A PROFESSORA

Francisca era professora do ensino médio em um colégio da periferia da cidade. Lecionava há treze anos e o fazia com amor, pois, como dizia, sentia-se uma mãe de muitos filhos. Na sala de aula esquecia os problemas de casa e voltava-se exclusivamente para as disciplinas que iriam orientar os jovens para a vida profissional. Sabia que uma boa aula daria bons resultados na hora da avaliação dos alunos e nada melhor que uma aprovação no ENEM, que era o objetivo de todos.

- Bom dia, Tia Nega!

Ela olhou para o aluno, que a cumprimentara. Um garoto louro, cabelos rebeldes caídos sobre a testa, rosto cheio de sardas, olhos azuis e um sorriso gracioso. Acompanhava aquele jovem desde quando lecionara no ensino fundamental. Como em toda cidade pequena, conhecia seu pai, um comerciante de miudezas vindo do interior, pouca instrução. Era do tipo conhecido como casca dura.

- Bom dia, Jorge! Como estão seus pais?

- Do mesmo jeito, Tia. Quando um não briga, o outro começa. Já se levantam um reclamando do outro - respondeu o jovem com um ar de tristeza.

- Não interfira, meu filho. Não interfira. Deixe que eles se entendam. - Foi o conselho da mestra.

Era sempre assim. Procurava ser amiga de todos, inclusive das famílias, e muitas vezes era chamada para apaziguar o relacionamento dos pais com os filhos. Essa participação estava tão rotineira que muitas vezes era procurada pelos alunos que lhe pediam: “Tia, tá na hora da senhora dar um sermão na mamãe!”.

Solteira, morava sozinha numa pequena casa a poucas quadras do colégio. Quando jovem, os pais morando no interior, procurara a cidade para estudar. Vivendo em casa de estranhos, tinha pouco tempo para pensar noutra coisa que não fosse o estudo à noite, pois durante o dia cuidava da casa. Quando terminou o ensino médio, mudou de cidade para fazer o vestibular. A rotina continuou a mesma: estudando à noite e cuidando dos afazeres de casa durante o dia até terminar o curso superior. Naquela época não havia a exigência de concurso público, (aqui passa impressão que foi há muito tempo, a época dos empregos sem concurso e ela só leciona há treze anos. Mas no início do conto vc citou o ENEM, que é coisa recente e meio distante do contexto em que não se exigia concurso) através de amizades conseguiu uma vaga para lecionar no colégio onde permanecia até agora. Desta forma, não teve oportunidade de pensar em casamento, mesmo porque não saía de casa, a não ser para a faculdade, quando estudante, e depois, de casa para o colégio.

A campainha tocou e os alunos que estavam na quadra jogando futebol correram para as salas de aula. Francisca, de caderneta em punho, entrou, sendo recepcionada por um forte “bom dia!”. Era querida pela turma, pois sabia conduzi-la sem agressividade e dialogava com sabedoria nas horas dos problemas. A turma não era difícil de se lidar, pois todos eram amigos, embora existissem uns dois que de vez em quando procuravam quebrar a paz do ambiente.

- Hoje o nosso assunto não está nos livros. Vamos falar dele porque ele está no nosso meio e temos que conviver da melhor maneira possível. E para se ter uma boa convivência é preciso que conheçamos o assunto. Eu sei que há uma celeuma muito grande em relação à discussão desse tema nas salas de aula, mas nós estamos aqui para aprendermos a conviver com o que nos cerca. A sala de aula não existe somente para o ensino da matemática, do português e das outras matérias estabelecidas pelo Ministério da Educação. É sabido que a responsabilidade da formação da criança para a vida é da família, mas cabe à escola a complementação desse ensino.

A sala estava em completo silêncio. Os alunos gostavam de ouvir a mestra, pois ela costumava tratar de assuntos que lhes interessavam. No entanto, na última vez que falara fora do texto, como diziam, tivera uma dor de cabeça tremenda, porque alguns pais foram reclamar com a direção do colégio. Ela tinha mostrado para os alunos que não deviam seguir orientação dos pais na hora de escolher seus representantes. Fora uma aula de civismo, mas o costume do voto familiar provocara um burburinho na cidade.

- Vocês viram que o ser humano divide-se em dois sexos: masculino e feminino, certo?

- Certo, tia - responderam todos em uníssono.

- Até pouco tempo vocês sabiam que o homem casa com a mulher e vice versa, não?

A resposta afirmativa, em tom forte e confiante, fez-se ouvir na sala. Mesmo com a resposta em quase tom de grito, não havia balbúrdia. A turma parecia hipnotizada, fitando a professora com uma ânsia de novidade. O início da palestra despertara ainda mais a curiosidade de todos.

- Hoje não é mais assim - continuou. Vários países, como também o Brasil, já aderiram a essa forma de união entre pessoas do mesmo sexo. Visa garantir aos homossexuais que vivem em união estável a igualdade de direitos, a possibilidade de constituírem família com a proteção da lei. Vocês sabem o que é união estável?

Houve um momento de silêncio na sala. Era um olhando para o outro, como se perguntassem com os olhos, aguardando uma resposta. Ela viu que havia o interesse na resposta, mas deu tempo para que raciocinassem.

- É um casal viver sem briga? - indagou um aluno no fundo da sala.

- Não é bem assim, Roberto, muito embora a ausência de briga já demonstre uma união entre as pessoas que convivem juntas.

Após certo silêncio, ela continuou:

- Vejo que este assunto, embora seja do interesse de vocês, não é pesquisado. Antes de continuar, quero chamar a atenção de vocês para um ponto de extrema importância. Aliás, quero repetir, pois não é a primeira vez que toco neste assunto. Vocês são alunos do ensino médio, estão se preparando para o ENEM, e precisam de muito conhecimento na hora da redação. Conhecimento só se obtém com muita leitura, principalmente do que está acontecendo no mundo, no momento atual. As notícias do dia a dia são sempre cobradas nas provas do ENEM e isso não cabe somente ao mestre mostrar para vocês. Procurem ouvir os noticiários, ler jornais e revistas. Vocês gostam muito de internet, pois ela é uma fonte de informações infindável. É necessário apenas que saibam separar o joio do trigo.

Mesmo com o tom de reprimenda, a turma continuava atenta. No meio da sala, uma garota miúda, de óculos e cabelos em desalinho movimentava-se na cadeira de modo desconfortável. A professora observou.

- Algum problema, Marisa?

Vendo que todos dirigiam os olhares para ela, a jovem, envergonhada, baixou a cabeça. O silêncio demonstrava que todos esperavam uma resposta. Esfregando as mãos sob o queixo, ela falou indecisa:

- Tia, meu irmão está com um problema por causa da união estável...

Antes que continuasse, a turma caiu na gargalhada, que foi logo interrompida pela professora que conhecia a situação do irmão de Marisa. Sem entrar em detalhes, explicou para a turma que a declaração de união estável servia para resolver situações jurídicas, principalmente para a proteção de mulheres que tiveram filhos sem o casamento e desejavam a proteção do Estado, principalmente no que diz respeito a bens.

A aula continuou com o tema união estável e o casamento de homossexuais. Em seguida a turma saiu da sala com ar de quem estava interessada em pesquisar o assunto com mais profundidade.

Dois dias depois, ao abrir a gaveta da mesa da sala de aula, a professora encontrou uma folha de papel dobrada, com os dizeres:

NÃO ENCHA A CABEÇA DOS ALUNOS COM ASSUNTO QUE NÃO INTERESSAM. NÃO VOU AVISAR OUTRA VEZ.

No final da aula, procurou a diretora e mostrou a ameaça. Pensaram em chamar a polícia, mas desistiram porque poderia causar um grande transtorno, pois os pais poderiam deixar de mandar os filhos para o colégio, com medo. Após conversarem bastante, ficou decidido que o colégio iria colocar câmeras nas salas, para o caso de novas ameaças, e a professora passaria uns dias sem abordar esse tema.

Tudo corria calmamente até que nova aula foi ministrada sobre a homossexualidade. Tudo muito bem aceito pelos alunos; pareceu que nada aconteceria de anormal no colégio. Só que no dia seguinte, outra ameaça estava dentro da gaveta:

NÃO DIGA QUE NÃO FOI AVISADA.

Foram direto ao servidor e nada encontraram. A câmera estava desligada. Havia gravação de todas as outras, menos daquela sala.

Quando o técnico examinou as instalações, afirmou que a câmera havia sido desligada no dvr stand alone. Aquela informação causou surpresa para a diretora, pois ela garantira que a chave da sala do servidor estava com ela e em nenhum momento entregara para qualquer pessoa. A cópia da chave ficava guardada em lugar seguro em sua casa.

Após o reparo, diariamente a diretora examinava as imagens e todas as câmeras continuavam funcionando normalmente. Praticamente tudo voltou ao normal no colégio. Como o fato ficara somente entre a diretora, a professora e o técnico, que nada sabia das ameaças, não houve nenhum problema com o andamento dos trabalhos.

Com a proximidade das provas do ENEM, a professora fez uma revisão da matéria dada e mais uma vez tocou no assunto da equidade de gênero, união estável e homossexualismo. Como ninguém tinha ideia de qual seria o tema da redação, era bom estar preparado para enfrentar qualquer assunto.

No dia seguinte houve reunião de Pais e Mestres e o salão ficou lotado. Aquilo causou admiração, pois quase sempre poucos atendiam à convocação do colégio. Normalmente, os professores atendem aos pais em separado, dependendo da situação de cada aluno. Os grupos vão se formando de acordo com o que consta nos avisos colocados na agenda escolar. Próximo do fim da reunião, o presidente da Associação de Pais e Mestres pediu a palavra.

- Na última reunião da associação, um associado fez uma reclamação do colégio. Após votação, ficou decidido que esse assunto seria trazido para a direção do colégio e vimos que o melhor momento seria este, já que todos os professores estão presentes.

Todos ficaram atentos, posto que o formalismo que estava sendo dado ao assunto levava a crer que se tratava de algo muito grave. Enquanto os pais aguardavam o desfecho, professores e alunos se olhavam curiosos.

- Há uma professora que está levando para sala de aula assuntos que não dizem respeito às matérias curriculares. São assuntos impróprios para crianças, como também para as famílias cristãs. Não sabemos por que a direção do estabelecimento permite que certos temas sejam mostrados, se a obrigação do professor é ensinar o que está nos livros escolares.

Antes que ele terminasse, a professora Francisca levantou-se, mas foi contida pela diretora, que a puxou pelo braço, fazendo um gesto para que se acalmasse. Baixinho, disse ao seu ouvido que aquele não era o momento para uma discussão que não levaria a nada.

Uma semana depois, numa sexta-feira feira, no início da noite, a diretora, como sempre fazia, foi de sala em sala ver como estava. No último corredor, avistou uma luz acesa e achou estranho, porque a professora sempre apagava a luz antes de sair e ela não costumava ficar na sala após a aula. Quando tinha algum trabalho para corrigir e não queria levá-lo para casa, ficava na diretoria o tempo necessário e saiam juntas.

Empurrou a porta e se deparou com a professora caída ao lado da mesa. Sem saber o que fazer, ligou para o hospital pedindo uma ambulância e para a polícia.

Primeiro chegou a ambulância, mas o enfermeiro disse que só poderia removê-la após a chegada da polícia. (Isso é de praxe mesmo? O socorro médico só prestar socorro ou remover depois de a polícia comparecer? Não entendo mesmo como isso funciona, por isso questionei. Aí veja direitinho p não ter inconsistência) A diretora fez nova ligação, desta vez chorando, e pediu que viessem correndo, pois a professora teria que ser levada para o hospital com urgência.

Quando o delegado chegou, já havia uma multidão do lado de fora. Todos queriam saber o que estava ocorrendo. Os policiais afastaram os curiosos e entraram na sala. Com cuidado, colocaram a professora na maca e o enfermeiro disse que ela estava somente desmaiada. Havia um imenso hematoma na cabeça. Fora atacada por trás.

Logo a cidade toda ficou sabendo que a professora Francisca havia sido atacada dentro do colégio. O intrigante é que nada havia sido levado.

No dia seguinte, sábado, o delegado voltou ao colégio com a diretora para ver as imagens da sala. Seria a única forma de conseguir uma pista do agressor. Quando voltaram a data para ver o que havia sido gravado, o que viram foi a tela do monitor escurecer de repente e nenhuma imagem aparecendo.

- Não é possível! - disse a diretora. Esse equipamento foi revisado na semana passada, quinta feira eu olhei todas as câmeras e estavam funcionando perfeitamente. O senhor pode ver que ela gravou o dia todo e só apagou na hora do ataque...

- Quem tem acesso à sala do servidor? - perguntou o delegado.

- Somente eu tenho a chave. Somente eu entro aqui e quando eu chamo o técnico, permaneço na sala com ele até o final do serviço.

Naquela noite, diretora e delegado não dormiram. Cada um procurava montar um quebra cabeça, tentando uma solução para o caso.

Pela manhã, a diretora esteve na delegacia e prestou esclarecimentos ao delegado, respondendo diversas perguntas, que foram criteriosamente anotadas. Foram chamando todos os professores e servidores do colégio e quase todos diziam que não sabiam de nada, não desconfiavam de ninguém e que não entravam na sala do servidor. O zelador disse que o local era limpo a cada quinze dias sob a supervisão da diretora.

De posse de um mandado judicial, o delegado foi com dois policiais revistar a loja de informática que prestava serviços para o colégio. O rapaz ficou surpreso com a chegada da polícia. Já havia prestado depoimento e julgava que não seria mais procurado. Mesmo assim, deixou-os à vontade para que revistassem todo o estabelecimento. Primeiro reviraram as gavetas, depois as prateleiras, sem nada encontrar, mas não se davam por satisfeitos.

- O que vocês estão procurando - indagou o técnico. Talvez eu possa ajudar, se souber do que se trata.

Os policiais continuaram a busca, sem nada dizer. Como nada encontraram, resolveram sair. Foi quando um policial disse que queria ir ao banheiro.

- É logo ali, por trás desse armário - informou o proprietário.

Após alguns minutos, ouviu-se o som da descarga e logo em seguida um grito:

- Doutor, achei!

O delegado correu para o interior do banheiro e viu por trás da porta um porta-chaves com vários chaveiros pendurados. Saiu com eles na mão e foi perguntando de onde eram. O técnico ia mostrando as portas e gavetas que elas abriam.

- Estas são lá de casa - disse enquanto pegava um molho de chaves. Por fim, olhou para um chaveiro que o delegado lhe entregara e ficou calado. Depois de alguns segundos, continuou: - Esta chaves não são minhas!

- Como não são suas? - indagou o policial.

- Não são minhas - repetiu o técnico. - Não conheço estas chaves e não sei o que elas estão fazendo aqui.

Saíram levando o técnico direto para o colégio. A diretora já estava esperando por eles, após ser avisada que estavam indo para lá. Como o delegado suspeitava, a chave abriu a porta da sala do servidor.

- Não pode ser - disse a diretora. - Eu estou com a chave da sala, olhe aqui. - Disse, mostrando as chaves do colégio.

O delegado recebeu o molho de chaves que a diretora lhe apresentava e testou a chave indicada por ela. Era exatamente igual à chave encontrada na loja do técnico de informática.

- Como você conseguiu uma cópia dessa chave, se eu não me separei dela por um só instante quando você esteve aqui - perguntou a diretora ao técnico.

- Eu não sabia da existência dessa chave até há poucos instantes - disse o rapaz, com ar de desespero. - Eu sou um homem honesto, doutor. Vivo do meu trabalho. Para que eu iria querer a chave de uma sala do colégio. Alguém fez isso para me comprometer.

- Quem poderia ter feito isso? - indagou, o delegado.

- Não sei... Não tenho a menor ideia.

De volta à delegacia, o técnico ficou detido para averiguações. Algo estranho estava acontecendo, pois não havia uma justificativa plausível que levasse a crer que o técnico tivesse um motivo para atacar a professora. Era uma pessoa, até então, sem nenhuma passagem pela polícia e o seu conceito na cidade era de um jovem trabalhador e querido por todos. Inclusive pela mestra.

Se fosse um caso que se vê nos filmes americanos, seria feita uma perícia nas chaves. As digitais colhidas seriam comparadas e logo vários nomes seriam investigados, mas essa tecnologia não existia na pequena cidade. Além disso, as chaves já haviam passado por tantas mãos que haveria uma confusão de impressões que não levaria a ninguém.

 Vamos reconstituir os últimos dias anteriores à primeira mensagem e ver quem passou por sua loja. Não deve ser difícil, pois o movimento não é grande - disse o delegado.

 Mas eu não sei nada de mensagem! Que mensagens são essas que o senhor está falando – perguntou o técnico.

- Pelo que sei, a primeira mensagem apareceu há mais de um mês – disse o delegado.

- Na minha loja vem clientes todo dia, mas não são muitos. Além dos clientes, recebo amigos que vêm me ver e conversar.

- Não importa. Tente se lembrar de quem esteve na loja, clientes ou não.

Após um longo silêncio, o técnico falou:

- Nesse período quem esteve aqui, em primeiro lugar, foi o zelador do colégio que veio me dizer que a diretora queria falar comigo. Foi quando eu fiz o orçamento para a instalação das câmeras. Ele veio outra vez, quando fui examinar as câmeras e uma delas estava desligada. Vieram outras pessoas, clientes trazendo computadores para conserto, mas não vejo o que isso tenha a ver com essas chaves.

- Deixe que as conclusão ficam por minha conta. Lembra-se do nome deles?

- Posso até dizer o nome de cada um, pois são clientes costumeiros: o Zé da farmácia; o João Pirata, aquele que tem uma loja de venda de CD e DVD piratas; o Pedim, da banda Mamão com Queijo; o Raimundão, que faz as caixas de som para carro e paredão... Que eu me lembre, foram eles que estiveram na loja nos últimos trinta e quarenta dias.

O delegado analisou os nomes, silenciosamente. Depois perguntou:

- Tente se lembrar se não apareceu alguém que não tenha o costume de utilizar os seus serviços.

Houve um silêncio que foi quebrado pelo técnico, surpreso.

- Veio o seu Manuca, o dono da mercearia que fica perto da Câmara Municipal! Ah, e o Fio do Padre, o sacristão...

- Sei quem é ele. O que ele queria?

- Pedir para consertar o som da igreja. Por sinal, o padre nem me pagou ainda.

- E o seu Manuca?

- Perguntou se eu sabia onde morava o Crispim, um rapaz que trabalhou comigo por uns tempos, mas tive que despedi-lo, porque não queria trabalhar.

- E o que foi que você disse?

- Dei o endereço e perguntei se ele precisava de algum serviço, pois eu poderia atender, mas ele disse que queria falar com ele. Só foi isso e saiu sem agradecer.

Naquele mesmo dia, o delegado mandou os soldados disponíveis saírem à procura de Crispim. Em casa ou onde fosse encontrado, a ordem era trazê-lo para a delegacia.

Crispim não estava em casa, nem a família soube dizer o seu paradeiro. Os policiais, percorrendo os lugares que ele costumava frequentar, descobriram que ele tinha ido para o interior, para a casa de uma tia. No dia seguinte, de posse de uma ordem de prisão, os policiais foram buscar o suspeito.

Os policiais voltaram à noite com o preso e o delegado estava à espera. Após muita pressão, Crispim dizendo que nada sabia, acabou por dizer que fora procurado pelo comerciante em duas oportunidades para desligar a câmera da sala da professora Francisca. Disse que pelo trabalho recebera mil e duzentos reais.

- E pela agressão à professora? - perguntou o delegado.

Crispim arregalou os olhos. Sua surpresa parecia sincera.

- Eu não agredi ninguém, doutor! Eu sabia que o que eu estava fazendo, ao desligar as câmeras, não era certo, mas por mil e duzentos... - disse o prisioneiro.

- Não adianta mentir, pois vamos acabar descobrindo tudo. Para que o seu Manuca queria a câmera desligada?

- Não sei, nem perguntei. Naquela hora o que me interessava era receber o dinheiro e ele me pagou adiantado - respondeu nervoso, se contorcendo na cadeira. Estava tendo ideia da enrascada em que se metera.

- E como conseguiu entrar na sala do servidor?

- Ele disse que eu teria que procurar o vigia noturno, depois das onze da noite. Foi o que eu fiz. Quando eu cheguei, ele estava me esperando. Abriu a porta e eu só desliguei. Foi rápido. Muito fácil. - Fez um breve silencio e continuou: - Confesso que eu estava nervoso... Estava com medo.

- Como se chama o vigia?

- Não sei o nome dele. Foi a primeira vez que eu vi ele... Não sei quem é.

- E na segunda vez, não sabia que o que estava fazendo era errado, que poderia se complicar? - insistiu o delegado.

- Que era errado, eu sabia, no entanto como nada acontecera na primeira vez, fui mais calmo. Tudo deu certo como antes.

Quando o delegado procurou a diretora para perguntar qual vigia estava de serviço nos dias em que as câmeras foram desligadas, teve mais uma surpresa. Olharam as fichas de frequência e viu que o vigia havia entrado de licença médica dois dias após a agressão à professora.

Mais uma vez a polícia teve que descobrir o paradeiro do suspeito. As investigações estavam sendo feitas em sigilo para que o comerciante não soubesse que o seu nome já estava nos registros da polícia. O delegado queria saber de todos os detalhes e ter em mãos os participantes dos delitos, para que pudesse ir até o cabeça já com provas suficientes para prendê-lo.

Uma semana depois, com a professora restabelecida e de volta à sala de aula, o vigia foi levado preso à delegacia. Foi bastante sucinto no seu depoimento, pois sabia que não tinha como fugir da responsabilidade. Disse que fora procurado pelo comerciante para que ele tirasse uma cópia da chave da sala do servidor, porque queria dar um susto na professora. Que conseguira tirar a chave do chaveiro da diretora no dia em que ela estava numa reunião com os professores. Rapidamente tirou uma cópia e recolocou a chave no lugar sem ser notado.

- Mas como as chaves, pois não era uma só, foram parar na loja do técnico de informática? - Quis saber o delegado, confuso.

- Não sei - respondeu o vigia. Depois que o Crispim esteve aqui na segunda vez, procurei o seu Manuca e lhe entreguei a chave. Disse que não queria mais me meter naquela história. Só depois é que eu soube que a professora Francisca tinha sido agredida.

- Cabo, traz o homem! - gritou o delegado para o policial que estava lá fora.

Quando o comerciante chegou à delegacia acompanhado dos policiais, a rua já estava repleta de curiosos. O delegado o recebeu com a cara fechada, mostrando que já sabia de tudo e não adiantaria querer esconder.

- Já sabemos de tudo. Quem participou, quanto o senhor pagou, mas eu quero que me responda a duas perguntas: por que a agressão à professora e por que incriminar o técnico?

O comerciante parecia uma fera encurralada. Encarava o delegado como se quisesse esganá-lo.

- Por culpa dela eu tenho um filho veado! Ela fica metendo coisas na cabeça das crianças, só porque nunca conseguiu se casar e ter filhos. Se ela tivesse um filho bicha ela ia saber o que é sair na rua e ouvir os homens com piadinhas.

- Tenha calma - disse o delegado. Não precisa gritar, pois não sou surdo. Se o senhor tem um filho homossexual, não é culpa da professora. Ela só estava cumprindo a obrigação dela na sala de aula.

- A obrigação do professor é ensinar a ler, escrever e tirar conta. O resto a vida ensina. Eu não vou mandar filho para a escola pra professor ficar dizendo que homem pode casar com homem e mulher com mulher.

- Isso não vem ao caso. Quem agrediu a professora, foi o vigia?

- Aquilo é um bunda mole! Ofereci mil reais para ele e ele disse que não podia fazer isso. Se borrou todo. Eu mesmo tive que fazer o serviço. Só me arrependo dde não ter batido com mais força - disse, esbravejando.

- E por que acusar o técnico?

- Aquele é outra bicha safada! Tirei uma cópia da chave que o vigia me deu, juntei com outras, e deixei na mesa da oficina sem que ele visse.

Por ser réu primário, o comerciante foi liberado para responder em liberdade, enquanto o delegado ia dar continuidade ao Inquérito Policial.