932-TRAGÉDIA NA FAMILIA MURDOQUE- 1a. parte

1ª. parte – Mortes Misteriosas

— Seu Jorge! Seu Jorge!

Jorge Damasceno acordou com o chamado. Ainda zonzo, arrastou-se até a janela e a entreabriu. Pela fresta, viu o homem que, de pé, no portão, passou a acenar-lhe freneticamente.

— Preciso sua ajuda, seu Jorge!

Só então reconheceu: era Sebastião, filho de dona Eufrosina, que morava com as duas filhas na casa defronte. Escancarou a janela, aparando a claridade do sol que lhe batia em cheio no rosto.

— Oi, Seu Sebastião, que foi?

— Preciso que me empreste umas ferramentas prá abrir a porta da casa de mamãe.

— Uai, mas porquê?

E antes que Sebastião lhe respondesse, disse:

— Me espera ai dois minutos. Vou trocar de roupa e já vou abrir o portão.

Enquanto trocava a roupa, acordando a esposa, foi desabafando:

— Eu que pensava dormir até mais tarde!

Jorge era taxista e na noite anterior, véspera de Natal, trabalhara até alta madrugada, aproveitando a demanda por corridas. Agora, o sono fora interrompido por aquela gritaria no portão.

Enfim, roupa trocada, olhos inchados de sono, foi ver o que queria Sebastião Mordoque.

— O senhor me desculpe. — foi falando Sebastião. —É que vim trazer umas coisinhas de Natal pra minha mãe e minhas irmãs, e elas não atendem a porta.

— Uai, pode ser que elas tão dormindo ainda!

— Num pode ser. Elas são madrugadoras, e já é quase nove horas. E já bati com força na porta. Nada de elas me atenderem.

— Vai ver, foram assistir a missa.

— Quando vinha, passei pela pracinha da igreja, que está fechada.

— Então?

— Peço que o senhor me ajude. Me empreste um pé de cabra ou uma barra de ferro, prá arrombar a porta.

— Vamos lá ver.

Foram os dois. Para desencargo de consciência, Sebastião ainda bateu forte na porta e até na janela da casa que dava para o pequeno jardim abandonado.

Silêncio. Ninguém atendeu.

Jorge, que por força da profissão, tinha habilidades não imaginadas, examinou a fechadura da porta.

— Não precisa arrombar. Essa fechadura é das antigas, é fácil de tirar. Vou buscar uma chave de fenda.

Sebastião pegou a cesta com alguns embrulhos de papel com motivos natalinos e a levou para seu carro, estacionado defronte a casa. Eram presentes: panetones, frutas secas, e roupas para a mãe e as duas irmãs, Joana e Catarina, gêmeas solteironas que viviam com a mãe.

O taxista voltou com a chave de fenda, um alicate e martelo. Tirou alguns parafusos, enfiou a ponta da chave sob a lâmina de metal, forçando-a para fora. Ouviu-se um estalar de madeira arrebentando-se e com mais um pouco de força, a fechadura saiu do lugar, a lingüeta desalojada do encaixe no portal.

— Vamos empurrar.

Os dois homens fizeram pouca força, pois a porta já estava praticamente aberta.

Sebastião adiantou-se, mas estacou no primeiro passo.

— Nossa Senhora! Que é isto?

O taxista veio atrás e teve de empurrar Sebastião, que permanecia estático diante da cena, que Jorge também viu.

— Cruz credo!

O que ambos viram era estarrecedor. Deitada no chão, uma mulher jazia. Estava de frente para a porta, em uma posição tranqüila; as pernas estendidas para a frente, cobertas até as canelas pelo longo vestido escuro. O braço esquerdo aberto, a mão parecia indicar a porta que dava para um corredor. Na mão direita, estirada ao longo do corpo segurava um revólver que se encontrava no meio das pernas, sobre o vestido. A cabeça estava de lado, escondendo o lado direito da face. Uma mancha escura, como um filete de sangue seco, saia sob a cabeça e dirigia para uma fresta do assoalho.

— Joana! É Joana, seu Jorge. Mas quem fez isso? Como é que...?

Foi ajoelhando-se e pretendia pegar o revólver, no que foi impedido por Jorge.

— Calma, Sebastião! Não mexa em nada!

Sebastião levantou-se e ao parava de lamuriar baixinho.

— Joana... Joana.

— Parece que meteu uma bala na cabeça.— Diagnosticou Jorge. — Vamos Chamar a polícia. Vou pegar meu celular. Enquanto isso, Sebastião, fique aqui e não ponha a mão em nada!

Mas Sebastião não resistiu e entrou para o corredor, passando ao lado do corpo da irmã. Passou pelo corredor, entrando no quarto da mãe.

Então, caiu de joelhos diante da cama onde a mãe jazia imóvel.

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Jorge saiu apressado na direção de sua casa, a fim de pegar o celular. Naquelas poucas passadas ao atravessar a rua, pode rememorar, como se num flash, toda a situação das mulheres daquela casa.

Eufrosina era a idosa mãe de Joana e Catarina, irmãs gêmeas. Deveriam ter mia de cinqüenta anos, enquanto a mãe, viúva, já beirava os noventa. As gêmeas não se casaram e viviam com a mãe. Todas muito esquisitas. Houve um tempo em que a família convivia com os vizinhos, tinham bom relacionamento. Mas, pouco a pouco, as mulheres foram se enclausurando, deixaram de sair de casa, nem mesmo iam á missa da igreja que ficava a dois quarteirões. Catarina saia apenas para ir ao mercadinho fazer as compras da subsistência das três.

A viúva tinha ainda dois filhos, Sebastião e Leopoldo. Sebastião morava no outro lado da cidade, no bairro distante da Nóbrega. Leopoldo vivia na Fazenda Macambé, em Pirapóra, na beira do rio São Francisco, que pertencera ao pai e que ainda era patrimônio comum da mãe, das duas filhas e dos dois filhos.

Pelo que Jorge sabia, Leopoldo era um fazendeiro à moda antiga, talvez tal qual o pai: rude, não gostava de ninguém, sua mania era amansar cavalo brabo. Das conversas que havia tido com Sebastião quando ele visitava a mãe (raramente), soube também que o irmão Leo era de difícil trato. Não prestava contas dos negócios da fazenda, mandava, aleatoriamente, algum dinheiro para a mãe e para as irmãs. O próprio Sebastião só conseguia algum dinheiro quando ia até Pirapora e cobrava do irmão. Mesmo assim, dizia, era quase que brigando com o irmão.

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Enquanto voltava à casa da tragédia, Jorge digitou o numero da policia e relatou o que encontrara. Ao adentrar à sala, não viu. Chamou-o diversas vezes:

— Sebastião! Onde está? SEBASTIÃO!

A contragosto entrou pelo corredor e viu abertas as portas dos quartos. Ao passar pela primeira, viu Sebastião ajoelhado ao lado da cama onde estava deitada dona Eufrosina.

— Sebastião! Que ...?

Então viu o corpo de Dona Eufrosina. Deitada, parecia dormir. Mas da cabeça descia uma mancha escura, que se ampliava no travesseiro.

— Meu Deus do céu!

Saiu dali e voltou ao corredor. Numa premonição terrível, pensou na irmã gêmea de Joana, Catarina. Viu aberta a porta do outro quarto e em duas passadas, entrou.

O que viu confirmou o que há momentos pensara. Mas nem por isso deixou de se assustar.

— Mas... também está morta!!

Aproximou-se da cabeceira, para confirmar. Tal qual Dona Eufrosina, Catarina estava deitada, como se estivesse dormindo por cima da colcha. Da mesma forma que a mãe, de um orifício na testa a mancha escura. Constatou que era sangue seco, que havia escorrido da testa para o travesseiro e até para a colcha.

Paralizado pela surpresa macabra, só voltou a si ao ouvir os guinchos das freadas de carros e o bater de portas, com vozes autoritárias.

— É aqui mesmo, sargento. A porta está aberta, vamos entrar.

Seis agentes da polícia passaram pelo portão de metal da frente e entraram na casa.

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Houve um certo tumulto, os policias adentrando-se atabalhoadamente pela casa, verificando os corpos pra a certeza de que as três estavam mortas e questionando Jorge e Sebastião, que para eles, eram os primeiros suspeitos da chacina. O próprio delegado de plantão, Dr. Ferraz acompanhava o comando policial e foi logo inquirindo profissionalmente os dois homens. Aos poucos, entretanto, as peças do mistério começaram a ser encaixadas pelo delegado e as três mortes foram sendo classificadas como duplo assassinato acompanhado de suicídio.

— Parece que a mulher que estava na sala matou a velha e a outra mulher do quarto e depois meteu um tiro na cabeça. — Foi a explicação mais plausível.

Esta explicação inicial tomou corpo de veracidade, quando o delegado ficou sabendo que as três viviam isoladas.

— Todo indica que as três eram pessoas que sofria de depressão. Vamos esperar os laudos médicos.

Os corpos foram removidos para o IML. Já passava da uma da tarde quando os policiais se retiraram e na casa ficaram Sebastião, o filho chocado com o acontecido e Jorge, surpreso e assustando.

Como é que pode? Pensou. Três senhoras pacíficas, acomodadas, e de repente, estão mortas e vão ser dissecadas no IML prá ver o que causou as mortes.

Sebastião permanecia em estado de choque. Seu Jorge o tomou pelo braço, dizendo:

—Venha, vamos lá em casa comer alguma coisa, depois te levo pra sua casa.

Alguns dias depois, Jorge foi intimado a comparecer à delegacia e prestar novo depoimento. Após os cumprimentos de praxe, o doutor Ferraz disse:

— Seu Jorge, precisamos de mais detalhes sobre a vida daquelas três mulheres. Da a mãe e das filhas gêmeas da família Murdoque. Tudo leva a crer que foi duplo assassinato seguido de suicídio. Mas precisamos confirmação.

O delegado mostrou-se cordial e amigável. Porém Jorge, taxista escolado e que já participara como testemunha de diversos casos de assalto, roubos, e até uma morte de um colega, limitou-se a contar apenas o que vira.

Guardou para si a desconfiança de que ali havia coisa.

Não vou me expor e falar o que penso, a polícia é que trate de resolver o caso. Afinal, não existe perigo de algum inocente ser acusado, portanto...

O inquérito terminou algum tempo depois, com a conclusão de que Joana matara a mãe, a irmã e suicidara-se.

A seguir: 2ª. parte: Conto # 933 - Capataz de Iniciativa -

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 25 de fevereiro de 2016.

Conto # 941 da Série 1.OOO Histórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/12/2016
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