O monstro comedor de facas

Eu tinha acabado de me casar. Encontramos um lindo apartamento. É verdade que era bem pequeno, mas suficiente para nós dois e pouco nos importava algo além do amor. Compramos toda a mobília, conjunto de talheres e louçaria durante o noivado, com muita dificuldade. Com a cerimônia conseguimos ao menos os eletrodomésticos: o lava-louças, a geladeira, o fogão, o microondas e a máquina de lavar-roupas. Todos branquinhos como havíamos pedido na lista de presentes. Ou melhor, quase todos. O microondas era o único que destoava o nosso apartamento. Não descobri quem os havia presenteado com aquela caixa cor-de-merda, nem consegui trocá-lo por um branco lá na loja onde deixei a lista. Eles me disseram que não tinham microondas daquela cor no estoque e por isso não poderiam ter sido eles os vendedores. Depois o atendente me confessou que aquele era um microondas de segunda mão.

Fiquei chocada. É verdade que o não tinha algo escrito na caixa onde ele veio, nem um certificado de garantia ou qualquer coisa do tipo com ele, mas ainda assim, presentear-me com um microondas cor-de-merda usado era muita ousadia!

Infelizmente não tínhamos mais dinheiro para comprar outro e o Marcos (meu marido) logo me repreendeu, dizendo que a minha implicância com o microondas era uma besteira sem tamanho. Decidi esquecê-lo, não valia a pena arranjar uma briga logo no início do casamento por causa de um microondas cor-de-merda.

Passaram-se alguns meses e não consegui manter a organização dos primeiros dias. Chegava em casa sempre exausta do trabalho e não tinha saco para preparar algo saudável para comer, lavar a louça ou mesmo limpar a casa. Jogava minhas coisas em cima do sofá, colocava alguma comida congelada no microondas cor-de-merda e quando já não tinha mais louça ou talheres limpos, jogava todos na máquina. Com as roupas era mais ou menos da mesma forma. Quando muito, lavava as calcinhas no banho, mas geralmente nem isso. O Marcos percebia o que estava acontecendo, mas geralmente assistia a tudo calado. O coitado nunca usava os argumentos certos.

- Comendo na frente da TV dessa maneira você vai acabar que nem a Cláudia Gimenez em um ano.

- Você vai deixar de me amar por causa disso?

As coisas seguiam esse rumo até que o Marcos chegou reclamando:

- Regina, não tem uma faca limpa nessa casa!

- Lave uma e use-a. Você fala como se isso fosse o fim do mundo.

- A única faca suja é essa que você está usando agora.

- Como assim?

- A única faca da casa está na sua mão direita.

- Que absurdo é esse que você está falando, Marcos? E todo aquele conjunto que compramos durante o nosso noivado?

- Só sobraram os garfos e as colheres.

- Entendi. Olha, me desculpa, mas eu não tô com ânimo pra brincadeira agora.

- Não é brincadeira, porra! Eu tô falando sério!

- Falando sério? Então me diga, quando foi que as nossas facas aprenderam a andar?

Pobre Marcos, ele nunca gostou de discutir. Acho que foi por isso que resolvi me casar com ele, minhas opiniões sempre prevaleciam. Desistiu de tentar me convencer, voltou para a cozinha e pegou a pexeira.

- Tá maluco, Marcos? Guarda logo essa pexeira!

- Jajá. Espera que eu já termino de cortar o meu jantar.

O que ele cortou foi o meu coração. Deixei meu prato de lado e fui até a cozinha para abraçá-lo.

- Me desculpa por não ter acreditado em você, amor. Amanhã eu arranjo um tempo e compro facas novas para nós, que tal?

Ele parecia uma criança feliz.

- Que bom que acreditou em mim.

Na verdade eu ainda não tinha acreditado, mas pensei que não faria mal agradá-lo dessa vez. No dia seguinte cheguei em casa com facas novas e tive uma noite maravilhosa como recompensa. Às vezes me sinto o homem da relação.

No mês seguinte as facas voltaram a desaparecer.

- Você tem que fazer alguma coisa, Regina.

- Por que eu, Marcos? Faça você, eu nem ao menos faço idéia do que está acontecendo.

Mais uma vez ele fez o que eu mandei. Nas semanas seguintes esteve mais estranho que nunca, começou a estudar as facas, observando-as como se esperasse que começassem a se mover. Comecei a ficar preocupada, achei que teria de interná-lo. Um dia ele chegou até mim e disse:

- Acho que descobri.

- Descobriu?

- O microondas.

- Mas e as facas?

- As lâminas sumiram.

- As lâminas?

- Os cabos voltaram.

- Os cabos?

- Da cor do microondas.

- Mas não compramos facas com o cabo cor-de-merda.

- Exatamente.

- Marcos, você está me assustando.

- Relaxa, minha linda. Olha, vem cá comigo. - ele segurou a minha mão e me puxou até a pia da cozinha. Lá estava cheio de cabos de faca cor-de-merda.

- Mas que merda é essa?

- Os cabos das facas. Pode ver que os modelos são os mesmos.

- Você está querendo me dizer que o microondas comeu as lâminas das nossas facas e ainda pintou seus cabos de cor-de-merda?

Ele não me respondeu, apenas fitava com um olhar alucinado os cabos cor-de-merda.

- Marcos, o que nós vamos fazer? - foi aí que entrei no jogo dele.

- Merda!

- O que foi?

- Vamos pintar tudo da cor de merda!

- Tá maluco? Não é mais fácil jogar essa porcaria fora?

- NÃO! Ele pode se irar!

- Marcos, ele é apenas um microondas cor-de-merda.

- ... comedor de facas.

No dia seguinte pintamos tudo na cor-de-merda. O apartamento, os móveis, os eletrodomésticos, até as nossas roupas; viramos o casal cor-de-merda.

Repensando tudo isso, começo a desconfiar do remetente desse presente de merda...

Thais Gualberto
Enviado por Thais Gualberto em 09/07/2009
Reeditado em 12/07/2009
Código do texto: T1691485
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