426-DELEGADO DAVANTI E ZICO VALENTÃO

— Estamos aqui para estabelecer o império da ordem e da segurança nesta cidade. Não devemos bater, surrar e muito menos torturar os que infringem a lei. Quero que todos prestem atenção neste regulamento. Agora podem ir patrulhar a cidade.

Com estas palavras o delegado Douglas Davanti encerrou o curto discurso aos componentes do pequeno destacamento de cinco soldados e um cabo da pouco-mais-que-vila de Vargem Verde. Havia chegado na véspera e assumido o comando da polícia local, abandonado pelo antecessor Dr. Carvalhinho, que não conseguira diminuir a violência do lugar nem dominar a truculência dos policiais. Davanti era um emissário especial do Secretário de Segurança do Estado. Enviado para onde fosse necessário, para as mais espinhosas situações, jamais deixara de corresponder à confiança do chefe.

Localidade pequena, elevada à condição de cidade, desmembrada do município de Monte Vermelho, Vargem Verde estava distante mais de quatrocentos quilômetros da capital. Era conhecida no estado como local de muita violência. O Dr. Carvalhinho não agüentou o tranco, saiu de repente, sem preencher a liturgia de transferir o cargo ao sucessor.

Após dispensar os soldados para as tarefas rotineiras, Davanti foi inspecionar a cadeia pública. A delegacia ficava numa das dependências do edifício. Era, a bem dizer, a sala de recepção da prisão. Em seguida, vinha a sala dos guardas, onde eles se reuniam, sendo, ao mesmo tempo o depósito das armas e refeitório, pois alguns guardas traziam a marmita de casa. Seguindo pelo corredor, encontravam-se as três celas. Duas delas eram salas quadradas, de cinco por cinco metros, com dois beliches em cada cela e abrigavam os presos comuns. A última era menor, tinha uns dois por dois metros, uma cama de cimento. Por estar no final do corredor, era escura e mal ventilada. A pouca claridade vinha de uma pequena grade situada bem no alto da parede, limitando com o teto. Era a “solitária”, como diziam guardas e presos.

Davanti, eficiente policial dotado de alto espírito de humanidade, fez questão de conversar com todos os oito presos

— Neco, apanhe as chaves das celas. Vou fazer uma vistoria.

— Chefe, aí dentro tem bandido perigoso. — Avisou o carcereiro.

— O perigoso aqui sou eu, Neco. Vamos, abra a porta.

A porta aberta, Davanti entrou, mandou o carcereiro fechar, sentou-se à beira de um catre e começou a dialogar com os presos. Depois de meia hora, passou para a segunda cela, onde repetiu a visita.

— Agora, vamos ver essa mulher aí na "solitária”.

— Doutor, ela é louca. E o senhor não vai agüentar a fedentina.

Neco relutou em abrir a porta da última cela. O fedor podia ser sentido de longe e percebia-se que a prisioneira era desequilibrada pelos sons cavernosos que vinham do canto mais escuro da cela, onde ficava, agachada e com o vestido sobre a cabeça.

— Dona Nhaca, baixa o vestido que o doutor delegado vai entrar. — Mandou o carcereiro.

Davanti entrou. O mau cheiro era insuportável. A sujeira da mulher ia dos cabelos aos dedos dos pés. Uma verdadeira imundície ambulante. Ela retirou o trapo da cabeça. Os olhos brilharam como brasas na escuridão. Deu uma gargalhada roufenha e permaneceu agachada. O delegado tentou conversar, mas a louca não deu atenção, nem respondeu às perguntas.

— Há quanto tempo ela está aqui? — Perguntou ao carcereiro, saindo da cela.

— Faz mais de ano. A gente está esperando uma vaga no hospício de Bigodena, pra mandar ela, mas tá difícil. Os presos vivem reclamando dos gritos e do fedor.

— Não é para menos. Mande lavar a cela e a mulher. Providencie uma roupa decente.

Era por volta do meio-dia quando Davanti foi interrompido da leitura das fichas dos presos por um alarido da rua. Saiu à porta da delegacia e viu uma confusão de soldados, um homem seguro pelos braços, esperneando e gritando ameaças e palavrões. Umas vinte pessoas acompanhavam de longe o espetáculo grotesco.

— Cabo! Que confusão é esta?

— Prendemos o Zico Valentão. Mas ele tá resistindo à prisão.

Davanti se aproxima do grupo de quatro soldados e o homem esperneando, levantando poeira da rua de terra. Já sabia de quem se tratava. Zico Valentão. Ex-jagunço em decadência, era o terror do lugar. Bebia demais, batia nas mulheres da zona, maltratava os animais, era um tipo ruim de verdade, com dezenas de passagens pela cadeia. Mas tinha as “costas largas”, padrinho político de prestigio, que sempre mandava soltá-lo.

— Atenção! Zico Valentão! Pare com isso!

E ao cabo, determinou:

— Algeme o homem.

A voz de comando, usada muitas vezes nos treinamentos militares e nos campos de batalha, surtiu efeito na hora. Zico Valentão nunca ouvira ninguém falar com ele com tanta autoridade. Parou de espernear e olhou assustado para o delegado.

— Mande esses cabras me soltarem! — gritou para o delegado.

— Sim, eles vão te soltar já e já. Lá dentro. Na cela.

— Delegado, ele não pode ficar com os outros detentos. Vai armar encrenca, como das outras vezes.

Pensando rápido, Davanti ordena:

— Ponha ele na “solitária”.

O carcereiro avisa:

— Doutor, ainda não deu tempo pra lavar a cela e a louca.

— Melhor ainda. Vamos, soltem ele lá.

Ao ouvir a determinação, Zico voltou a espernear. Algemado e seguro pelos guardas, não fez muita confusão. Foi obrigado a seguir até a última cela.

— Não! Com a louca, não! Pelo amor de Deus! — Gritava o marginal.

Zico gritou por mais de uma hora, inutilmente. Ao ver que nada adiantava os gritos, amainou. A louca não se manifestou, continuou agachada no canto, o vestido sobre a cabeça.

— Doutor, como é que vou lavar a solitária, com Valentão lá dentro?

— Deixa pra amanhã. Até lá, nós o amaciamos. Hoje de noite, você molha o piso da solitária. Só o chão não molhe Zico nem a Dona Nhaca.

Era o mês de junho. O vento frio passava pelas montanhas e penetrava nas casas por todas as frinchas. As celas da cadeia pública eram geladas. Os presos se agasalhavam como podiam e se ajuntavam. Os corpos se aqueciam mutuamente.

Quando o carcereiro jogou alguns baldes d’água no chão da solitária, Zico reclamou:

— Vou matar esse delegado assim que botar os pés fora da cadeia. Juro que vou.

Mas o berreiro veio mesmo mais tarde, pelas dez da noite, quando a louca, não agüentando o frio, agarrou-se ao colega de cela, na tentativa de se aquecer. Com a força da demência, apegou-se de tal forma ao valentão, que este, mesmo esfregando-a pelas paredes, não conseguiu se livrar do abraço. Acabou por aquietar-se, conformando-se com o enlace impossível de ser desfeito. Dormiram juntos a louca e o valente.

No dia seguinte, Zico acordou com nojo de si mesmo. O fedor da mulher impregnava suas roupas, seus cabelos, seu corpo todo.

— Me tirem daqui. Não agüento este fedor. Pelo amor de Deus, me tirem daqui.

O Delegado chega rente à grade da solitária:

— Então, Zico, dormiu bem? Gostou da companhia?

— Me tira daqui! Faço o que o senhor mandar, mas deixa sair. Me põe na outra cela. Juro que vou me comportar.

— Você não vai pra outra cela, não, Zico.

— Pelo amor de...

— Você vai sair. Agora, vou lhe dizer umas coisas. Primeiro, que comigo não tem esse negócio de ser afilhado de político, que vai mandar te soltar. Comigo aqui, não. Segundo, todos os guardas, e eu também, vamos ficar de olho em você. Qualquer aprontação sua, por menor que seja, pegamos você. E terceiro: aqui na cadeia, seu lugar vai ser sempre junto com Sinhá Nhaca. Agora, diga se me entendeu.

— Entendi, seu doutor-delegado.

— Promete não armar mais confusão?

— Juro que vou entrar na linha. Nunca mais quero passar outra noite como esta.

Zico Valentão foi liberado. Voltou para seu casebre nas terras do protetor e nunca mais aprontou confusão.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 26 de fevereiro de 2007

Conto # 426 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/09/2014
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