SOMBRA DO MAL

Eu me chamo Ariel, e conheci o mal. Na carreira policial que abracei, consegui escapar várias vezes do abraço da morte. Os livros, os professores e, principalmente, a vida me ensinaram que a liberdade é imprescindível ao desenvolvimento integral da personalidade do ser humano para a conquista de sua individualidade, de seu direito natural de “estar no mundo à sua maneira”, mas essa liberdade deve ser vivida dentro dos limites impostos pela sociedade politicamente organizada. Esse ser integral não pode existir sem a inclusão da sombra psicológica no ambiente de sua consciência. Dissociado de sua essência, o ser humano não evolui, não atinge a perfeição, que é a felicidade. Há quem sustente a tese de que essa natureza sombria é um legado de conflitos intrapsíquicos que remonta aos estágios primitivos da jornada evolutiva da Humanidade.

Um amigo de longa data, que é um estudioso da mente humana, me disse que o indivíduo oculta em seu recôndito tudo o que é rejeitado pelos padrões morais de sua época, e até por si próprio. Segundo ele, tudo aquilo que é definido, ou rotulado, como contrário à cultura social contemporânea pode originar um “outro eu”, que vive escondido nas cavernas escuras de seu âmago insondável, e pode produzir, se não for moldado pelos bons exemplos, um gênio do mal. Aparentemente, o criminoso é uma pessoa como outra qualquer. O mal que carrega no fundo da alma não é facilmente perceptível. O fato de não pertencer ao âmbito da consciência e, por esse motivo, não ser perceptível pelas pessoas de bem significa que a sombra do mal escolhe as situações mais apropriadas para se manifestar. Essa manifestação ocorre por meio da sabotagem das realizações positivas do próprio indivíduo e da sociedade em geral. Nesse sentido, o criminoso é um autossabotador e um sabotador social, ou seja, um sofredor que também faz sofrer.

O ser humano só tem acesso à sua natureza sombria, ao seu mar inconsciente de águas revoltas, quando decide mergulhar fundo em si mesmo a fim de conquistar, nesse mergulho introspectivo, crítico e reflexivo seu autoconhecimento. Com certeza, é um processo doloroso, pois traz à tona os espinhos da verdade e leva as flores da ilusão, por isso deve ser orientado pela psicoterapia, mas a atitude de autocrítica depende da índole do indivíduo (não adianta pregar caridade a um mercenário, por exemplo), cabendo ao psicoterapeuta apenas a sinalização do caminho a ser percorrido para que chegue a esse “juízo final” pessoal. No processo de socialização, a índole (boa ou má) certamente exerce influência sobre a escolha do caminho que a pessoa seguirá na vida. Certa ocasião, um tio, que era policial, me confidenciou que, ao longo de sua carreira, nenhum criminoso lhe confessara coisas do tipo: “Eu sou culpado”, ou “Eu sou cruel”, ou ainda “Eu sou covarde”. E indagou a minha opinião com um olhar inquiridor. Olhei para as paredes como quem olha para o vazio. Naquela época, eu não soube lhe responder. Não conhecia ainda a sombra do mal. Dez anos depois ele morrera, vitimado por um traficante de entorpecentes, e eu me tornara policial. Ao longo de minha carreira, já estive várias vezes na mira da morte, e em muitas delas pude ouvir o zunido provocado por disparos de armas de fogo apontadas na minha direção. O chá amargo e frio que bebi possivelmente ninguém gostaria de beber, mas sobrevivi para continuar lutando por um mundo melhor. Como disse, eu me chamo Ariel, e conheci o mal.

Carlos Henrique Pereira Maia
Enviado por Carlos Henrique Pereira Maia em 26/08/2014
Reeditado em 03/09/2014
Código do texto: T4938174
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