275-UM DELEGADO COERENTE-Delegado Davanti

Após ler e reler diversas vezes o extenso ofício, o homem magro e alto, testa alta e olhos profundos num rosto sereno, assina o documento, imediatamente abaixo do último parágrafo, que assim termina:

...”Incapaz de levar a bom termo as funções de Delegado de Polícia desta cidade, venho, respeitosamente, pedir demissão do cargo.”

Dobra o documento, coloca-o no envelope e põe no bolso interno do paletó. Ajeita a gravata, põe o chapéu e prepara-se para deixar o recinto da delegacia, que fica no mesmo edifício da Cadeia Pública de São Roque da Serra. Ouve o ranger das dobradiças das portas das celas. É a hora do rango dos presos. Sente um tremor por saber que entre os condenados está um inocente, vítima de manipulações políticas e conchavos com advogados e magistrados. Fiz o que pude, mas, como dizem, a justiça é cega. Pobre Estanislau, vai apodrecer na cadeia, já está velho e não conseguirá, certamente, uma condicional.

Rumo ao correio, onde registrará o ofício que acabara de assinar, caminhando a pé pelas ruas estreitas, demora-se no percurso, sem pressa. Parece desejar retardar sua chegada, quem sabe encontrar o correio fechado (já está perto das 17 horas), deixando a expedição para amanhã. Besteira. Tenho de me apressar, o ofício deve seguir hoje. Já tomei minha decisão.

O ex-pracinha Victório D’Avanti voltou da guerra como Cabo de Infantaria. Era pintor de paredes por profissão e, para seu bel-prazer, pintava quadros aos domingos. Enquanto os amigos e a maioria dos homens da cidade gastavam as horas do dia santificado em inútil pasmaceira, ele passava o dia com os pincéis, as tintas, quadros e vidros de solventes. Ao voltar da guerra, dedicou-se quase exclusivamente à arte e aos quadros. Antes quentes girassóis, alegres lavadeiras de roupa ou endiabradas crianças em tardes de circo, passaram a retratar angustiosas cenas da guerra, destruição, sofrimento e dor. A sensibilidade artística do pintor exprimia-se com fidelidade nas telas cujos tons predominantes eram o cinza, o preto, o vermelho. Cores dramáticas de um mundo que ele viu, no qual viveu e do qual trouxe tristes recordações.

Está finalizando um quadro da tomada de Monte Castelo pelos soldados brasileiros. Lembra-se do comentário do comandante das tropas de pracinhas, após a encarniçada luta, batalha na qual morreram brasileiros às centenas. As perdas foram tremendas, dada a ferocidade dos alemães, encastelados no topo do morro. O comandante usou as mesmas palavras de Pirro, um outro guerreiro, há séculos, em batalha travada na mesmaregião:

— Mais uma vitória como esta batalha e perdemos a guerra.

As memórias surgem em desordem. Lembra a ponte sobre o córrego de leito pedregoso, cujas águas corriam vermelhas. Ali, momentos antes, uma mina mandou aos ares o jipe e seus ocupantes. O cabo e seus comandados chegaram em seguida, para recolher os corpos — uma cena horrível de se ver ou de ser lembrada.

Victorio D’Avanti se destacou entre seus camaradas de farda desde os primeiros dias de treinamento. Foram dias de azáfama de treinamento intensivo nas artes marciais. Urgia o envio de tropas brasileiras para a Itália, onde uma cabeça de ponte já havia sido estabelecida pelas forças aliadas. Alto, magro, noventa quilos de pura musculatura, ágil e cheio de energia, logo se destacou entre os alistados. Nos primeiros dias de combate foi mencionado por sua bravura em ordem-do-dia. Poucos meses após foi promovido a cabo.

Depois da vitória, a volta triunfante. Foi recepcionado com dois outros “bravos heróis” da cidade. Entre as homenagens que o prefeito deseja fazer, uma esteve além da expectativa.

— Um moço assim tão bravo, corajoso, verdadeiro líder, merece ocupar um cargo público da maior relevância. Vamos indicá-lo para Delegado de Polícia. — Assim, o prefeito se via livre dos conchavos políticos para aquela nomeação, ao mesmo tempo em que premiava o herói. — Mais que um cargo, é uma homenagem que a cidade lhe presta.

O Cabo D’ Avanti demora a aceitar a nomeação, quando esta lhe foi feita. Só a aceitou por instância da esposa. Empossado, assume o cargo com o mesmo denodo e responsabilidade de seus tempos de combatente. Percebe a possibilidade de impor o respeito e a ordem em todo o município.

Começa atacando o jogo do bicho. Vício generalizado na cidade, afetando principalmente os mais pobres. Nas diligências, encontra o elemento-chave, o chefe do jogo: Tião Moleza, lerdo para falar (daí o apelido) mas espertíssimo nos trambiques do jogo. Que era, por sua vez, testa de ferro do Doutor Ribaldo Mourão, eminente no fórum local e com interesses na manutenção do jogo. Chamado pelo prefeito, responsável por sua nomeação, acatou o seu conselho:

— O senhor ainda está novo no cargo, não conhece os meandros da lei. Melhor deixar esse processo em banho-maria.

Tentou impor ordem na zona de meretrício local, onde todas as semanas ocorriam desordens, esfaqueamentos, tiros e até mortes. Nas investigações, chegou a Zilá Mariposa, que, por sua vez, presta contas a Elpídio Machado, figura de prestígio na cidade, presidente da Câmara de Vereadores. Aliado político do prefeito, que repete os conselhos anteriores.

O caso da ossada encontrada no sítio de Felipe Lopes foi pior ainda. Feitos os interrogatórios, levantadas todas as pistas, tudo indicava ter sido um crime entre jogadores, cometido há muito anos, quando Manoel Galhardo desaparecera da região. O homem era jogador profissional, ganhara muito dinheiro do coronel Leovigildo e sumira repentinamente. Agora, doze anos após, o encontro da ossada em local próximo à fazenda do coronel, mais um anel que identificou a vítima, acrescido do exame de balística, confirmavam a suspeita sobre o coronel.

Pela terceira vez, o delegado D´Avanti teve aconselhamentos do prefeito e ameaças anônimas. Do prefeito, ouviu a mesma lengalenga.

— A morte aconteceu há muito tempo, Victorio. Ninguém mais se lembra, nem mesmo se foi crime...

— Tenho as provas, senhor prefeito. — Afirmou, categórico, o delegado.

— Sim, as provas. Mas está tudo tão diluído no tempo, não é mesmo? E, conforme o senhor conclui, o culpado seria o coronel Leovigildo. O homem tá com mais de oitenta anos, caduco, tá com um pé na cova. Que adianta resolver um caso assim?

— A justiça deve...

— Ora, a justiça. Caro Victorio — o prefeito assumia ares paternais com o jovem delegado — você vai descobrir que a justiça não só é cega, como é surda e paralítica. Não serve a quem de direito. Deixa esse caso pra lá. Vai mexer com muita gente de idade, gente de conceito na cidade.

Este pedido do prefeito se fez acompanhar de ameaças anônimas contra ele, delegado, como contra sua família. Por si, não consideraria as ameaças, mas sua esposa e o filhinho de ano e meio eram seu tesouro.

Saiu da entrevista com o prefeito completamente arrasado. Então não era um delegado de polícia que queriam o prefeito e seus amigos. Queriam um pau-mandado, um empregado como qualquer contínuo. Ao chegar de volta da Prefeitura, sem mesmo tirar o paletó, sentou-se à escrivaninha, ante a velha Remington e, cantando milho com dois ou três dedos, escreveu o ofício que terminava com o pedido de exoneração do cargo.

O delegado D’Avanti adentrou-se no edifício do correio. Eram quatro e quarenta e cinco. Atendido pelo agente postal João Lisboa, fez questão de, ele próprio, preencher o formulário para o registro da carta.

ANTONIO ROQUE GOBBO —

BELO HORIZONTE, 23.MARÇO.2004

CONTO # 275, DA SÉRIE MILISTÓRIAS —

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 04/07/2014
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