Dramaurbano-BFR- Leve- Ricardo, por sua imprudência e azar encontrou um calvário moral quando viu o que não lhe convinha, e o caso virou policial.
 
 
 
A  Testemunha                                                                 
 
 
 
Ricardo estava sentado na praça, falando ao celular com sua advogada.
 
- O senhor pode ficar satisfeito seu Ricardo, seu cunhado Antônio saiu ontem da casa de detenção. Não há mais que se preocupar. O processo deve ser arquivado no ano que vem...
 
- Muito obrigado, Dra. Claudia, fico imensamente grato pelo seu profissionalismo. Não lhe devo mais nada, pois não?
 
-Tudo certo, Sr. Ricardo. Aguardo sua visita. Obrigada
 
- Obrigado. Passar bem.
 
E desligando telefone, encheu os pulmões, para suspirar longamente. Chegava ao fim um historia atrapalhada que o mantivera quase sem dormir nos últimos seis meses. Um calvário.
 
Ricardo Correa é contador de um escritório de contabilidade na cidade do Guarujá. Em seus cinquenta e poucos anos de vida jamais tinha contratado os serviços de um advogado. Mas desta vez, pensando no bem estar da família e principalmente no seu conflito de consciência, arrumou dinheiro e coragem para solicitar o auxilio da Dra. Claudia, advogada penal, que em pouco mais de trinta dias resolveu a embrulhada.
 
O cunhado que a advogada se referiu, na verdade não era cunhado, sequer parente. Antônio Silveira de Araújo era um homem de sessenta anos, de pouquíssimas posses, morador da favela do grotão na baixada do Guarujá. Desquitado, morando sozinho, durante o dia se não vivia bêbado vivia vagando pela cidade. A noite tinha um emprego de vigia no Condomínio horizontal, Belenzinho no município vizinho de Bertioga.  Como nunca gostara muito de trabalhar, o melhor que conseguira como emprego era ser vigia noturno de condomínio de praia. Esses condomínios, ainda que de luxo, com casas lindas e vistosas estão a maior parte do ano sem ocupantes e quase vazias sem grandes atrativos para marginais e ladroes. O motivo de lhe pagarem um salario mínimo para vigiar as propriedades era mais para evitar intrusos que se hospedam clandestinamente nessas casas de veraneio, ou vândalos ocasionais. No condomínio onde trabalhava atualmente havia um sistema de câmaras de vídeo com gravador, e outros três vigias para manter a guarda por 24 horas ininterruptas.  Eles se revezavam, sendo seis meses em período noturno e seis meses em período diurno. O único de útil que aprendera nesse oito anos de guarita foi lidar como sistema de gravação. O técnico da manutenção lhe tinha ensinado uma fraude simples que consistia em repetir uma gravação anterior mudando a data. Em caso de  ser filmado dormindo era só apagar a gravação, repetir a gravação de um dia anterior que estivesse tudo certo e mudar a data. Isso resolvia qualquer fiscalização com o sindico.
 
O caso é que Antônio exagerava, e em lugar de um cochilo ocasional, ele simplesmente ia embora mais cedo. Bem mais cedo. Entrada às seis da tarde examinava as instalações e as oito iam embora. Para voltar para casa dependia de um ônibus até a balsa, atravessava a o canal de Bertioga e apanhava outro ônibus para a rodovia de Guarujá. De lá ia pra gandaia. Passa a noite nos botecos e não raro chegando ao barraco dia claro. A balsa ultima balsa era a meia noite e a primeira às 5 horas.
 
No dia seguinte chegava ao condomínio às 18 horas, rendia o colega e primeira coisa era mudar o vídeo, apagava a noite anterior, copiava um dia bom anterior e mudava a data. Dava sua ronda, que era bem simples, pois era uma única rua de duzentos metros, com quinze casas de cada lado. Numa extremidade era a portaria, com portão fechado e na outra extremidade a rua interna era fechada por um muro alto, com uma pequena abertura de 70 centímetros, com portão duplo e cadeado para o lixeiro, que passava pela rua de baixo. Como o ônibus também passava pela rua de baixo, ele aprendeu a escapar por essa portinhola do lixo. Assim não havia risco de ser visto ou gravado pelas câmaras saindo pela portaria. Ficava tudo aceso e funcionando.
 
Se durante suas escapadas, sempre no meio da semana, alguém chegasse acreditaria que ele estava de ronda em algum lugar do condomínio. Cada visitante tinha seu controle, ela não estava autorizada a abrir para ninguém.
 
O escritório de Ricardo era o responsável pela administração do condomínio Belenzinho. O colega de Ricardo, Mário, era o encarregado da gestão dos empregados, inclusive o Antônio. Ricardo conhecia o Antônio apenas de vê-lo no balcão todo mês para receber e assinar ponto e recibos. Ele já conhecia Antônio de outros carnavais.  E o Mário se referia a ele como um enganador, e embusteiro de bom coração.
 
-esse Antônio vive querendo me enrolar. É um coitado, pobre infeliz, mas um “vagao” de primeira. Já lido com ele desde o outro condomínio. Preciso ficar de olho
 
Quando o Mario queria dizer que ele era de bom coração, queria se referir ao fato de ser pessoa simples, sem estudo, sem família e com pouca saúde. Ele já o tinha visto em Guarujá nos horários em que deveria estar trinta quilômetros longes, no condomínio, em Bertioga. Desconfiava que ele não cumprisse os horários, mas isso era problema do sindico que morava em são Paulo.
 
Ricardo nunca se preocupou com Antônio, ou qualquer outro funcionário, seu trabalho era fazer a contabilidade de lojas e do colégio Marista. Esse colégio marista, cuja sede maior era em cruzeiro, tinha muitos professores que lhe encaminhavam suas contas pessoais, ganhos de aulas e imposto de renda.
 
Quando chegava em casa, como bom pai e marido sempre estava disposto a sair, visitar parentes e frequentar o clube da orla nas sextas ou sábados. O único diferencial era um viagem que ela fazia uma noite a cada dez dias para levar as contas aos professores do Colégio Marista em Cruzeiro. Berenice, sua mulher a principio não gostou muito dessas noites fora de casa, mas ele a convenceu quem eram necessárias, para os ganhos da família, e até a levou com ele uma única vez. Partia do Guarujá às 17 horas, ia pra rodoviária em São Paulo e pegando um ônibus para Cruzeiro chegada por volta das 23 horas no colégio, no fim das aulas, entregava os trabalhos aos professores, recolhia as informações necessárias para a contabilidade e retornava no ônibus que provinha do Rio de Janeiro e o deixava na rodoviária de são Paulo para retornar pela manha a Guarujá. Dormia no ônibus. Era coisa só dele. Um bico, por fora.
 
E seria mesmo um bom bico, se fosse verdade. Na realidade era um engodo, para poder escapar sem magoar ninguém.
 
Uma vez ele atendera uma faxineira, de nome Elza Maria, de um prédio de Pitangueiras, no balcão do escritório. Conversa vai, conversa vem, a mulher, três anos mais nova, mãe solteira e muito quieta, gostou de seus galanteios e foi deixando ele se acomodar na sua cama.  Com o passar dos anos, mais de dez, a relação ficou estável e Ricardo teve de inventar essa ida a cidade de Cruzeiro para poder passar três noites por mês na casa simples dela, próximo ao mercado de peixes, ao lado das Barcas no centro de Bertioga. 
 
Assim nos dias certos Ricardo saia do escritório, deixava o carro na rodoviária ou na barca e atravessava para Bertioga. No dia seguinte, pegava a primeira barca às 5 horas e chegada em casa as sete como quem vinha de Cruzeiro.
 
Ricardo era metódico e correto como convém a um bom contador. Rotina era seu negocio. E nunca invejou a situação ou o dinheiro de ninguém. Berenice, seus filhos e Elza Maria, com sua filha adolescente eram tudo que ele necessitava para viver. Um sujeito feliz, de bem com a vida e com os negócios.  Recusou até uma oferta do PSB local para ser vereador, e faz as contas da paroquia como contribuição religiosa, com orgulho e seriedade.
 
Todavia o destino tem seus próprios caminhos.   Um dia, seis meses antes daquela conversa final com a Dra. Claudia, entrou areia na maquina muito bem ajustada da ética de Ricardo.
 
Naquela manha ele saiu de casa de Elza, e foi ate a balsa. Cruzou o canal com a primeira balsa, cinco horas da manha, e do outro lado, foi até a padaria tomar um café, antes de esperar o ônibus que o levaria até a rodoviária no centro de Guarujá. Entrando na padaria, cruzou com Antônio saindo meio embriagado. Ele o reconheceu de pronto, mas não teve certeza se Antônio o reconhecera.  Quando se encostou ao balcão ouviu o freio de uma moto atropelando o Antônio que tentava atravessar a rua.  Saiu para porta com mais dois fregueses e contatou que não era nada. Antônio com a ajuda do motoqueiro se levantou e veio para a calçada. Ricardo se fixou no cabelo Black Power do motoqueiro de pele escura e uns 25 anos. Ouviu-o xingando o Antônio enquanto voltava para levantar a moto e sair. Automaticamente, a memoria de Ricardo registrou os números da placa e o nome Santista no bagageiro da moto.
 
Antônio, cambaleante seguiu para o ponto de ônibus e Ricardo voltou ao balcão. Quando terminou o café, Antônio já tinha ido embora.  Ricardo, como de costume passou em casa, e às nove horas estavam no escritório.
 
Dois dias depois retornando do almoço, Mário lhe mostrou o Jornal Gazeta de Guarujá com a noticia da prisão de pessoas que furtavam condomínios em Bertioga.
 
- Veja aqui o nome do Antônio... Lembra-se dele...  Foi preso por furto no Belenzinho...diz Mário.
 
Ricardo  leu  que a policia tinha prendido o vigia Antônio... Como membro de uma quadrilha que furtava condomínios. No texto dizia que um morador desconfiado que estivesse sofrendo pequenos furtos continuados, tinha colocado câmeras ocultas e surpreendido o vigia e seus comparsas levando objetos de furto pela porta dos fundos do condomínio. E mostrava a foto da porta da lixeira que o vigia deixava aberta para seus  comparsas entrarem para furtar. E dizia que o vigia dava cobertura enquanto os cumplices entravam nas casas. Havia fotos dos cumplices dentro da casa.  E nas fotos a data de dois dias atrás as 05h10minb da manha. Exatamente na mesma hora em que ele e Antônio estavam na padaria, no outro lado do canal, vinte  quilômetros longe do Belenzinho.
 
Devolveu o jornal ao Mario, sem comentários.
 
Ricardo ficou pensativo. Saiu mais cedo para almoçar e na rua comprou outro jornal. Levou para casa e enquanto almoçava lia com cuidado. Comentou com  a mulher Berenice que o condomínio Belenzinho que eles administravam  tinha sido furtado e os ladroes apanhados.  Mas de verdade o único apanhado fora o vigia. No jornal dizia que estavam à procura dos comparsas.
 
À tardinha Ricardo já estava bem alterado. Ele podia salvar Antonio. Ele era o seu alibi.  Antônio não podia ser o ladrão. O nervosismo e a adrenalina estavam em alta, enquanto os pensamentos o atropelavam. Pelo certo  ele tinha de ligar a policia e dizer que o Antônio não estava em Bertioga nessa noite.
As fotos no jornal mostravam alguém jovem e magro de jaqueta. Não se via o Antônio. Nem podia. As fotos eram das 5 horas da manha,  horário em que a moto atropelava o Antônio em Guarujá.

 
Para estar em Guarujá, do outro lado do canal, às cinco horas ele tinha que ter atravessado com a balsa da meia noite. Ou seja, Antônio não esteve no condômino naquela noite. Ou  teria saído  antes das onze. Na hora do furto, gravado, Antônio estava em Guarujá. Com certeza não participou do furto.
 
Lembrando as palavras de Mário, que Antônio era  um enrolador, Ricardo deduziu que Antônio  teria adulterado as fitas, ocultando sua ausência, antes da policia levar as fitas.  E teria feito essa adulteração antes de saber que o morador tinha  feito denuncia de furto. Desse modo a policia viu que Antônio estava no condomínio na hora do furto, e não agiu por ser cumplice ou a próprio ladrão. E viu também nas fitas a porta da lixeira aberta.
 
 
 
Ricardo pensou que se Antônio saiu às 11 horas os ladroes teriam entrado depois disso pela lixeira aberta e foram filmados às cinco horas.  Assim nas fitas do condomínio não se vê o furto.
 
 Com Antônio saindo às 11 horas os ladroes entraram pela lixeira as três ou quatro e foram filmados às cinco horas. Mas não aparece na filmagem dom condomínio porque o Antônio apagou e refez.
 
 O condômino só levou as fitas gravadas para a policia no dia seguintes, sem o Antônio saber, o que lhe deu tempo para mudar a data das fitas.
 
Ricardo passou na noite sem dormir. Se disser que viu Antônio no Guarujá, invalida a teoria de que ele participou do furto.  Inocenta Antônio. Pode ser acusado de irresponsável, mas não vai pegar dez anos por furto e quadrilha. Ou será que ele é culpado? 
Ricardo dizia pra si mesmo:... se digo que eu estava na balsa  as 5 horas, o que digo que estava fazendo ali? Que vou contar para minha mulher? O que vou dizer ao delegado, falo de Cruzeiro ou de Elza? De todo jeito Berenice vai descobrir que passei a noite em Bertioga, fazendo o que? Onde?

 
Um conflito ético descomunal. Se salva Antônio, condena a si próprio.  E Antônio não o viu, pois se ao ser preso alegou que não estava no condomínio, teria dito de Ricardo como um álibi. O fato de a policia não ter procurado Ricardo é sinal que Antônio não o citou.
 
Pela manha antes de chegar ao escritório, parou no orelhão da praça em frente e ligou 190. Ligou para o plantão da policia, que não exige identificação disse o que sabia. Disse que ele viu o Antônio na balsa em Guarujá às cinco horas. E deu detalhes.  A policias anotou e deu um numero de referencia. Dia seguinte ligou para o jornal e pediu para falar com o repórter policial. Ao fim logrou que o repórter iria verificar o andamento das investigações e se nada publicasse ele podia ligar dia seguinte. Dia seguinte ligou e o repórter lhe deu os detalhes que tinha e o aconselhou a procurar a delegacia.  Antônio seguia detido.
 
No escritório, dia seguinte o Mário providenciava o desligamento de Antônio. O sindico tinha informando o Mário que Antônio teria facilitado à entrada dos bandidos e mesmo sem acusar ninguém um do bandido que a policia descobriu e prendeu com o material furtado, disse que o Antônio lhe deixou a porta aberta.
 
Nessa semana Ricardo não foi a Bertioga. Foi à igreja. Berenice já estava estranhando o comportamento dele.  Sem poder conversar com ninguém, Ricardo passava por uma tortura mental. Sentia-se malvado, mau. Um dilema descomunal.
 
Passados vinte dias sem mais noticias, foi à casa de detenção e perguntou por Antônio. Foi informado que o caso estava com a Defensoria Publica. Ele se fosse parente, poderia visita-lo com o consentimento da promotoria.
 
Ricardo já se decidira não se apresentar. Não iria depor na delegacia. Afinal não podia por em risco nem seu casamento nem Elza.  Ele poderia ajudar sim, mas o problema seria mesmo do Antônio. Ele não podia pagar um preço tão alto.  Mas quem sabe um preço menor?
 
Procurou na beira do porto, um escritório de advocacia popular em Santos, e entrou no escritório da Dra. Claudia. De pronto disse que não iria se identificar e contou o caso. Pagou a consulta. Ao sair logrou o compromisso da Dra. Claudia, que ela  iria levar pessoalmente as informações do motoqueiro que atropelara Antônio, mais a informação de que o Antônio tinha amigos de bebedeira e já fora advertido por abandonar o serviço antes da hora. E acrescentou que o técnico das câmaras podia ser interrogado para dizer se havia adulteração das gravações. Isso inocentaria o Antonio.
 
Ricardo não voltou ao escritório da Dra. Claudia, alegando estar trabalhando em São Paulo, mas lhe falou por telefone diversas vezes e fez os deposito bancário correspondente ao seu trabalho. Passados seis meses, e muita insistência, um pedido de soltura foi aceito pelo Judiciário e Antônio posto em liberdade.
 
 
 
Ricardo volta para Beatriz sem lhe dar o desgosto de saber da existência de  Elza e... voltou para a cama de Elza sem lhe dar o gosto de saber que o bêbado  que um dia a  engravidara,  tinha sido preso por furto a condomínio.
 
Ricardo, hoje sem  peso na consciência, voltou a sua vida rotineira, e nunca mais teve noticias do Antônio, mas continua indo ao Clube nas sextas e a Cruzeiro nas noites de quarta-feira.

Fim

 
Mikaelnavarro
Enviado por Mikaelnavarro em 17/09/2014
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