Um dia no escritório de Mister Max

UM DIA NO ESCRITÓRIO DE MISTER MAX

Miguel Carqueija


Certas manhãs sombrias, com a cidade de Londres amortalhada por nuvens escuras e agourentas, compareci ao escritório do Dr. Brian Max, advogado criminal, para assumir as minhas novas funções de secretária. Fôra aprovada em alguns testes de aptidão acompanhados pelo meu “curriculum-vitae” e agora só restava tomar posse do meu novo emprego.
Eu já tinha falado rapidamente com o Dr. Max. Ficara-me uma impressão deprimente: um homem magro, mais para baixo, de funções duras e morenas, cheio de rugas pouco profundas e um olhar raivoso, incômodo. Sua voz era dura também e muito forte. Estava de chapéu, dentro do escritório. Agora vê-lo-ia quase todos os dias.
Modiquei a minha curiosidade em relação ao patrão, dada a natural timidez de quem entra em um novo emprego. O assistente do Dr. Max, certo Dashiell — homem meio gordo e cheio de bexigas — indicou-me a escrivaninha na ante-sala do gabinete. Dotada de interfone, telefone e outras comodidades.
— Será o seu reino agora. Vinha sendo o da dona Josefina.
— E por que ela deixou um emprego tão bom?
— Teve de ser internada numa clínica para doentes nervosos.
Não tive tempo para analisar as implicações de tal informação: o telefone tocou e Dashiell passou-me o aparelho:
— Comece. Pode assumir seu posto. O Dr. Max ainda não chegou, se alguém perguntar.
— Mas...
Dashiell, porém, deixara-me só e sem instruções suficientes para agir. Sentei-me depressa e atendi da melhor maneira que pude:
— Escritório do Dr. Brian Max, bom dia.
— Bom dia uma ova! — estertorou uma voz cavernosa e colérica — aquele......................... do Max já chegou?
— Ainda não — respondi abismada.
— Pois diga a ele que os seus dias estão contados! Na primeira oportunidade transformá-lo-ei numa peneira! Já estou com um monte de balas com o nome dele gravado!
— M-mas quem é que está falando, por Deus?
— É um dos que ele pisou o calo! Bem, diga ao nojento para encomendar o caixão! Adeus!
Bateu com o telefone. Durante alguns estúpidos momentos fiquei analisando a gramática não de todo escorreita do ultimo período. Voltei à realidade com súbita interferência:
— Que faz aí com essa cara apatetada e o telefone fora do gancho?
— Oh! Dr. Max! Eu... eu estava estreando no trabalho!
— Estreando de forma não muito brilhante, permita-me dizer. Se já desligaram, reponha o fone no gancho!
Obedeci maquinalmente.
— Mas, Dr. Max! Era uma ameaça de morte! Um sujeito dizendo que vai atirar no senhor... transforma-lo em peneira...
— Oh, isso! É apenas a primeira do dia!
— A... a primeira?
— A primeira ameaça. Há uma média de seis por dia.
— Tudo isso?
— Você se acostumará. Venha cá para que eu lhe explique algumas coisas.
Acompanhei-o até o seu gabinete, decorado com alguns dragões serpentiformes em alto-relevo, espalhados pelas paredes, além de outros motivos teratológicos. Pegou um volume sobre a sua escrivaninha.
— Aqui está a minha agenda. Você fará o controle dela. Quando alguém quiser me ver pessoalmente você primeiro consultará a agenda para ver se a pessoa marcou hora.
Deu-me mais algumas instruções infra-estruturais e completou:
— Você terá autoridade sobre os demais, aqui no escritório. O Dashiell trabalha em minha casa também periodicamente e é um empregado antigo e de confiança. Ele não dará ordens a você, mas nem você a ele. Isso porque ele está diretamente à minha disposição, inclusive para serviço de rua. Então você só dará a ele ordens que eu transmitir, mas os outros você poderá controlar à sua maneira.
Achei meio esquisita essa instrução, mas não a pus em discussão. Só mais tarde, quando vim a me aprofundar nas misteriosas atividades de Mr. Max — como era solenemente conhecido — pude compreender melhor a sua necessidade de manter um sujeito a seu exclusivo serviço: uma espécie de escudeiro. Aliás ele mantinha uma verdadeira vassalagem, como um rei em seus (pequenos) domínios.
Entretanto uma datilógrafa veio me entregar a correspondência do dia. As instruções de Max eram taxativas: só levaria o que fosse importante para ele.
Quando comecei a ler as cartas fiquei horrorizada e invadi o gabinete do Dr. Max. Ele se encontrava, naquele momento, tirando a própria pressão.
— Dr. Max, tudo isso é importante! São ameaças de morte!
— Ah, sim? Deixe-as comigo. Eu estava sentindo falta de uma diversão qualquer.
— Diversão?
— Claro. Além do mais preciso ver se são reincidentes ou não, mas não precisa me trazer sempre essas coisas. Basta colocar no fichário de ameaças, ali naquela mesa.
Ainda tive forças para fazer uma pergunta:
— Dr. Max, com essas cinco ameaças já fizemos a média do dia, não é?
— Não, não. Esqueci de lhe dizer que a média de seis é só para telefonemas.
Não tive coragem de perguntar qual era a média em cartas.
Apesar de tudo uma parte do dia transcorreu com aparência de normalidade. O Dr. Max tinha seus clientes habituais ou extraordinários e não trabalhava com sócios. Depois que retornei do almoço, porém, deparei, na sala de espera, com um tipo esquisito, todo de preto, com jeito de agente funerário de anedota.
— O senhor deve ser Warren Lutz — falei, bancando a secretária eficiente. Estava na agenda para aquela hora e eu sabia tratar-se de um detetive particular, amigo de Max. Mas não estava preparada para o comportamento dele. Levantando-se, falou:
— E você deve ser a nova secretária. Como adivinhou que eu sou Lutz?
— Porque está na agenda, ora.
— Mas foi pura coincidência. Eu poderia não ser Lutz. Nunca tire conclusões apressadas de indícios insuficientes!
Resolvi entrar no jogo.
— Está bem, então como é que você sabe que eu sou a nova secretária? Poderia não ser!
— Faça o que eu digo, não o que eu faço — e assim dizendo, disfarçando o embaraço, ele adentrou no escritório. Aparentemente estivera lá fora só para aguardar o Max, pois sua intimidade no local dispensava formalidades.
Pelas três da tarde a Yvette avisou-me pelo interfone que o Inspetor Hill estava no escritório e queria falar com Max.
— Mas ele não está na agenda — protestei.
— Ele nunca está na agenda, minha filha. Esse tem que entrar. Avise o doutor.
Max estava atendendo uma cliente e o inspetor teve de aguardar uns 20 minutos. Depois que ela se foi, calculem minha surpresa quando Max passou por mim e grunhiu:
— Vamos ver o que essa figura quer. Venha para testemunhar.
Max penetrou no salão de seu escritório. Quer dizer, Hill não seria atendido a sós! Dificilmente eu poderia imaginar maior acinte a um inspetor da Scotland Yard. O Sr. Hill era um homem idoso, corpulento, de aspecto antiquado e formal. Sentado numa poltrona, diante dos olhares constrangidos de cinco empregados, aguardava. Tinha nas mãos um jornal.
— Que deseja o senhor? — indagou Max.
Nada de boa tarde, pensei. Hill não fez por menos: ergueu-se, brandindo o jornal:
— Max, você vai parar com essas declarações estúpidas aos jornais!
— Não enquanto não mudarem a Constituição!
— Você não tem o direito de fazer criticas á polícia!
— Homem, o senhor se dá conta das implicações do que está dizendo?
— Está bem. Você vai falar em democracia e por aí a fora. Mas se estivesse no meu lugar, à caça de bandidos perigosos, veria o quanto é difícil...
— Inútil, inspetor. Por que não se utiliza também da imprensa para me contestar? A queixa que eu fiz foi bastante objetiva: a sua incapacidade em prender um escroque internacional que está agindo em Londres.
— Eu pretendo prende-lo! — Hill estava já aos berros. — Só que não é um maníaco como você que vai me ensinar como fazer! Você é um intrujão! Limite-se a exercer a sua profissão e não se meta onde não é chamado!
Mr. Max ia responder, mas o inspetor deu-lhe as costas e saiu como uma flecha, batendo com a porta.
— Ele e suas rebentinas... — murmurou o advogado.
— Hoje ele não estava muito nervoso... — comentou Dashiell.
— Como! — falei. — Ele costuma vir aqui fazer cenas?
— Esse mês já é a terceira visita — esclareceu o Dr. Max. — Ah, nós já estamos acostumados. Aliás isso é uma prova do que eu digo: se ele se empenhasse mais, não encontraria tempo para vir aqui.
Acompanhei o Dr. Max ao seu gabinete, pedindo-lhe informação sobre o tal escroque. Ele sentou em sua cadeira giratória, disse-me para sentar e começou:
— Trata-se de Luigi Portobello, de Gênova. Recentemente ele vendeu a Torre de Londres a um figurão da alta sociedade londrina.
— Meu Deus! E por que o inspetor não o prende?
— Diz ele que não há provas. Agora você entende porque é que eu não me dou bem com a polícia?
— Ora, o senhor podia simplesmente não se envolver...
Creio que falei demais. Mr. Max deu um soco na mesa e berrou:
— Isto aqui não é um simples escritório de advocacia! É uma fortaleza da Justiça! Eu estou aqui para incomodar a quem for preciso, doa a quem doer!

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Retornei para casa, naquela tarde, mentalmente exausta. A última que me ocorrera fôra receber de presente, do advogado, alguns frascos de homeopatia e prospectos anexos. “Lembre-se, dissera ele, que a morte nos acompanha passo a passo, como uma sombra, e que é sempre útil andar prevenida para não ser apanhada de surpresa. Esteja aqui amanhã às oito, se ainda estiver viva”.
O noticiário de tv mostrou repentinamente uma figura que eu conhecera naquele dia: o Inspetor Maxwell Hill. Fixei-me na tela, subitamente interessada:
“.... efetuou a prisão de um vigarista italiano chamado Luigi Portobello. Este cidadão recentemente vendeu a Torre de Londres a um milionário londrino, fato que foi abafado dos meios de comunicação, mas que ensejou uma longa investigação da parte da Scotland Yard...”
Muito nova no assunto, eu não podia saber se a intervenção do Dr. Max tivera alguma coisa a ver com o resultado satisfatório da polícia. De qualquer modo, apesar do pânico que me causavam os métodos do Dr. Max, eu não podia pedir demissão: precisava muito do emprego. E até já estava me adaptando ao ambiente do trabalho, como ficou patente na resposta que dei á mamãe, quando esta observou que eu estava me recolhendo cedo:
— É que eu estou cansada e tenho que pegar cedo amanhã, isto é, se ainda estiver viva...




(conto escrito na década de 80, da série do Dr. Brian Max)