Desbancou a relação

Gilberto chegou ao banco esbaforido. Um cheque de R$ 2,5 mil não tinha entrado na conta. Faltou identificação do beneficiário. Na maquininha digital, logo após a porta de vidro que separa os caixas eletrônicos do restante da agência, pegou a senha de número 103. Ouviu o chamado da 90 antes de acomodar-se na terceira cadeira da segunda fileira de confortáveis assentos avermelhados. Pensou na hora de voltar ao trabalho o mais rápido possível. O tempo corre rápido.

De repente entra no recinto uma mulata alta, magra, de camiseta preta bordada nas alças e minúsculo short amarelo - desses modernosos, que parecem saia quando vistos de frente. Apreciava através dos estratégicos óculos escuros. O distraiu por alguns instantes. Mesmo o forte ar condicionado não impediu que suasse a testa, reação orgânica característica para refletir a ansiedade. Quando finalmente chegou a vez explicou o caso ao caixa, um simpático rapaz identificado como Everaldo Modesto no crachá.

O bancário ergueu a sobrancelha esquerda e, quando se preparava para roer as unhas, teve o pensamento interrompido por Laiz, e estonteante morena sentada ao lado. Ela indicou o caminho a ser trilhado. Ambos precisavam, contudo, do gerente Teobaldo Américo. O chefe havia saído para almoçar. O identificaram como um homem baixo, calvo, vestido com uma camisa azul listrada de mangas compridas e mochila nas costas. "Ele saiu na mesma hora que o senhor chegou", informou Everaldo.

Foi o homem que tropeçou no pé de Gilberto na porta da agência. "E eu ainda o xinguei de tudo que foi nome", pensou, ao lembrar da reação. Com a previsão de uma hora para o retorno de quem poderia salvá-lo, resolveu esquecer o calor e dar uma volta no quarteirão. Tomou um sunday de morango ao salgado preço de R$ 3,50. Andou quase um quilômetro. Reparou intensa movimentação de carros de polícia. Deu de ombros. Pareceu um alvoroço qualquer, sem sentido, para chamar a atenção e dar a falsa sensação de agilidade.

Retornou antes do previsto. Sentou novamente em uma cadeirinha vermelha, desta vez próxima ao banheiro. Surpreendentemente ouviu um som familiar vindo da direção do sanitário masculino. "Claro que sim. Não tem como esperar. E vai ser hoje", dizia a voz que, segundos depois, Gilberto reconheceu pertencer a um jovem rapaz, barbicha rala, alargadores nas duas orelhas e com o livro "A obstrução programada da Via Láctea" nas mãos. Quase no mesmo instante, recebe um SMS de Teresa, amiga que insiste em dar em cima dele.

Tinha o link www.rondapolicialregional36h.net/noticiasdodia/corpoencontradoemvalao

Clicou e leu logo no primeiro parágrafo: "A moça de 17 anos, desaparecida há uma semana, está mesmo morta. O suspeito de ter cometido o crime é um estudante de astronomia..." Lembrou de não ter visto Amanda, a namorada do vizinho esquisitão, nos últimos dias. Gelou a espinha. Ele parou ao lado de Gilberto, abaixou-se, e balbuciou baixinho, em tom afetadíssimo: "Vou para Londres, fofinho".

Álvaro Marcos Teles
Enviado por Álvaro Marcos Teles em 23/05/2016
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