De volta pra casa.

A terra que fica nos fundos do meu quintal está tricando. Onde havia um córrego e a gente pescava peixes variados, hoje não corre nem água suja. O brejo que cercava o rio hoje não existe mais. Ali cansamos de pegar um bichinho chamado de preá. Era delicioso. Hoje não se vê nem pássaros. A vegetação está secando dia após dia. E o verde está fugindo aos nossos olhos.

Lia olhava preocupada pela janela da sala. A paisagem desoladora a deixava muito triste. Seus pais já haviam partido e ela ficara com dois irmãos menores. Um tinha apenas dois anos quando a mãe se fora. Ela não resistiu aos desmandos da vida. Fraca demais não resistiu a uma febre que se abateu sobre ela. A outra irmã de Lia tinha cinco anos de idade. Quando o pai morrera a mãe lhe prometera que estaria sempre com os filhos e assim tudo daria certo. As coisas foram só piorando e agora sem a mãe, Lia não imaginava o que fazer pra alimentar seus dois irmãos. A plantação se acabara com a seca. Nunca imaginara que viveria isso ali numa terra que outrora fora tão fértil. Brincara com a água na hora do banho com tanta fartura no passado, que agora se sentia culpada. Nina, a irmã de Lia estava com o rostinho sujo mas ela não podia banhar a irmã. Tentou molhar a fralda da saia na saliva e assim limpar o rostinho da irmã, mas não havia saliva o suficiente. Estava com sede. Muita sede.

A casinha de estuque na beira da estrada já mostrava as varas amarradas pela falta do barro que caia. Lia olhando a janela viu se aproximar uma senhora com um carro bonito.

A senhora ficou a olhar os belos cabelos de Lia. Sujos e despenteados, mas mesmo assim belos e selvagens. Com um bom trato aquela menina pareceria bem mais bonita que ela. Sempre passava por aquela região a procura de uma filha que teria sido sequestrada muitos anos antes por uma estranha. Nunca a encontrara. É claro que a estranha não a teria trazido para aquele fim de mundo mas ela não queria saber disso. Só perambulava por ai na esperança de rever seu bebê. Bebê este, que já deveria ter uns vinte anos mas para ela ainda era um bebê. O carro de luxo parou na porta da sala e Lia saiu em disparada até ele.

Quando a mulher viu A menina se aproximar perguntou:

_Que lugar é este?

_??(Lia não respondeu)

_Que foi menina, o gato comeu sua lingua?

_....

_Tudo bem. Não vou te fazer mal. Porque ainda ficou aqui. Todos os seus vizinhos ja foram embora. Porque não foi com eles?

_Tenho que cuidar das crianças.- Lia falou entre dentes.

_Onde estão elas?

_Por ai.

E no mesmo instante as crianças se enroscaram nas pernas de Lia. Não queriam se separar dela. Ficaram com medo dela ir embora. A menina era muito linda. Seus cachinhos despenteados a faziam mais linda ainda. Se chamava Aline mas era de Nina que o irmão a chamava.

_Ah ai estão vocês. São seus filhos?

_Não. Irmãos.

_Onde estão seus pais?

_Ja se foram...Pro céu. - E apontou o dedo pra cima.

_Se tivesse ido embora seus irmãos estariam melhor.

_...

_Dê-me a menina!Eu cuidarei dela. Nunca mais passará fome.

_Não!!! Prometi a minha mãe cuidar dela!

_E cuidar dela é deixá-la passar fome?

_Não, mas dá ela prus otro é abandoná.

_Eu não vou abandoná-la. Vou cuidar muito bem dela. E tirou um pacote de biscoitos deliciosos da bolsa e o deu as crianças, que comeram vorazmente. Lia não tocou no biscoito mas demonstrou que tinha vontade de comer também. Deixou que as crianças comessem.

A Senhora tirou mais um pacote de biscoitos da bolsa e o entregou a Lia. Uma caixa de frutas do porta malas e entregou também. Eram maçãs, peras e uvas. Era muita fartura .

Quando pararam de comer a mulher insistiu: Dê-me a menina! Não vai deixá-la aqui nesse fim de mundo a passar fome?

_Não. Não posso fazê isso. Ela não merece morrê de fome. Sim pode levá, mais ispera que vou falá cum ela.

E saiu dali com a menina na mão. Sentou em uma pedra, pegou a pequena no colo e num tom bem carinhoso falou com ela

_ Nina, ocê sabe qui a Lia gosta muito docê, num sabe?

_Sei

_Se ocê ficá aqui vai morrê de fome. Vai cum ela que lá tem muita comida. Se alembrá de nóis reza pro pai do céu pra protegê a gente. Um dia a gente se incontra. Até lá seje obediente tá. Faz tudo o que ela mandá. Istuda muito pra sê alguém na vida.

_O qui é istuda?

_Na hora ocê vai sabê. A mãe sempre dizia isto. Amo ocê dimais Nina. Nunca isquece disso tá bem? Vai cum Deus. Ocê vai sê feliz. - E deu um beijo na irmã, pegou ela no colo e entregou pra mulher estranha. (as lágrimas teimando em querer escorrer.

_Ela tem documentos?

_Num sei o qui é isso.

_Um papel com o nome dela.

_Tem não dona. Ninhum de nois tem.

A Senhora entrou no carro e levou a menina, que até tinha um sorrizo no rosto. Ela dava tchau para os dois irmão, sem se dar conta de que talvez nunca mais os veria. Lia nem perguntou o nome da mulher. Mas era tarde demais pra isso.

Lia entrou pra dentro de casa com o irmão pequeno e com ele no colo choraram muito. Arrumou tudo o que restou de valor e partiu dali pra sempre. Talvez encontrasse algo melhor em algum lugar, sem precisar deixar o outro irmão ir embora. Será que algum dia veria a Nina outra vez? E sentiu um aperto no coração. Procurou desvencilhar-se dos pensamentos e pensou que tudo daria certo pra ela. Era uma menina boazinha e não daria trabalho a mulher. Seria feliz. Mas por via das dúvidas, rezaria por ela toda a noite enquanto vivesse, até vê ela de novo. Bem alimentada a caminhada rendeu. Logo estavam na cidade mais próxima. Entrou no armazem e o dono, o sr Alberto, lhe falou:

Resolveu partir Lia? Até que enfim. Oh menina teimosa!! Vai embora daqui Lia. Na capital vai arranjar trabalho. Quer deixar o Mateus comigo? Eu cuido dele até você voltar. Prometo que ele vai ser bem cuidado. Me escreve que eu mando notícia dele pra você.

A mulher do Sr Alberto levou Mateus pra dentro pra fazer Xixi.

_Num sei lê nem iscrevê. Cumé que eu vô sabê dele?

_Cadê a Nina? Uma senhora passou por aqui ontem com uma criança dentro do carro. Era ela não era?

_Era sim sinhô. Fazê o quê. Foi Mió préla.

_Foi sim Lia . Você fez bem. As crianças morrem muito fácil de fome. Qualquer dia desses o Mateus morre em seu colo e você não pode fazer nada. Deixa ele aqui. Não to tomando ele de você. Um dia você volta e pega ele de novo.

_Ta certo. O sinhô cuida dele pra mim. Eu vorto. Ele vai chorá um tanto. Nun tá custumado a ficá sem eu. Mas dispois cala. É melhor ir antes dele vortá. Adeus seu Alberto. Eu vô mais eu vorto. Inté.

Continua...

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 25/02/2015
Reeditado em 12/04/2017
Código do texto: T5149912
Classificação de conteúdo: seguro