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— Então, seu Rafael, estamos entendidos? Vê se cria juízo. Não quero ver você por aqui tão cedo. — O delegado, Dr. Roberto Realende, folheia o dossiê do homem à sua frente, enquanto fala com voz firme — Procura trabalho, homem! Se continuar nesta vida, vai acabar seus dias apodrecendo na cadeia.

Rafael Miranda, conhecido como Calango, permanece de pé, com as mãos nos bolsos da calça. Parece que não ouve o delegado. Ou, se ouviu, faz que não entende. Não é a primeira vez (e talvez nem será a última) que escuta o sermão do delegado, por ocasião da sua soltura.

— Estou vendo aqui, esta é a trigésima-quinta vez que você passa por esta cadeia. Trinta e cinco vezes! Desta vez, ficou quatro meses. Se você for pego de novo, vou providenciar para que você fique alguns anos.

A pasta engordara com muitos documentos. Mesmo sendo considerado um ladrão pé-de-chinelo, a sua presença constante, suas entradas e saídas, fazem dele um marginal conhecido tanto dos colegas de prisão como dos guardas.

Rafael, ou Calango, saiu pela porta dianteira. Não sentia nenhuma nova emoção, tantas foram as vezes pelas quais passara por ali, entrando algemado ou saindo de mãos livres. As palavras do delegado entraram por um ouvido e saíram por outra.

A incapacidade de viver dentro da lei, de aprender um ofício, de conseguir trabalho, mostra que Calango é um dos milhares de brasileiros, vítimas do descaso das autoridades, que cresceu semi-alfabetizado, incapaz de compreender bem o que fazia. Como vivia à margem da sociedade, era um “larápio safado”, como dizia o sargento Sílvio, para quem todos os presos eram safados, epíteto que colocava quer nos assassinos, quer nos brigões, ladrões e nos contraventores de qualquer tipo.

Calango era viciado em roubar. Se pertencesse à classe rica, seria considerado cleptomaníaco. Se fosse político, então estaria cometendo em alto nível o que todos os políticos do país fazem, todos os dias, com a mais completa isenção de punição.

Saiu, olhou para um lado da rua, olhou para o outro lado, como que escolhendo aonde iria. A rua da pequena cidade estava deserta naquela hora. Parecia vacilar o caminho a seguir. Mas seu destino só podia ser mesmo a favela do Escorrega-la-vai-um, onde morava na companhia da irmã.

No caminho, encontra-se com Zeca Limão, companheiro de andanças, folganças e rapinagens.

— Aí, cara, de novo na rua?

— Pois é. E ocê?

— Por aí.

Sobem a ladeira. Calango observa um rapaz que caminhava, também subindo, distante uns dez metros.

— Olha lá, aquele cara tá cum meu boné. Aquele boné era meu.

— Cumo é que ocê sabe?

— Aquele desenho na aba. Tou reconhecendo. Aquele boné é meu.

Sem dar tempo para qualquer coisa, saiu disparado, chegou até o rapaz, deu-lhe um tapa, arrancando o boné e entrando num beco.

Zeca Limão, surpreso com a corrida do companheiro, seguiu-o. Quando o alcançou, gritou-lhe:

— Corre por aqui.

Os dois sumiram no labirinto de becos.

A vítima, por sua vez, desceu correndo o beco, chegou até à rua, onde estava uma viatura com dois policiais.

— Seu guarda, dois filhos-da-puta me bateram e me roubaram o boné. — Falou com afobação, apontando na direção onde os marginais tinham sumido.

— Pra onde foram?

— Vou mostrar por onde fugiram. — O rapaz sai correndo, seguido pelos dois guardas.

Os guardas seguiram a pista e em poucos minutos, viram os dois marginais, um deles com o boné vermelho, objeto do furto e da perseguição.

Zeca Limão foi preso em seguida, mas Calango escafedeu-se entre os barracos e chegou até sua casa. A irmã, assustada com a chegada repentina do irmão, foi empurrada porta adentro.

— A polícia tá vindo. Tenho de esconder.

— No guarda roupa. Esconde lá. — A irmã é solidária com Calango, sem saber a causa da perseguição.

Calango entra no quarto e abre a porta do armário de roupas. Não é grande.

— Puta merda, como é que vou caber aqui? — pergunta-se Calango, enquanto se enrola nas roupas da irmã. Afinal, consegue fechar por dentro as duas portas do móvel. Fica silencioso, embora respire com dificuldade. Segura com firmeza o boné, como se fosse um tesouro.

Os dois policiais chegam, arrastando Zeca Limão.

— Onde está o Calango?

— Sei não, seu guarda... — A moça treme, mas não delata o irmão.

Os guardas sabem que ela está mentindo. Começam a busca. Observam uma cadeira de quebrada, sinal de que houvera algo anormal. Um deles entra no quarto, e, sem titubear, vai ao guarda-roupas, abre-o e encontra o meliante, de boné nas mãos.

À prisão segue-se o transporte dos dois presos mais o rapaz que tivera o boné roubado para a delegacia, na viatura policial.

— Doutor Realende, flagramos estes dois marginais em ato de assalto.

O delegado levanta os olhos dos papeis que examina.

— Você de novo, Calango? Mas eu não lhe falei pra criar juízo?

Calango nada diz. O delegado olha para o relógio.

— Você sabe que horas são?

— Sei não, doutor.

— Dez e trinta. Dez e trinta da manhã. Parece mentira, mas você foi solto aqui desta cadeia há apenas noventa minutos.

Antônio Gobbo

Belo Horizonte, 28 de setembro de 2007

Conto # 452 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/10/2014
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