O CASO JUAN (Part. 3 - O Manuscrito)

O manuscrito continha dois títulos. Segue, na íntegra, o documento:

Palavras de um home vivo.

Meu nome é Juan e eu tenho um plano. Além disso, acho que tenho uns 43 anos de idade. Não sei. Sofro de uma doença rara que faz com que eu não saiba ao certo a minha idade, mesmo que minha memória no geral seja boa. Acho que é alguma doença relativa ao tempo. Dizem que o tempo é relativo, então isso deve fazer algum sentido. Minha doença é tão rara que não foi nem sequer diagnosticada.

Eu já tive esperança, direi até que já tive sonhos. Também já tive um filho. Mas hoje só me resta um plano. É a minha última história.

Olho em direção ao horizonte, onde sol que desce no rio sem realmente ver no horizonte o sol descendo no rio. E não digo isso por que o sol desce apenas aparentemente no rio, mas sim por que não vemos o que está na nossa frente quando estamos em um profundo estado de meditação. Apenas sei que o sol aparenta estar descendo no rio, pois sempre foi assim. E, talvez, sempre será.

Me pergunto, como será matar um homem? Repugnante, correto? Mas, e se este homem já estiver morto por dentro. Bem, seria bem diferente de matar uma criança, pois a criança nunca está morta por dentro até que já esteja por fora. Somente um animal mata uma criança, mas matar um homem, dependendo do caso, pode ser apenas um erro, um destes erros que deveríamos ter o direito de cometer. De qualquer forma, se paga um pelo outro. Mais adiante me farei entender.

Aqui neste rio ensinei meu filho a pegar seus primeiros peixes. Aqui, na beira do rio, escrevi poemas e troquei carícias. Aqui, neste rio, os bombeiros pescaram o corpo do meu garoto já em estado de decomposição.

E lá se vai o sol. Vou para casa, amanhã será um longo dia, embora venha a ser o mais curto de todos.

Palavras de um homem morto.

Hoje acordei cedo. Tomei café e, pela primeira vez em muitos anos, lavei a louça. Voltei ao quarto e enquanto minha esposa dormia me despedi dela com um olhar. Havia muita desculpa, um pouco de amor, um pouco de raiva e outro pouco de perdão neste gesto invisível aos olhos cerrados dela. Deixei este manuscrito no bolso do meu paletó, por mais que isso seja impossível. Caminhei lentamente até a delegacia da cidade. No caminho algumas crianças cruzaram por mim indo para a escola. De certa forma, sinto pena delas.

Adentrei no prédio da policia e disse que tinha acabado de cometer um assassinato. Os policiais saltaram da cadeira. Um, inclusive, se engasgou com algo que estava comendo. Vieram em minha direção. Levantei as mãos, demonstrando passividade – como se já não bastasse ter me entregado – mesmo assim, eles aproveitaram que a delegacia estava vazia e me derrubaram no chão antes de me algemar.

Levaram-me para a sala de interrogatórios e só então me reconheceram. Me deixaram a sós por uns minutos e voltaram. Como eu não falei nada, me espancaram.

Não posso descrever o prazer com que, inicialmente, me bateram. Nesta cidade pequena, pouca coisa acontece. Estes homens, perdidos no tédio e na poeira de uma cidade do interior adoram quando há alguém para torturar, quando há um caso em que possam resolver na base da pancada, sem precisar usar nada além da força e arrogância. Porém, esse prazer foi se tornando irritação quando perceberam que não iriam arrancar nada de mim a base de torturas físicas. Falo físicas, pois algumas pessoas não tem a capacidade de exercer qualquer tipo de tortura psicológica, se fosse assim, talvez o caso fosse diferente.

- Você vem aqui, diz que cometeu um crime? E se nega a falar? Acha que a gente tem tempo pra isso? – falou irritado um dos policias e em seguida emendou num tom irônico de quem acredita estar acima da lei

-Vai me dizer que precisa de um advogado por acaso?

Todos riram, ao que respondi energicamente ou com as poucas energias que me sobravam, interrompendo de súbito as risadas

- Sim e não.

- Como?

- Sim, vocês tem tempo pra isso, não só acho como tenho certeza.

E antes de eu falar que “não, eu não precisava de um advogado” fui golpeado.

Depois de muito me baterem eu falei:

- Tá bom! Tá bom! Eu falo.

- Desembucha!

- Vocês me conhecem. Com certeza lembram de mim, certo?

Se olharam sem responder.

- Eu to escrevendo um livro, um romance. Livro...bem, talvez vocês nunca tenham ouvido falar nisso. Tem umas letras dentro...

Outro soco.

- Aiii...então, eu matei um personagem importante neste livro. Mas os assassinos não vão ficar impunes, pois eles estão vindo.

- Piada! Vai fazer piada no inferno seu escritorzinho de merda! – falou um irritado.

- Eles quem? – perguntou outro preocupado.

- Vocês não estão vendo que ele está louco? Acho que batemos demais na cabeça – disse o terceiro.

Não confiante, o segundo saiu da sala para ver se havia alguém na rua, mesmo com os outros tentando impedi-lo. A confusão estava feita e eu estava gostando. Em seguida ele voltou:

- A barra está limpa lá fora.

- É claro, idiota. – falei.

- Me chamou do quê?

- Nossa! Vocês são muito burros mesmo.

- E você é um homem morto.

- Eu sei disso. E é por isso que estou aqui. Vocês me mataram muito antes de eu entrar nessa delegacia, e vocês sabem do que estamos conversando.

Assim, me espancaram até a morte. Fiquei ali, desfalecido chão, escutando eles discutirem sobre o que fazer com o corpo do pai do garoto que eles também haviam matado.

- Vamos jogar esse infeliz no rio, que nem fizemos com o pivete. Quando o encontrarem vão achar que se meteu em alguma briga. Ela andava meio louco mesmo.

- Acho que devemos dizer que ele invadiu a delegacia armado.

- Eaí a gente matou ele a pancadas? Como sucedeu isso? Se tiramos a arma dele, não precisaríamos ter batido. Se ainda houvéssemos dado um tiro, mas dessa forma...

- Podemos atirar agora.

- Agora não adianta! Burro!

- Hei.

- Chega pessoal! Vamos jogar essa merda no rio de uma vez e limpar a porra dessa sala.

E fizeram assim. Sem criatividade nenhuma deram cabo ao meu corpo igualmente fizeram com meu garoto. E sendo assim, também deram cabo ao meu plano. Agora aguardo aqui no fundo d’água, sem saber se fico ou se boio.

O que eles não sabem é que desde a entrada na delegacia, e por todos os lugares que percorri, fui deixando algumas pistas, como por exemplo, mechas de cabelo. É óbvio que eles limparam de uma maneira impecável a sala de interrogatórios, mas não se deram o trabalho de fazer o resto. Aliás, aquela delegacia vive em um estado propício para eles. Porcos.

Da vida eu digo adeus. A morte, agora, me parece bem melhor.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 07/04/2014
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