O Caso da Senhora Solitária *

A cidade de Northland havia amanhecido com um ar de morte. Sentidos despreparados julgariam ser somente uma adiantada manhã fria de início de outono, mas nem mesmo o aroma do café quente e fresco tira meu olfato para mistérios que estão por vir. O telefone tocou e recebi o chamado para investigar um assassinato recente na Rua Meadle. Bebi um último gole de café amargo e logo uma viatura da polícia chegou para levar-me ao local do crime.

Divagava em meus pensamentos quando cheguei ao número oito da Rua Meadle, uma velha casa amarela de alvenaria, aos fundos do quintal, onde repousava uma frondosa laranjeira que cobria a visão da janela da sala. Thomas, meu eventual parceiro de investigação, esperava-me em frente ao portão enferrujado, e aguardava uma decisão minha para entrarmos. Passei por Thomas quase sem notar sua presença, apenas petrificando meu olhar aguçado na janela da frente, imaginando ansiosamente como tudo teria acontecido, até que passei pelo portão e atravessei o quintal, seguido por Thomas, que deve ter dito algo como Bom, dia, Detetive, mas eu sempre descarto irrelevâncias. Os policiais acionados já haviam prendido os cachorros no canil atrás da casa e pudemos entrar pela porta da frente, que estava aberta, sem sinal de arrombamento.

Na cozinha, havia louça para ser lavada, torneira aberta, uma panela de arroz no fogão desligado, e o corpo de uma mulher de meia-idade estirado no chão, próximo ao corredor. Ela fora baleada com um único tiro no peito e sangrara até a morte.

Somente um dos vizinhos dizia ter ouvido o tiro, seguido de uma algazarra de latidos. Era antes das seis da manhã, e quando veio para a rua verificar a confusão, já não havia ninguém pelas redondezas. Outra moradora da rua informara aos primeiros policiais que a senhora vivia sozinha, tendo-se mudado para o bairro fazia quase um ano.

Passeei pelos cômodos da casa rapidamente. Saí pela porta dos fundos, conheci o canil onde os cachorros se encontravam — agitados —, proseei com os policiais que faziam anotações ali, e retornei pela lateral, de volta ao quintal da frente.

Alguns curiosos já estavam de plantão do outro lado da rua. Os mais discretos espiavam pelas janelas de suas casas. Meu parceiro coçou a cabeça, desesperado pela falta de pistas.

— Ninguém aqui conhecia a mulher, Detetive. E nunca a viram receber visitas. É melhor esperar o relatório da polícia e da perícia.

Então, para espanto dos policiais — e de Thomas —, corri para a laranjeira do quintal, pulei na árvore e escorei-me em um galho. Fitei o portão, fitei de volta a porta da casa. Voltei meus olhos exaltados para o chão de terra batida e folhas secas tremulando sob a brisa matinal. Meditei por uns dois ou três segundos e concluí:

— Não temos tempo para aguardar relatórios, rapaz! — disse, enquanto descia da árvore. — O caso, para mim, já está solucionado. Só temos de agir muito rápido, e em algumas poucas horas pegaremos o assassino. Depressa! Para o centro da cidade! Vamos, dirija, Thomas!

***

Rodando já pelo centro da velha Northland, avistei o hotel que tivera em mente.

— Aguarde aqui. Volto em menos de cinco minutos.

Meu parceiro aguardou, pacientemente, atento às últimas notícias do rádio. Voltei apressado com um novo itinerário: a estação rodoviária. Resolvi acalmar Thomas, neste ínterim.

— O caso havia deixado pistas suficientes para ser solucionado. Foi você que não aguçou sua imaginação. A única incerteza que eu tenho agora é se prenderemos o culpado a tempo. Então, se isso lhe consola, saiba que até mesmo eu tenho minhas incertezas.

Thomas apenas deu um sorriso amarelo, constrangido por não acompanhar meu raciocínio, mas ele estava evoluindo e aprendia muito comigo. Ele também sabia que não adiantava me perguntar nenhum detalhe sobre minhas descobertas, tampouco sobre minhas hipóteses, até que todas as minhas deduções se comprovassem em verdade concreta.

Chegando à rodoviária, pedi que ele interrogasse algum guarda ou fiscal sobre minhas suspeitas, enquanto eu iria aos guichês mais prováveis para perguntar sobre passagens adquiridas recentemente por alguém que aparentasse estar assustado e com muita pressa. Quando nos reencontramos, minutos depois, ele estava pronto para me ler uma lista de suspeitos.

— Seja lá o que estiver escrito aí — disse —, dirija logo o carro para a modesta Vinefield, homem.

Passei um rádio para o delegado, pedindo que entrasse em contato urgente com a polícia rodoviária, pois sua colaboração apressaria a detenção do criminoso. Com as informações sobre a identificação do ônibus, conseguimos com que a polícia rodoviária o interceptasse e conduzisse à delegacia mais próxima a quem já havia dado as devidas descrições. Foi pelo rádio que soube em qual delegacia haviam detido o criminoso. E qual não foi a surpresa de meu parceiro ao confirmar que quem estava recluso, esperando nosso interrogatório, não era somente um único suspeito, mas sim um casal!

— O rosto dessa mulher me é familiar... — comentou Thomas.

— Naturalmente — concordei —, mas nem precisava vê-la para saber que quem está diante de nós é a filha da vítima!

***

O delegado local cumprimentou-me e informou que o homem confessara o crime, sendo autuado em flagrante. Com o relatório do depoimento do acusado em sua mesa, resolvi satisfazer-lhe a curiosidade de como eu solucionara o caso de forma tão rápida e precisa, pois do contrário, se o assassino cruzasse a fronteira do estado, ou até mesmo do país, sabem-se lá quantos anos levariam para prendermos o criminoso. E resolvi contar-lhe como cheguei às minhas conclusões. Meu parceiro não se surpreendeu muito mais do que o delegado, pois descrevi exatamente o que continha no depoimento dos acusados os quais eu nunca vira antes.

— Quando chegamos ao local do crime, uma leve (porém treinada) observação já indicava que a senhora morava mesmo sozinha, expressa pelo cuidado com o quintal e pela quantidade de lixo na calçada, por exemplo. Os relatos dos moradores confirmaram minha observação. Ela criava quatro cães, e dentre eles um só era o cão de guarda, disposto a avançar em estranhos, o que já evidenciava que a casa não fora invadida, mas que o assassino entrara com o consentimento da vítima, sem que ela precisasse prender os cães, pois estes ainda estavam soltos quando os primeiros policiais chegaram. O assassino, porém, não levara nada da casa, ou, se fosse um reles assaltante, teria disparado na vítima por ela ter reagido, e, assustado com a situação, teria fugido sem nada levar. De qualquer forma, durante a fuga, o criminoso jamais conseguiria chegar ao portão em segurança, pois os cachorros, agora, mais agitados, o alcançariam. Como o assassino evitou o ataque imediato dos vorazes cães enquanto fugia? Ele teve a única ideia viável: subir na laranjeira. Constatei isso posteriormente ao perceber folhas e cascas caídas recentemente no chão, e sinais de escalada pelo tronco da árvore. De qualquer modo, neste momento delicado, o assassino tinha de sumir rápido da cena. Subi eu mesmo na árvore e fiquei a pensar em como ele sairia dessa sem despertar a atenção de alguém na vizinhança. Então concluí que alguém fez os cachorros se calarem e saírem de perto dele... alguém a quem os cães obedeceriam o chamado. Alguém muito próximo à vítima, certamente um parente de convívio. Um filho. Logo após o assassino fugir, essa segunda pessoa também saiu da casa, apressada, sem ter de perder tempo prendendo os cachorros – afinal, estava na cena do crime! Como não havia malas ou pertences estranhos à casa, ou os sujeitos moravam na cidade e vieram visitar a mulher ou eram de alguma cidade próxima. Devido ao fato dos vizinhos não notarem visitas, supus que vieram de outra cidade. Mas por que matá-la? Deduzi que a morte não era premeditada e provavelmente ocorrera desencadeada por alguma discussão forte, com evidente carga emocional, o que me levou a crer que o parente da senhora tinha um amigo fora da lei, ou melhor, que o parente era uma filha, com um namorado nem um pouco aprovado pela mãe. Cheguei mais próximo a esta hipótese quando notei um urso de pelúcia encardido num dos quartos da casa. Apostei que era uma lembrança de um ente querido e distante, daí confirmei que era alguém de fora da cidade. Criei a seguinte história em minha mente: era mais um caso de filha rebelde que sai de casa brigada com a mãe a fim de morar com um namorado que segue caminhos tortuosos de sobrevivência. A situação ficara difícil e vieram pedir dinheiro ou qualquer outra ajuda para a senhora; houve discussão e, no calor da raiva, o homem disparou contra a senhora. Então, precisaram sumir e com urgência. Isso tudo pensei enquanto permanecia aqueles poucos segundos escorado na laranjeira. Tive, em seguida, de testar minhas hipóteses. Procurar o hotel mais barato da cidade ou o mais próximo do terminal poderia me levar ao assassino, já que, sendo de fora, rebelde à senhora, e sem grana, deveria ter se hospedado em algum hotel barato próximo ao terminal. Entrando no hotel, presumindo que seria o primeiro em que procuraria se fosse alguém de fora naquelas circunstâncias, perguntei ao dono sobre a hospedagem de um casal, que teria saído às pressas, ambos assustados. O dono do hotel confirmou minha descrição e forneceu até o nome do homem. Pois bem, não só confirmada a estadia do casal, como também tendo o nome do assassino e suas características, e que fugira, bastava ir à rodoviária descobrir para onde haviam ido. Lá, um atendente de um dos guichês me confirmou que o descrito casal fora para Vinefield, embora eu pensasse em algo fora do estado. Mas então concluí que Vinefield devesse ser a cidade onde moravam, e para a qual voltariam apenas para arrumar as malas e fugir para mais longe. Não poderia permitir isso, e tratei logo de arquitetar a interceptação do ônibus. E, bem, aqui estamos! Exatamente onde deveríamos estar — concluí triunfante.

— De fato — afirmou o delegado —, o casal passava por dificuldades financeiras, e o homem até sofria ameaças por causa de dívidas. A mãe da menina, mesmo a contragosto, era a última saída para a crise. Com a negação da mãe em ajudá-los, todo o desespero do rapaz veio à tona, e, num ímpeto de ódio, atirou descontrolado, embora seja difícil de acreditar que um homem que anda armado não tenha a intenção de matar. Então, sem mais perspectivas, a saída parecia ser fugir do país e tentar algo em outro lugar, bem longe dos velhos e novos problemas... Foi isso mesmo, Detetive! Se não fosse sua sagaz habilidade e suas rápidas decisões, dificilmente pegaríamos o criminoso tão cedo.

– Absolutamente, senhores. O que seria de mim se não perseguisse os sinais à minha volta? Não estaríamos todos aqui, mas seguramente estaríamos tragando o café amargo de sempre, desatentos aos demais aromas de mistério que nos cercam todos os dias. Apurem seus sentidos, senhores. É tudo uma questão de apuração de sentidos.

E foi assim que resolvi o caso da senhora solitária.

(publicado em: "Xeque-Mate", Andross Editora, 2014)

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 13/04/2006
Reeditado em 29/04/2017
Código do texto: T138697
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