Érico Van Guarde - Contos do detetive Furtado

O delegado Tarso Junqueira estava furioso. Não conseguia acreditar que Furtado abandonara os casos do Antiquário sem nem ao menos dar uma explicação. Não conseguia nem contatar seu subordinado, que se recusava a atender suas ligações.

- Mas que diabos deu no Furtado? – Esbraveja o homem após mais uma frustrada tentativa de ligação.

Furtado decide desconectar o plugue do telefone após mais uma ligação de seu chefe. Ele está bebendo uísque no escuro do seu apartamento, quando alguém bate na porta. O detetive reúne forças para se levantar e vai até o olho mágico resmungando baixinho. Ele se surpreende em ver que era Célia quem estava do outro lado. Ele abre a porta e dá de cara com uma versão furiosa da mulher, versão esta nunca vista por ele antes.

- O que foi que aconteceu, Furtado? Seu chefe ligou para mim tentando te localizar e dizendo que você não aparece na central faz três dias.

- Estou tirando o meu ano sabático.

- Sem gracinhas, por favor. Não vai me convidar para entrar?

- Claro, claro.

E abre espaço para que Célia adentrasse ao apartamento. Ele retira seu casaco e o acomoda em um armário próximo a porta.

- Por que você deixou os casos do Antiquário?

- Eu tenho meus motivos.

- Me conte. Talvez eu possa convencê-lo a voltar a investigar.

- Não posso, Célia. Me desculpe.

Célia franziu o cenho. Não conseguia compreender o que se passava com o detetive. Ela se aproximou dele e tocou-lhe a face. Esse gesto de ternura foi acompanhado pela seguinte frase:

- Seja o que for que o impede, não é maior do que fazer o que é certo. E o certo, é desvendar esses crimes e fazer justiça. Não deixe que nada o faça esquecer o que é certo.

O detetive, mesmo sabendo que Célia não veria, deu um sorriso sedutor. Ofereceu-lhe um pouco do seu drink e convidou-a a se sentar. Decidira que voltaria a investigar. Fora convencido pelas palavras de Célia. Mas antes, teria de garantir que ela ficaria em segurança. Sugeriu a ela que viajasse. Fosse visitar a mãe, que já estava bem idosa e doente. Ela achou que seria uma boa ideia e Furtado ofereceu-se para pagar a passagem. Célia não desconfiara em nenhum momento que a viajem repentina tinha ligação com a investigação dos assassinatos. Que o real motivo da viajem era a de afastá-la dos perigos que a cercavam.

- Eu vou agora mesmo para a central, Célia. Mas eu quero que você fique aqui. Quando eu voltar, já estarei com a passagem para você ir visitar sua mãe. Você pode fazer isso?

- Mas é claro. Pode ir, eu espero aqui.

O detetive partiu em seu carro e não demorou muito para chegar em seu trabalho. Ele morava perto da central, por isso nunca se atrasara. Não era de se estranhar que perceberam logo sua ausência nestes três últimos dias. Quando entrou no prédio, os comentários foram gerais, e logo chegaram aos ouvidos de Tarso Junqueira, que tratou logo de chamar Furtado em seu gabinete.

- Furtado! A que devo a honra de sua presença?

- Eu peço perdão, delegado. Minha ausência não pode ser justificada, mas estou de volta para as investigações.

- E o que te faz pensar que o caso ainda é seu?

- O senhor se esqueceu que o Antiquário se comunica comigo e exclusivamente comigo através dos envelopes com DVD’s? Ele quer algo de mim, então é preciso que eu investigue o caso.

- Você teve sorte que ninguém quis pegar o caso. Seja bem-vindo de volta, Furtado.

De volta a sua mesa, Furtado tratou de pegar as pilhas de arquivos dos três casos. Algo ele havia deixado passar. E o fato de o Antiquário ameaçar matar Célia, dizia que o serial killer também o conhecia. Alguém os vira juntos, e agora atentava sobre a vida de Furtado através de uma pessoa querida a ele. Desde o começo desconfiava das correspondências a ele, mas imaginava que se dava ao fato de ser ele o investigador. Agora percebia que era algo pessoal.

Voltando a pensar sobre a Universidade Van Guarde e o clube de leitura, havia a forte suspeita sobre o professor que liderava o clube. Era o único elo entre as vítimas e a única pessoa que os ligava de alguma maneira. Sem falar no assunto recorrente entre as vítimas: “revolução”. Foi então que Furtado percebeu algo: Todas as vítimas também participaram do Corpo Estudantil, responsável pelas melhorias nos cursos e representantes dos colegas de classe. Era hora de voltar a Van Guarde e investigar um pouco mais.

Na universidade, Furtado foi até a agremiação dos estudantes para descobrir um pouco mais sobre a história de cada uma das vítimas. Ele acabou que por descobrir que, todos os quatro, foram líderes em suas respectivas épocas e que todos sempre participaram de protestos contra a universidade e o seu fundador e dono, Érico Van Guarde. Por isso o assunto recorrente no clube de leitura. Todos eles eram verdadeiros revolucionários. Furtado procurou saber como entrar em contato com Érico Van Guarde, mas não teve sucesso. Ele acabou se tornando mais um suspeito.

Após a minuciosa investigação na universidade, nada que incriminasse o dono do centro de ensino foi encontrado. Porém, a relação dele com as vítimas ainda era suspeita. O detetive, dado por satisfeito, foi para casa ao final do expediente. Apenas para encontrar sua casa revirada e nem sinal de Célia pelo apartamento. No lugar dela, encontrou mais um envelope característico. O Antiquário cumpriu com sua ameaça. Dentro do envelope, outra carta redigida em computador. Nela estava dizendo que ele sequestrara Célia e que, não faria mal a ela, já que ela não estava em seus planos de atos de revolução, a não ser que o detetive continuasse suas buscas por ele. E ainda propunha um acordo de paz. Ele não faria mais nenhum ato de revolução e o detetive iria arquivar o caso como inconclusivo. Furtado achou tudo aquilo um absurdo, mas estava com mãos e pés atados. Não sabia por onde começar a procurar por Célia para tentar resgatá-la. O máximo que ele poderia fazer era, desta vez, acatar as ordens do serial killer à risca.

Porém, era notável que, após dois dias, não só Célia havia desaparecido como também o famoso Érico Van Guarde não era mais localizado. As autoridades competentes estavam preocupadas com o sumiço do empresário. Isto só crescia mais e mais as suspeitas de que Van Guarde era o Antiquário. Isso preocupava Furtado, pois a polícia investigando seu desaparecimento, poderia parecer para o assassino a tentativa de descobrir seu paradeiro.

Furtado estava desolado. Não sabia o que fazer. Tarso Junqueira quase desenvolveu uma úlcera quando o detetive sugeriu arquivar o caso. Ele dizia que não eram só questões de ordens superiores, mas também da mídia que não sairia do pé da polícia caso não pegassem o Antiquário. Claro, que no momento as atenções de todos os jornais e revistas estavam voltadas para o desaparecimento de Van Guarde. Entretanto, isto apenas os dava tempo para encontrar e prender o serial killer.

Passaram-se duas semanas e Célia fora localizada. Estava seminua em um terreno baldio, inconsciente. Sofrera uma forte concussão, mas logo se recuperara e a primeira visita que recebeu foi de Furtado. Ele regozijava-se por terem encontrado Célia, mas estava preocupado com o estado em que ela se encontrava, física e psicologicamente.

- Eu estou bem, Furtado. Foram só uns arranhões.

- Arranhões, nada. Você levou uma baita pancada na cabeça. Sem falar que foi encontrada com as roupas todas rasgadas. Se aquele monstro fez alguma coisa a você eu não respondo por mim.

- Calma, seu valentão. Ele não me violentou nem nada. Ele me torturou sim, mas nada sexual. Ele queria que eu sofresse para atingir você, como ele mesmo me disse.

- O que que esse cara tem comigo? Justo eu.

- Eu podia sentir o hálito dele quando ele chegava perto de mim, quente e azedo. Também sentia a colônia forte de homem. Ele estava sempre sozinho, nunca percebi outra pessoa por perto, nem quando me sequestrou.

- É uma pena você não poder reconhece-lo por outros modos.

- Mas a voz. Se eu ouvisse aquela voz novamente, eu saberia que é ele.

- Por enquanto, vamos tratar apenas de se recuperar, está bem?

Furtado saiu do hospital com uma raiva contida. Estava impotente diante da situação que se instaurara. Não havia muito o que fazer além de esperar os corpos se empilharem em sua mesa de trabalho. O Antiquário estava à solta fazendo suas vítimas e prejudicando pessoas de várias formas. Furtado tinha de agir. Tinha de encontrar Van Guarde.

O detetive foi até o terreno baldio em que Célia foi encontrada. Lá, poderia haver alguma pista do paradeiro do assassino ou algo que ligasse Van Guarde aos crimes. Se as suspeitas de Furtado se concretizassem, bastava fechar o cerco no empresário e manda-lo a justiça. Furtado esquadrinhou por horas o terreno sem encontrar nada. Nem sangue, nem fibra, tecido, nada. Até que encontrou marcas de pneus em uma parte isolada do terreno. E próximo as marcas, pegadas! Era a sorte grande. Furtado tratou de chamar a equipe forense e a análise preliminar da pegada dizia ser uma pegada de homem, tamanho quarenta e dois e se tratava de um calçado social. As marcas de pneu também foram analisadas. Era de pneus de um utilitário característico. Seria fácil de rastrear, haviam poucos deles.

Nosso herói estava radiante. Era agora questão de tempo para prender o suspeito de sequestrar Célia. Depois, tratar de ligar ele às outras cenas de crime e desmascarar de uma vez por todas o Antiquário.

E como esperava Furtado, um utilitário como o que a polícia estava procurando era de propriedade de Érico Van Guarde, que também calçava tamanho quarenta e dois. O problema agora era encontrar o empresário.

Furtado teve a ideia de mostrar para Célia, em sua segunda visita a ela, uma gravação antiga de Van Guarde em uma entrevista para a televisão. Quando ouviu a voz retumbante do homem saindo do televisor, Célia teve um sobressalto, boquiaberta e com o coração aos pulos.

- É ele! Esse é o homem que me sequestrou.

Não restava dúvidas para Furtado. Porém, ele não poderia agir por intuição e dizer ao restante da corporação algo que ele apenas suspeitava. Eram necessárias provas para ligar Van Guarde aos assassinatos e ao sequestro. Era necessário pegar o serial killer antes dele fazer uma nova vítima.

- Você não sabe dizer nada sobre onde foi mantida em cativeiro?

- Não. É difícil dizer qualquer coisa sobre onde eu fiquei.

- Não se preocupe. Nós vamos encontra-lo e prendê-lo.

Uma denúncia anônima informou à polícia que Van Guarde foi avistado próximo a um casarão abandonado. Furtado soube da descoberta de Érico e tratou de informar a Tarso Junqueira suas suspeitas. As provas pareciam concretas e o delegado decidiu mandar, em vez de um grupo de buscas e resgate, um batalhão para prender Van Guarde.

Chegando ao casarão abandonado, Furtado pegou o megafone e tratou de anunciar a prisão de Van Guarde. Não obteve resposta do outro lado. Ele falou novamente que o empresário estava preso e, do outro lado, apareceu uma arma pela janela. Quando a arma do século XVII foi disparada, Furtado foi alvejado no abdômen e caiu no chão. O resto do ocorrido ele só ficou sabendo dias depois, no hospital. Furtado se recuperava em um leito, que por um acaso do destino, era ao lado do de Célia na UTI. Aconteceu que depois de disparar a arma, como demoraria um tempo para carregar a arma novamente, Van Guarde tentou fugir, mas como o casarão estava cercado, ele foi preso.

Após alguns dias, todos os crimes a ele imputados foram provados, sendo que o próprio Érico confessou ser o Antiquário. Ele foi condenado a quarenta e cinco anos de prisão pelos quatro assassinatos e pelo sequestro e cárcere privado de Célia. E falando em Célia, ela saiu do hospital um pouco depois de Furtado ser internado. Este ficou um pouco mais ainda internado para se recuperar melhor para, assim que pudesse, voltar a trabalhar como o excelente detetive que ele sempre foi.

Gustavo Alves Ribeiro
Enviado por Gustavo Alves Ribeiro em 18/09/2016
Código do texto: T5765009
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