ENCONTRO AS CEGAS
ENCONTRO AS CEGAS
O sino da igreja tocou fazendo os pombos empoleirados no relógio voarem .
Está atrasado . Não o relógio , mas a pessoa que espero . O cheiro rançoso do local marcado , as mesas sujas cobertas por toalhas plásticas , tantos lugares e logo esse . O constante cheiro de peido saindo da cafeteira , os salgados amanhecidos e rançosos na estufa . Tudo condiz com um boteco de última categoria , daqueles que o sujeito carregando o jaleco da empresa no ombro entra para tomar o último trago antes de voltar para casa enfrentar a patroa e as crianças .
O farol fecha , de onde estou , sentado na mesa para duas pessoas ao lado da vidraça do café Bom Samaritano , que é o que diz escrito no lado de fora do vidro manchado de merda , fumaça e toda a sujeira da rua , vejo a aglomeração se formando na calçada , pessoas apressadas para viver , com horário de almoço curto demais . Aposto que matariam por uma banheira gelada agora , por um copo de vinho . Mas a realidade delas é outra . A realidade nunca é boa o suficiente . E dentre essas pessoas , olhando para o relógio no pulso , segurando uma pasta de couro e paletozinho azul num calor de 35 graus esta quem espero . O sinal abre e ela se apressa para atravessar correndo sem sair do lugar dando pulinhos como uma gueixa . Quando passa pela janela procura por alguém . Ela não sabe com quem encontrara , quando atravessa a porta e o sininho sobre ela anuncia sua chegada , os dois sujeitos sentados no balcão dividindo uma garrafa de coca cola se viram . Uma mulher jovem , loura , na casa dos trinta , avança na direção dos homens com a pasta debaixo do braço direito . Parece confusa , para ao lado dos dois . Ouço ela dizer :
- O que vocês querem ?
Os dois camaradas de barba por fazer e boné na cabeça tem os braços sujos de graxa , calças largas igualmente sujas . Um deles , o que está mais próximo a olha , a mede dos pés a cabeça e diz , depois de lamber os beiços :
- Você é que manda , dona …
A evolução nos levou de volta ao estado primitivo das conquistas .
O homem que estava mudo sodomizava a mulher com os olhos , os cotovelos apoiados na mesa com a garrafa de refrigerante entre as mãos , alisando a como o corpo de uma mulher . ELE se levantou , a moça se afastou .
- Porque o medo , dona ?
- O que vocês querem comigo ?
Ela disse em voz baixa , alta o suficiente para eu ouvir . Quando o segundo homem se levantou , chamei :
- Marcela !
Mantive a mão levantada , ela se virou , os dois homens se viraram . A mulher tornou a fitar os homens .
- Desculpe , foi engano ..
Veio até mim constrangida , os homens se sentaram, um deles piscou para mim num sinal de boa sorte . Acreditava que eu era um cara sortudo com uma mulher dessas . Marcela se sentou antes de me cumprimentar , seu perfume mascarava o fedor do lugar , pousou a pasta na mesa e a escorregou para mim , notei que estava pálida , os olhos e nariz vermelho .
- O dinheiro está aqui .
Ela disse baixinho .
Recolhi a pasta e a coloquei ao lado da minha cadeira .
- O que você quer ? Porque está fazendo isso comigo ?
Ela perguntou .
- Não parece estar se sentindo bem , Marcela .
Falei .
- Não vem me fazendo essas ligações preocupado coma minha saúde . O que você quer ?
- Você não é muito pontual , não é mesmo ? Estou sentado nessa espelunca enchendo meus pulmões com esse fedor de merda azeda já faz vinte minutos .
- Não é fácil conseguir toda essa grana .
- Pensei que trabalhasse num banco .
- Trabalho num banco , isso não quer dizer que sou dona dele .
- Gosta ?
- Gosto de que ? Do que estamos falando ? Quem é você ?
- Perguntei se gosta de trabalhar no banco , Marcela .
Marcela olhou para os caras no balcão , estavam prestando atenção na nossa conversa .
- Não se preocupe com eles .
Marcela fechou os punhos na mesa e se curvou sobre ela , próxima da minha orelha disse :
- Eu sei quem você é . Não pode me foder , seu merda . Me deixe em paz ou eu te fodo …
- Duvido mesmo que saiba quem sou . Se soubesse , estaria se cagando . Pelo menos é o que fazem , o que a maioria faz .
- E se eu já liguei para a polícia ?
- Você não fez isso . Não fez , porque acha que me importo com aquele seu pequeno acidente de trânsito , quando fugiu e deixou aquele cara na beirada da estrada todo quebrado e inconsciente . Não ligou porque pensa que eu sou ele, que eu posso querer grana para continuar de bico calado, que eu posso ser o cara que você quase matou, porém, eu não sou, esse cara está numa cadeira de rodas agora , invalido do pescoço para baixo .
Marcela se afastou , parecia em choque , os olhos vermelhos doentes me fitaram , me encararam cheia de dúvidas .
- Como sabe do acidente ? Não tinha ninguém lá …
- Sandra , ela me disse exatamente isso , que você sempre agia como se ela não fosse nada . Só um apoio para seus momentos ruins . Um estepe para os dias que não tinha ninguém melhor para sair . E justo nesse dia ela era esse apoio , você não tinha ninguém e a levou junto com você .
Marcela desequilibrou , dei a volta na mesa , ela não chegou a cair , mas seu corpo estava mole .
- Está se sentindo bem , Marcela ?
Ela se desvencilhou das minhas mãos , tentou se colocar de pé .
- Seu merda , me deixe em paz !
Já não se importava que a ouvissem , gritou para que eu a soltasse , me afastei , tornei a sentar na minha cadeira . Os dois homens sujos de graxa deixaram algum dinheiro no balcão.
- Onde esta esse garçom ?
Perguntou um deles .
- Vamos logo sair daqui , cara , essa cena está acabando com minha onda .
Esperei que saíssem para continuar .
- Marcela , sinto muito , mas sua amiga , ela morreu está manha .
Marcela deixou escapar algumas lágrimas , estava assustada .
- O que está fazendo ?
- Eu não consigo entender as pessoas , mas não sou pago para isso , Marcela . Sandra me ligou a alguns dias , disse que você tinha acabado com a vida dela , me disse que desde o acidente não conseguia mais dormir direito . No meu trabalho , as pessoas pensam que eu me importo com suas historias . Ela me disse que não tinha dinheiro , mas que você poderia conseguir algum , que poderia pagar por sua própria morte . Ela me disse que , se você achasse que eu era o cara que você atropelou aquela noite , e lhe pedisse a grana , traria para calar minha boca.
Marcela tentou secar as lágrimas . Apanhei um pouco do guardanapo de papel sobre a mesa e lhe enxuguei os olhos .
- E se tentar se lembrar agora , sei que é difícil , muitas informações para assimilar de uma só vez , mas tente se esforçar e vai se lembrar que em nenhum momento nas ligações disse nada a respeito do acidente . Tudo que falei foi : eu sei o que você fez . Depois de algumas ligações , foi você quem propôs a grana e sugeriu o local . Mas Sandra sabia que iria escolher o café do seu pai . Você sentia se culpada . No fundo , sentia culpa .
Marcela fechou os olhos , demorou para abri los , com se estivesse com sono .
- Esse plano não foi meu . Eu não trabalho assim , mas Sandra parecia mesmo precisar de ajuda . Na verdade , foi tudo ela , desde o começo , ela deu a ideia das ligações . Tudo que fiz foi colocar Ricina no seu café essa manha . Uma dica : mude seus hábitos de tempo em tempo . Embora aquela padaria onde toma seu café todas as manhas pareça limpa e tenha um bom croissant , pessoas são pegas por seus hábitos .
Marcela estava deitada na mesa com seus olhos e nariz vermelhos .
- Isso que você está sentindo , são os efeitos da ricina . Não é nenhuma gripe .
Eu lhe contei nos seus ouvidos :
- Sandra estava se sentindo muito mal , como lhe falei , então pediu uma morte rápida para ela. Se isso te ajudar , você está pagando pela morte das duas . Usei a outra parte da ricina com ela , não sei se foi rápido como queria , mas se ajudar , saiba que tudo que está sentindo ela sentiu antes ...
- Paa...
Murmurou Marcela .
- Sandra me pediu mais uma coisa . Seu pai . Ela queria que você sentisse culpa , que se sentisse tão mal quando ela se sentiu todos esses meses . Então seu pai esta deitado na cozinha . Seu pai , porque ele nunca limpou esse lugar ? Bom , isso não me importa .
Caminhei até a porta , passei a chave , fechei as cortinas , acendi as luzes . Do outro lado da janela , do vidro e da cortina , o som dos carros e o calor de 35 graus continuava .
Me sentei numa cadeira no balcão e esperei Marcela dar seus últimos suspiros enquanto lamentava e chamava pelo pai morto na cozinha .
Esperar , uma hora você aprende a dominar seus demônios , aprende a não pensar muito , ignora o certo e errado . Não são meus motivos . Só presto serviço publico , uma espécie de serviço publico . É como limpar fossa , retirar o lixo .Porem , algumas vezes minhas atitudes me levam a crer que me assemelho a um palhaço que alegra a festa infantil . Não sou o confeiteiro que dá o doce nem os balões de festa coloridos . Sou aquela coisa assustadora de nariz vermelho que ninguém sabe quem esta por baixo de toda aquela fantasia . E as histórias que contam sobre El Matador, algumas podem ser exageradas , porém é como dizem : falem mal ou falem bem , falem de mim .
14/04/2016
16H10M