vai me socorrer.

Chovia muito, chovia forte, a esta altura já era para eu estar em casa, logo vai escurecer, vou bater na primeira porta que eu encontrar.

Tenório estava deserta, não passava um carro sequer, o que era normal, quem estaria na rua com este tempo horrível?

Mas tudo bem, depois de caminhar por uns 5 ou 6 km cheguei a parte urbana. Porém não havia uma porta de comércio aberta, estranho... ainda não deveria ser 17:00hs e tudo fechado? Entrei em uma “ruazinha” e bati palmas em frente de uma casa. Ninguém atendeu.

Fui à casa vizinha, bati palmas, e novamente ninguém atendeu.

Segui para a para próxima casa, bati palmas de novo, e de novo ninguém atendeu, então gritei:

--- Ei... Ô de casa...

Depois de insistir por algumas vezes um senhor abriu uma janela e tudo que ele fez foi um sinal de silêncio, aquele do dedo indicador de pé frente a boca, e fechou a janela.

Pensei: Mas que velho esquisito, grosso, ignorante...

Gritei de novo e o maldito me atirou um tomate, quase que me acerta.

A cidade de Tenório era, e ainda é, uma cidade bem pequena, tem cerca de 8 mil habitantes só.

Mas eu não podia desistir, decidi caminhar até o centro, lá vou conseguir ajuda.

Por todo lugar que eu ia não havia uma alma na rua, nas casas não havia um sinal de luz, nenhum comércio aberto, a chuva só apertava mais, o que poderia ser pior?

Até que, como por milagre, avistei uma moça andando em minha direção, na mesma calçada. Acelerei o passo, me aproximei e quando esbocei pedir ajuda ela me fez o mesmo sinal de silêncio que aquele velho tinha feito, e sem me dar qualquer atenção seguiu o seu caminho.

Meu Deus, o que está acontecendo?

Cheguei à praça no centro, vi um telefone público, graças a Deus. Corri até o telefone, mas... sem sinal.

Agora eu estou desnorteado, desorientado. Permaneci na proteção do telefone, chovia demais. Entendi naquele momento que a única coisa que me restava a fazer era sair gritando por socorro. Foi então que um garotinho surgiu do paço da igreja. Sem agasalho, ensopado e com um soldadinho de chumbo na mão. Ele se aproximou e disse:

--- Num fala sinhô, num fala.

--- Mas eu preciso de ajuda, garoto.

--- Agora num vai tê.

--- Só preciso de um borracheiro, ou um telefone.

--- Fica quéto homi, hoje num pódi falá.

--- Como assim garoto? Porque não posso falar?

--- Num é só o sinhô, ninguém pódi falá, é a tradição.

--- Que tradição?

--- Ué, a tradição.

--- Como assim?

--- Óia, vem pra cá... Vâmo si iscondê dibaixo da banca, já já o povo vai saí na rua e num pódi vê eu cum voismicê.

--- Mas o que você está falando moleque?

O garotinho então me puxou pelo braço e ficamos debaixo do toldo de uma banca.

--- Óia ali, ta vêno? É o Nhô Justino, o homi mais bom da cidade.

Imediatamente saí de debaixo do toldo e gritei:

--- Senhor, senhor, por favor...

O garotinho então novamente me puxou e disse:

--- Num fala hómi di Deus, num fala. Eles vão pegá ocê, batê nocê. Si falá as graça acaba e mardição vorta.

--- Que maldição?

--- A mardição ué. Óia lá, os ôtro já vem chegano.

--- O que está acontecendo aqui garoto?

--- Óia, vâmo ali, vâmo ficá dibaixo do coreto, é mió.

Resolvi seguir o conselho do menino.

--- Garoto, por favor, me diz o que está acontecendo.

--- Hoje é u dia da tradição.

--- Que tradição?

--- Eu num sei ispricá, é a tradição da nhá Vita, ninguém pódi falá, ninguém pódi saí di casa, só pódi saí o Nhô Justinho i us povo qui vai pidi as graça i pagá as promessa. Si falá, i si num pagá a chuva num pára nunca, moía tudo i istraga tudo, as prantação, as casa, i até gente morre. Si us povo iscuitá ocê falano eles péga ocê i bati nocê inté ocê drumi.

--- Não acredito.

--- Num querdita? Intão fala prucê vê, i eu largo ocê aqui gorinha memo.

--- Então se não pode falar porque você está falando garoto?

--- I eu sô criança, ieu to iscondido, mais si u sinhô quisé ieu vô imbora.

--- Não não, fica aqui, como é seu nome?

--- Tenório, mais todo mundo mi chama di Tóio.

--- Tenório? O mesmo nome da cidade? É coincidência ou falta de imaginação mesmo? Quantos Tenórios tem aqui?

--- Coin u quê?

--- Coincidência.

--- Qui é isso?

--- Coincidência?

--- É, qui é isso?

--- Hum, como vou te explicar? Deixa-me ver... Bom, quando falamos em coincidência é dizer que uma coisa igual à outra coisa aconteceu por acaso, entendeu?

--- Não. Num intendi nadinha di nada. Meu Pai num mi insinô isso não. Isprica di novo.

--- Coincidência é coincidência garoto.

--- Ocê ta mangano di eu?

--- Mangano? O que é mangano?

--- Ué, mangano é mangano, a mema coisa dessa coincedença sua aí.

--- Tá bom Tóio, ta bom. Fala muito errado mas é bem esperto.

--- Eu num falo errado.

--- Fala sim, precisa estudar.

--- Eu num gosto di istudá. Pra que istudá? Ocê num tá intendeno u qui eu falo?

--- Estou.

--- Intão, num percisa di istudá.

--- Você não vai pra escola?

--- Não. Us ôtro minino num gosta di mim, i eu num gosto deles tamém.

--- Porque?

--- Pruque sim.

--- Tóio, quantos anos você tem?

--- Onzi.

--- Que legal. E o que você gosta de fazer, do que gosta de brincar?

--- Brinco cus meu sordadinho.

--- Ah é? Posso ver esse?

--- Pódi.

--- Nossa, que bonito.

--- É o Nhô Justino que faiz e mi dá. Todos dia dus meu aniversário ele mi dá um sordadinho, ele é muito bão, o mió hómi da cidade.

--- É? Percebi que você gosta muito dele. E quantos soldadinhos você tem?

--- Ah, eu tenho um punhado bão, i eu gosto do Nhô Justino sim. Amanhã ocê porcura ele qui ele vai ti ajudá. Ele mora naquela rua ali, du lado da venda. Mais ocê num pódi falá qui fui eu qui falei, sinão ele fica bravo comigo i num mi dá mais sordadinho.

--- Amanhã???? Mas eu preciso de ajuda hoje, Tóio.

--- Hoje num vai dá não.

--- Tóio, você precisa me entender. Olha, eu tenho um filhinho quase igual a você. Hoje é aniversário dele, ele faz 13 anos. Eu prometi que estaria com ele hoje, e ele é especial.

--- Ispeciar?

--- É Tóio, ele é surdo e mudo, e isso me dá mais agonia ainda, por estar aqui, nesta situação, que ninguém me ouve, que ninguém fala comigo.

--- Ué, mais eu num tô ti iscuitando e falando cocê?

--- Digo dos outros Tóio, das pessoas que poderiam me ajudar, entende?

--- Intendi, mais só amanhã é qui us povo vai falá cocê.

--- Eu queria tanto estar com ele agora Tóio.

--- Pra brincá cum ele?

--- É Tóio, pra brincar.

--- Ocê brinca muito cum seu fio?

--- Não muito Tóio.

--- Pruque?

--- Porque é difícil Tóio.

--- Difícir procê ou prele?

--- Acho que para os dois, Tóio.

--- Intendi.

--- Você faz muitas perguntas Tóio.

--- I ocê fala dimais, i fala arto tamém. O Trunado Marreteiro vai pegá ocê i prende sua mão. I ele tem dois metro di artura, i us braço dele é qui nem tóra. Ele vai pô sua mão no toco e massetá seus dedo qui vai ficá sua mão iguar us pé du marreco.

--- Deixa de conversa Tóio. Que marreteiro é esse?

--- Num querdita? Tenta falá cus ôtro intão prucê vê.

--- Tá bom Tóio, já percebi que hoje não vou conseguir ajuda mesmo. Mas me conta mais de você, porque os meninos da escola não gostam de você?

--- Pruque são uns bobão.

--- Sei. Então se você não vai pra escola o que fica fazendo o dia todo?

--- Fico brincano cus meu sordadinho na toca do Jequitibá.

--- Toca do Jequitibá?

--- É, lá na mata tem um Jequitibá véio, mais véio por dimais, i tem uma toca, aí fico lá brincano, i quando us ôtro minino vem eu subo pur drento e mi iscondo i iscondo meus sordadinho tudo. I ninguém mi acha, nunca acha, só eu sei u iscoderijo... eita... contei procê sem querê... óia aqui seu moço, si ocê contá meu segredo eu vô ficá muito brabo cocê, i vô mandá o Trunado Marretero massetá ocê.

--- Calma Tóio, é nosso segredo, não vou contar pra ninguém, fica tranquilo.

--- Nem pru seu fio?

--- Nem pra ele.

--- Craro né, ele é surdo.

--- Tóio, Tóio, você não pode falar assim, é falta de respeito.

--- Mais ocê respeita ele?

--- Claro.

--- Ocê brinca cum ele?

--- Já disse Tóio, não muito.

--- Intão cum quem ele brinca?

--- Com os brinquedinhos dele.

--- Sózinhu?

--- Acho que sim, Tóio.

--- I ele tem sordadinho di chumbo?

--- Não, acho que não Tóio.

--- Intendi. Mais ocê gosta dele?

--- Claro Tóio. Eu amo muito meu filho. Ele é o sentido da minha vida.

--- Intão jura pru ele qui ocê num vai contá pra ninguém qui nóis cunversô, i qui num vai contá meu isconderijo.

--- Não Tóio, não vou jurar.

--- Pruque não?

--- Porque eu não acredito nessas coisas.

--- Ué, si ocê não querdita intão o qui custa ocê jurá?

--- Custa que eu não vou fazer uma coisa só porque você quer que eu faça.

--- Ah é, intão si ocê num jurá...

--- Já sei, vai chamar o Trunado Marreteiro...

--- Não, eu vô imbora i vô larga ocê aqui bem sozinho memo.

--- Não Tóio, você ganhou, eu juro.

--- Jura memo?

--- Juro Tóio.

--- Intão tá bão. Mais agora eu vô imbora memo. Já é quase oito hora, i num posso ficá inté tarde. Eu sái iscondido i vô tê qui vorta iscondido.

--- Tá bom Tóio.

--- Amanhã ocê percura o Nhô Justino.

--- Vou falar com ele, e pode ficar sossegado, não vou contar que falei com você. Tóio, eu queria te dar um agrado, mas perdi minha carteira.

--- Ué, mais ocê pódi mi agradá sim, mais eu num perciso di dinhêro não.

--- É? E como eu posse te agradecer então?

--- Óia, ocê pódi contá pru seu fio qui falô cum eu, i ispricá pruque num ficô cum ele hoje. I quando ocê vortá aqui ocê mi dá um sordadinho.

--- Ah Tóio, eu faria isso com muito prazer, mas como vou te procurar? Não acha que as pessoas daqui vão estranhar se eu procurar por você?

--- Êta hómi, é só mi percurá na toca do Jequitibá.

--- Tá certo menino. Mas se você já tem um punhado de soldadinho, porque quer mais?

--- Pruquê logo logo meu Pai vai vim pra brincá di sordadinho cumigo. Ele inté vai trazê u primeiro qui eu ganhei, i nóis vai percisá di muito mais sordadinho, muito sordadinho.

--- Tá bom Tóio. Tá prometido.

--- Si pudé traiz seu fio tamém.

--- Tá bom, prometo também.

--- Intão nóis fica anssim. Tchau.

--- Tchau Tóio, fica com Deus.

--- Ocê tamém.

Quando me dei por mim percebi que minha conversa com o garoto me fez relaxar e ter a certeza de que poderia consertar muitas coisas. No dia seguinte segui a orientação do garoto. Ah, onde passei a noite? Sentado no banco do coreto, refletindo sobre todo o tempo que tenho e como eu o preencho.

Bem, então fui até a rua que o Tóio me disse e bati palmas na frente da casa que ficava ao lado da venda. Um senhor bem velhinho veio à porta.

--- Nhô Justino?

--- Ieu. Qui ocê qué?

Quando ia começar a explicar o meu problema, o homem me indagou com um jeito bem ríspido:

--- Ispera aí, como ocê sabi meu nome? Quem é ocê?

--- Calma meu senhor, eu só preciso de ajuda.

--- Mais quem mandô ocê aqui?

--- “Seu” Justino, foi ontem, mas não posso falar quem foi. Pelo que eu sei ontem foi o dia da tradição e se eu disser quem falou comigo o senhor vai brigar com a pessoa.

--- Ai minha nossa sinhora, a mardição vai vortá.

--- Que maldição senhor? Que tradição é essa?

--- Hómi, o sinhô num é daqui. Vá simbora. Essas coisa é daqui do nosso povo, nem ocê i nem ninguém di fóra tem di sabê essas coisa.

Percebi que se eu não começasse a explicar o velho homem não iria me dar a mínima chance, então desembestei a falar.

--- “Seu” Justino, por favor, me entenda, eu preciso muito de ajuda, ontem foi o aniversário de 13 anos do meu filho, e mais uma vez não pude estar com ele, e ainda, fiquei muito angustiado porque as pessoas não queriam nem falar e nem me ouvir, e eu também não podia falar, e meu filho é surdo e mudo, e...

Neste momento o homem me interrompeu.

--- Como é qui é? Seu fio é surdo i mudo?

--- Isso “Seu” Justino, e eu preciso de ajuda.

O comportamento do homem mudou na hora, ele me encarou, eu diria no mínimo assustado, e disse:

--- Entra aqui hómi.

--- Ah “Seu” Justino, muito obrigado.

--- Ocê disse qui tem um fio surdo i mudo qui feiz aniversário onti?

--- Isso “Seu” Justino.

--- Nossa Sinhora, qui tá aconteceno? O qui é isso?

--- Isso o que “Seu” Justino?

--- Ieu tamém tenhu um fio qui feiz aniversário onti hómi.

--- Nossa, que ótimo.

--- I ele é surdo i mudo tamém hómi.

--- Mas aí não é possível, é muita coincidência.

--- Coincidência???? Ára hómi, essa palavra num izésti. Nada nunca acontece pru acauso não hómi. Valha Jesuis.

--- “Seu” Justino, ou isso é um sonho ou é um pesadelo, me desculpe, não quero ofender, mas estou achando muito esquisito tudo isto. Quantos anos seu filho fez?

--- Ára hómi, si ele tivesse vivo ia fazê 75 anos.

--- Como é que é? O que o senhor ta me dizendo?

--- 75 anos ele feiz onti si tivesse vivo.

--- Sinto muito “Seu” Justino, mas como ele morreu? Quantos anos o senhor tem?

--- Hómi, eu tenhu 97 anos, i u Tenório ia fazê 75 onti.

--- Tenório? Seu filho se chamava Tenório? Ele tinha o mesmo nome da cidade?

--- Não hómi, é a cidade qui tem u nome dele, i u qui aconteceu é qui nu dia qui ele ia fazê 11 anos, nu dia 14 de setembro caiu uma tempestadi como nunca si viu, i ele tava brincano na toca du Jequitibá com um sordadinho di chumbo qui eu fiz pra ele e dei di presente. Ninguém brincava cum ele pru causa qui ele era daquele jeito, intão ele num ia pra iscola. Foi mais di uma semana di chuva muito forti. Cabô cum as prantação, matô us gado tudo i tamém levô meu pequeno Tóio.

Neste momento o que ficou óbvio para vocês tinha ficado óbvio para mim também. Eu queria muito dizer para aquele homem que fiquei conversando com o filho dele na noite passada, mas a promessa que eu tinha feito me impediu. Então me permiti apenas a fazer mais perguntas.

--- Então é por isto que tem a tradição? É por causa do Tóio?

--- Hómi, a Nha Vita feiz uma oração muito forti i acendeu um monti di vela no coreto da praça i pediu pra chuva pára pra nóis pode percurá o Tóio. Intão a tempestade parou i a cidade todinha foi percurá o Tóio, tiramo as lama tudo da toca do Jequitibá i as única coisa qui nóis incontrô foi a brusa dele i u sordadinho di chumbo qui eu tinha feito. Mais o Tóio nóis num achô não, inté hoje nóis num achô. Dispois , todos dia du aniversário dele caia uma tempestade. Foi uns cinco ano siguido. Foi intão qui a Nha Vita falô pru povo qui viu uma parição i ela pidiu uma graça pra neta dela. Ela jurô qui a parição era u Tóio, i ela prometeu qui si tivesse a graça ela num ia saí da casa dela i nem falá nada cum ninguém todos dia do aniversário dele. I intão a graça veio i ela cumpriu a promessa. Daí us povo tamém pedia as graça e fazia as mema promessa da Nha Vita, i as graça acontecia. Daí us povo começaro a num falá mais no dia do aniversário do Tóio e saí di casa só pra í na toca do Jequitiba pra fazê oração i pedi graça.

--- Meu Deus, nunca acharam ele? Procuraram bem lá nessa tal toca do Jequitibá?

--- Nóis percurô sim, mais naqueles tempo o Jequitibá já era muito véio, tava quase todo seco e oco. Dispois daquele dia o Jequitibá começô a ficá forti. Si o sinhô fô lá vai vê. Foi ôtro milagre. Hoje é a arvre mais fromosa da cidade. Hómi, quando a Nha Vita teve a graça, nóis feiz um artá nu pé do Jequitiba, bem na entrada da toca, i eu coloquei aquele sordadinho qui eu tinha feito no artá pro Tóio.

--- Que coisa mais linda “Seu” Justino.

--- É, só qui nu dia seguinte o sordadinho apareceu nu meu alpendre. I eu vortava ponhá u sordadinho no artá i no dia seguinte lá tava u sordadinho di novo nu meu alpendre. Eu ponhava i u sordadinho vortava. Intão eu fiz ôtro sordadinho e ponhei no artá. Nu dia seguinte u sordadinho num tava nu artá, mais tamém num tava nu alpendre, só tinha disaparecido. Qui nem u Tóio.

--- Que coisa incrível “Seu” Justino.

--- Incríver? Incríver memo é u qui eu contá agora.

--- Tem mais?

- Nossa Sinhora hómi. Sabi aquele primeiro sordadinho, o qui vortava pru meu alpendre?

--- Sim, sei.

--- Intão, numa noite dum dos dia qui foi aniversário do Tóio, eu ponhei esse sordadinho na caminha dele e drumi nu chão du lado da cama. Daí eu sonhei cum Tóio brincano di sordadinho cumigo. Intão, deisdi esse dia, qui já faiz um tempo bão, sempre no dia do aniversário dele, dispois qui eu vorto do artá da toca do Jequitibá, qui é umas 8 hora da noite, eu ponho o primeiro sordadinho na cama dele e sonho cum ele brincano cumigo. Nus sonho tudo eu insinei o Tóio a falá e nóis fica brincano i conversano. Hómi, é isso qui mi faiz ficá vivo inté hoje, é pruquê u Tóio num mi deixo arrependê di num dá atenção prele quando ele tava vivo, di brincá cum ele, i di conversá cum ele... O sinhô tá cum jeito qui num tá querditando...

--- Não “Seu” Justino, pode ter certeza que estou acreditando em tudo. Posso lhe pedir um favor?

--- Tô falano dimais já né? O sinhô percisa di ajuda.

--- Não “Seu” Justino, toda a ajuda que eu precisava eu já tive aqui. O que eu quero lhe pedir é permissão para eu trazer também, no dia do aniversário do Tóio, um soldadinho de chumbo e colocar no altar da toca do Jequitibá.

--- Ára sinhô, pódi sim, craro qui pódi.

--- Muito obrigado “Seu Justino”, agora vou dar um jeito de consertar meu pneu e procurar o casaco que eu perdi ontem.

--- Casaco? Qui casaco hómi?

--- Meu casado “Seu” Justino, um cinza que eu perdi ontem no meio da chuva, com meu telefone, minha carteira...

--- Ah minha Nossa Sinhora...

--- O que foi agora “Seu” Justino?

--- Ispera um poquinho sinhô.

O velho homem saiu por um instante e quando voltou eu novamente não podia acreditar.

--- Hómi, prum acauso é esse casaco aqui?

--- Meu Deus, é esse mesmo “Seu” Justino, onde o encontrou?

--- Ára hómi, nu pé du Jequitibá, bem na entrada da toca.

Eu peguei meu casaco, agradeci e me despedi do homem.

Então foi isto que aconteceu. No ano seguinte, no dia 14 de setembro, retornei a cidade de Tenório para colocar o soldadinho que havia prometido no altar da toca do Jequitibá. E tem mais, vocês podem até ficar surpresos com o que eu vou contar, mas confesso que eu não fiquei.

Dois dias depois daquela minha conversa com o “Seu” Justino, ele faleceu.

É claro que o Tóio já sabia que isto iria acontecer, ele sabia que iria ganhar a companhia do Pai brevemente e queria garantir que continuaria a ganhar soldadinhos de chumbo em seus futuros aniversários. E, por motivos óbvios, escolheu a mim para isto, e fez com que tudo aquilo acontecesse comigo.

Também é claro que depois de tudo, passei a conversar e brincar com meu filho todos os dias. Consegui fazer com que o Arthur compreendesse tudo o que aconteceu, e todos os anos vamos lá colocar soldadinhos na toca do Jequitibá.

A lição que eu aprendi?

Acho que já ficou tudo muito claro para vocês.

Minha conclusão?

O céu não é o céu simplesmente como imaginamos. Quem sabe ele pode ser o interior de um tronco de um velho Jequitibá, onde os verdadeiros anjos se divertem brincando com soldadinhos de chumbo.

Escrito em 04/06/2017.