242-A ARMA DO CRIME

— Não gosto de falar sobre esse assunto. Se defendi o Marcolino, foi por obrigação. — Elegante, a advogada destacava-se no grupo pelo seu charme. De estatura média, morena clara, cabelos longos, negros, escorrendo pelos ombros, olhar penetrante e um sorriso que iria bem na melhor propaganda de dentifrícios, ela não quer lembrar-se do último caso que defendeu no tribunal. — Fui nomeada defensora pública, pois o réu já estava na cadeia, cumprindo pena pelo estupro de uma garota de doze anos.

— Mas seu sucesso é inegável. — O colega e sócio de escritório insiste. — Você esteve insuperável no julgamento.

A festinha de aniversário de um colega corria solta, com bons vinhos, uísque de muitos anos e deliciosos canapés. Após mais alguns drinques a resistência da profissional foi vencida.

— Fui nomeada para defender o réu por sorteio. A minha especialidade é inventários, falências. Direito civil. Mas, aí lá estava eu entrevistando o criminoso, numa sala especial da penitenciária. Eu e o criminoso. Marcolino havia sido condenado, há menos de seis meses, pelo estupro, seguido de assassinato, da garota Jamila.

— Sou inocente neste caso. — Marcolino foi logo dizendo à advogada, assim que a entrevista começou. — Sou um bode expiatório.

— Mas você confessou o crime.

— Confissão! Todos aqui dentro sabem como a gente acaba confessando qualquer coisa. As torturas são piores do que a morte. Não agüentei tanta dor, acabei falando o que “eles” queriam que eu falasse.

— Quem são “eles”?

— O delegado, os investigadores. Aquele advogado do diabo. Tudo arranjado.

— Você falou que é um bode expiatório?

A doutora Leonora Maciel não sabia dos detalhes da condenação de Marcolino. Estava ali para apurar os fatos ligados ao assassinato de seu companheiro de cela, Ramiro Diogo, conhecido como “Patola”.

— É, doutora. Sei bem quem estuprou e matou a menina. Mas na primeira vez em que falei o nome do deputado,o delegado me disse:

— Cala a boca, safado. Se você falar mais uma vez nesse nome, cê tá morto. Morto, entendeu?

— Mas agora você confessou que matou o “Patola”.

— Esse eu matei mesmo. Confesso e não nego.

Olhando para o criminoso sentado à sua frente, abatido, cabeça baixa, não podia imaginar como matara o companheiro de cela. As fotos estavam no dossiê: o apelido fazia jus ao tipo do morto: um homem de quase dois metros, forte, e (constava dos autos) muito cruel. Era o mais temido da prisão. Mandava e desmandava na ala em que agia impunemente.

— Mas como você conseguiu?

— Aconteceu assim. Fui transferido da Delegacia pra cá na sexta-feira e aqui me colocaram numa cela, sozinho. Cela para dois presos. Mas fiquei sozinho por uma semana. Faz parte do sistema, fiquei sabendo depois. Nessa semana, fui conhecendo os outros companheiros e o Patola, que era o chefe da ala. Todo mundo obedecia ele. Pagavam “passes” a fim de se livrarem de perseguições, de “garantias”, sabe como é. Eu já sabia que, na prisão, o condenado por estupro tá ferrado. Vai ser comido por todos os outros presos. Naquela semana, fui “preparado” para a primeira noite, que ia ser com o Patola. Ele tinha o privilégio da primeira noite.

— Aqui nos autos consta que você estrangulou o Patola. De mãos nuas. Vendo você, assim, não acredito. Você usou alguma arma. Qual foi?

— Foi só no braço, sim senhora.

— Fique de pé.

Marcolino levantou-se. Leonora viu diante de si um homem comum. Estatura mediana, talvez nem chegasse a um metro e setenta. Atarracado. Rosto magro. Braços compridos e mãos grandes.

— No que você trabalhava?

— Era “chapa” de caminhão. Vivia de bicos, descarregando e carregando cargas em caminhões. Não tinha emprego fixo. Desde menino, trabalhei assim.

— Tire a camisa.

Relutante, o preso obedeceu. Leonora viu então que Marcolino poderia, sim, ter enfrentado o temível Patola de mãos nuas. O tórax salientava-se em músculos fortes, os ombros eram uma massa dura e potente, acostumados a sustentar grandes pesos. Nos braços longos e musculosos destacavam-se os bíceps, dois montes salientes e duros.

Impressionante! — Pensou Leonora, contendo o ímpeto de apalpar a musculatura do jovem criminoso.

— Pode vestir a camisa. Me diga, como foi a luta, a briga entre vocês dois?

— Foi na noite da quinta-feira. Uma semana depois que eu tinha chegado. Naquele dia, fiquei sabendo que ia ter companheiro de cela. Vai ser hoje de noite, pensei. E foi. Estava sentado no meu catre quando a porta da cela foi aberta e o Patola entrou. Rindo, não sei de quê. Confiante.

— Intão, Lino, cê vai ficar quietinho, num fais iscarnéu, qui é mió pra nóis dois.

— Nem deixei ele terminar a conversa, de cabeça baixa arremeti na direção dele. Ele segurou minha cabeça, que ia bater na sua barriga, mas não teve como segurar minhas mãos. Acertei um soco nos seus culhões, com toda a força. Ele berrou. Soltou minha cabeça e levou as mãos no meio das pernas.

— Filho da puta, desgraçado.

— Não dei tempo pra nada. Quando vi, tava por cima dele, dei uma gravata e apertei com força. Ouvi um estalo e logo o corpo de Patola bambeou. Só afrouxei a gravata quando vi que ele não fazia mais nenhum movimento. Larguei ele no chão. Morto.

A sessão do júri não foi das melhores. A advogada não contava com a simpatia dos jurados, que viam no réu um bandido como tantos outros. Tinha de usar de algum artifício, a fim de impressioná-los. Nos últimos momentos, já tendo sido apresentadas as réplicas e tréplicas, surgiu com uma questão inusitada.

— Meritíssimo, antes de fazer as considerações finais, desejo apresentar a arma do crime.

O advogado de acusação pulou da cadeira:

— Protesto, Excelência! Não há mais tempo para apresentação de provas.

Um pequeno tumulto esteve em curso. O juiz custou a restabelecer a ordem.

— Embora tardiamente, a corte permite a apresentação da arma do crime. Apesar de não constar dos autos o uso de nenhuma arma.

— Peço ao réu que se coloque na frente dos jurados e do Juiz. — Leonora dirigiu-se a Marcolino, que, servilmente, obedeceu.

— Excelentíssimo Juiz, Senhores Jurados. Eis o homem. Eis o homem que sempre trabalhou com honestidade e esforço, com vigor e denodo. É um modesto “chapa”, um carregador de mercadorias em caminhões. Desde menino, na luta pelo pão de cada dia. Seu corpo foi moldado para o seu trabalho. É um homem forte, tanto fisicamente quanto moralmente. Ao se ver ameaçado na sua integridade, no que tinha de mais importante, defendeu-se. E usou, sim, uma arma letal, que, peço, faça parte dos autos. Eis a arma do crime!

Assim dizendo, a defensora aproximou-se do réu e, num gesto teatral, arrancou-lhe a camisa, que se desfez em tiras, exibindo o magnífico tórax, o torso volumoso e os braços potentes.

— Seu corpo, moldado na lida diária, é a arma do crime. E foi usado para defender-se do que lhe era mais importante do que a própria vida: a sua dignidade de homem.

Impressionados, os jurados retiraram-se para a decisão. Que não tardou muito. Quando voltaram, a anunciaram por unanimidade. Pela morte de Patola, ocasionada com o uso do próprio corpo na defesa de sua honra, o réu Marcolino foi absolvido.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 12 DE SETEMBRO DE 2003

CONTO Nº 242 da série MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/06/2014
Reeditado em 19/06/2014
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