780-O LADRÃO ARREPENDIDO

Na madrugada fria de Curitiba, o vulto se esgueirou sorrateiramente, escondendo-se atrás dos troncos das árvores e agachando-se ao abrigo das noites de hortênsias do jardim, dirigindo-se aos fundos da casa de dois pavimentos, igual à meia dúzia de residências que constituíam o Residencial das Flores.

O homem dirigia-se furtivamente à casa de numero 47, residência da professora Maria Abgail Morais, professora da escola municipal. Mulher simples, viúva, seria a última pessoa escolhida para ser vítima de um roubo. Nada ostentava, mesmo porque nada tinha para exibir. Costumes rotineiros na sua vida diária: idas e vindas da escola, e algumas caminhadas aleatórias pelo parque nas proximidades de sua morada.

Ah, sim, naturalmente, uma visita mensal ao banco, para retirada do salário a fim de atender as despesas caseiras. E alguém soube que na tarde daquela terça feira ela fora ao banco para a retirada. Alguém que agora aproximava da casa entre assombras.

Com chaves falsas e alicate abriu a porta dos fundos. Dirigiu-se à sala da frente. Pela vidraça entrava uma claridade tênue, suficiente para que o ladrão fosse direto a um móvel sobre o qual ficava o telefone e com gavetas onde a professora guardava papéis,, correspondência recém-recebida, as chaves da casa, e miudezas dessas que devem ficar à mão.

Com extremo cuidado para não fazer nenhum barulho, o ladrão vasculhou as gavetas, que não estavam trancadas. Nem foi preciso abrir todas para encontrar o que procurava: a bolsa de dinheiro, recheada de notas, produto do saque que a professora fizera no banco naquela tarde, com alguns documentos.

Meteu a sacolinha no bolso da calça, fechou a gaveta com cuidado redobrado, e, pé-ante-pé, saiu por onde entrara.

Jesuino não era larápio profissional. Era, sim, um bom jardineiro e em pequenos serviços avulsos e daí o seu acesso ao condomínio de casas, para prestação de serviços. Em conversas com empregadas e com os proprietários, ficava sabendo de pequenas coisas, fofocas, etc. Assim, sabia dos movimentos de dona Abgail, de cujo jardim de hortênsias cuidava com capricho.

Estava nuns dias ruins da vida. Passava por necessidades, pois os remédios adquiridos para a mulher levaram os últimos reais que tinha em casa. Devia na padaria, e o dono do mercadinho já pedira que fizesse algum pagamento, nem que fosse “por conta” de sua dívida.

Aquela era a primeira vez que, por desespero, furtava. E, sem experiência em lidar com a situação ilegal, cometeu uma falha imperdoável: esqueceu a bolsinha de dinheiro sobre a mesa da sala de sua casa.

Quando chegou do serviço, à tarde, a mulher, Rosalva, que não era tonta nem nada, mais para confirmar a sua suspeita, lascou a pergunta à queima roupa:

— Zuino, que bolsinha é esta aqui com dinheiro?

O homem ficou desconcertado, tentou inventar uma mentira na hora, mas acabou falando a verdade.

Rosalva, sempre pobre e eternamente honesta, desandou numa reprimenda que o homem escutou calado.

Quando teve oportunidade de falar, foi inútil a sua explicação e ficou alarmado quando Rosalva terminou a discussão com uma ordem em tom que não admitia desobediência:

— Cê vai devolver essa bolsa com o dinheiro, ou não precisa pisar mais aqui em casa.

— Mas, mulher, cum qui cara vou fazer isso. Ela vai me denunciar pra policia, vou parar na cadeia.

— Iscreve um bilhete e põe dentro da bolsinha. Dá uma expricação.

—Num tenho ideia prá isso.

Rosalva chamou a filha de apenas oito anos e disse:

—Trais um lápis e uma foia de caderno, e escreve o que vou falar.

Na manhã seguinte, Dona Abgail, ainda abalada como prejuízo e pensando se tinha feito bem em dar parte a policia, encontrou no degrau da escada da porta da cozinha a pequena bolsa com o dinheiro e os documentos. .

— Meu Deus, a bolsinha estava aqui! Mas como é que ela veio parara aqui?

Abaixou-se para apanhá-la. Não faltava dinheiro e todos os documentos estavam ali. Entre papeis e dinheiro, um papel dobrado. Abriu e leu o bilhete mal escrito.

Dizia:

“Dona Maria que DEUS li a bençoe foi pelos meus filhos que tive que robá sei que não e serto mais só DEUS para mi juga que DEUS ilumine seu caminho”.

É a própria professora quem diz:

“Fiquei mais de uma hora sentada com o bilhete na mão e olhando os riscos no documento. A gente que é professora sabe que são de criança pequena. Então aqueles meus documentos estiveram na mão de uma criança. Parei para pensar: será realmente que tem uma pessoa que está num estado de desespero que faz isso porque precisa, porque não tem um trabalho, porque não tem como dar comida ao filho? E se eu tivesse descido com ele aqui dentro, o que teria acontecido?”

Relutante, ela voltou à delegacia, para retirar a queixa. O delegado perguntou:

—Mas porque a senhora quer retirar a queixa?

— É que encontrei a bolsa.

— Onde?

Ingenuamente, ela respondeu:

— No degrau da escada da cozinha.

Obter a verdade da senhora idosa e ter em mãos o bilhete foi coisa de poucos minutos para o profissional experiente.

— Fico com o bilhete. Com ele, vamos encontrar o larápio.

Dona Abgail saiu da delegacia se sentindo mais culpada do que o ladrão que lhe havia roubado e devolvido a bolsa com dinheiro e documentos.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 20 de abril de 2013.

Conto # 780 da Série 1.ooo histórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/04/2015
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