DIA DO ESCRITOR

A intenção era se vestir de preto, mas a camisa já desbotava para um cinza escurecido, e a jaqueta de couro bastante surrada - ligeiramente opaca - destoava ainda mais. As botas já tinham pisado muito por aí, e esqueceram o dia em que tinham sido pretas e engraxadas de verdade.

O escritor sempre sonhou em sentar-se confortavelmente numa cafeteria para escrever os capítulos do seu futuro sucesso literário no seu laptop de última geração.

Ledo engano. Essa coisa de escrever numa cafeteria era clichê importado de filme americano. Bonito de se imaginar, mas na prática não funcionava. E a balconista mal-humorada do lugar também não ajudava muito: ela descontava sua raiva mascando exageradamente um chiclete. Um touro enfurecido, bufando os valores nos rostos dos clientes quando se dirigiam à ela.

Ele colocou os fones no ouvido, aumentou o volume ao máximo e tentou se concentrar. Nada vinha à mente. Apagou quilômetros de linhas ruins que digitou e tentou transformar em algo. Perdeu várias dezenas de minutos e também a paciência nisso. Se pegou mordiscando um dos fios do fone. A música agora atrapalhava, então desistiu dela.

Fechou mais de uma vez o laptop, disposto à ir embora, mas algo o segurava ali. Não queria desistir. Esfregou uma mão suada e ansiosa na outra, pensando que milagrosamente as idéias se alinhariam em sua mente.

Pensou em apagar tudo que escrevera até a palavra "mente", pois estava chato e sem sentido. Foi nesse momento que Ela sentou-se na mesa ao lado, trazendo uma pilha de livros consigo, numa quantidade um pouco acima do razoável. Se Ela não usasse de tanta graça ao manuseá-los, seria esquisito.

-Preferia quando eram pergaminhos. - Ela lhe disse, simpática, e ajeitou-se na cadeira como se fosse passar o resto do dia ali.

Se aquilo foi alguma piada nerd, ele não entendeu. Respondeu com um risinho cortês, mas no fundo estranhou uma coisa: achava que a conhecia. Como uma pessoa da infância que você lembra claramente, por exemplo.

-Eu não te conheço de algum lugar? - ele não perguntou de imediato, não. Só o fez 10 minutos depois.

-Talvez.

Ela poderia cortar o papo simplesmente dizendo "não". Mas não o fez.

-Por que acha que me conhece?

-Me parece familiar, não sei. - nem tentou explicar à Ela. Não conseguiria mesmo.

-E eu deveria te conhecer?

-Que tipo de pergunta é essa?

-O que faz nesse laptop afinal? - Ela mudou de assunto.

-Eu escrevo. Sou escritor. E não teria como você me conhecer. Ainda não fui publicado. Quer dizer... não de verdade, sabe?

-Sei. Mas isso é questão de tempo. Você é talentoso. Não vou dizer que você tem "o dom da escrita" pois isso é vulgar. Todos tem o dom da escrita. Mas poucos sabem de fato escrever.

-Espere, não lhe disse que sou talentoso...

-Então por que perde seu tempo escrevendo? Não tem nada melhor para fazer com seu tempo? - nesse instante Ela lhe pareceu novamente familiar demais. Alguma antiga professora? Não, não aparentava tanta idade assim.

-Não confia em seu talento? - Ela interrompeu os pensamentos dele.

-Confio. É que estranhei como falou. Como se conhecesse o que escrevo.

-Talvez eu conheça. Não era essa a pergunta? E sim, você é talentoso.

-Não sei não. Meu conteúdo não parece estar pronto para o mercado. Não devo ser "vendável" o suficiente para que uma editora aposte em mim.

-Você não deve escrever para ser igual à todos, e sim para se tornar diferente.

Ele mirou o chão, pesando aquelas palavras. Depois levantou a cabeça, decidido:

-Ok, quem é você?

-Achei que nunca perguntaria assim, diretamente. Me chamo Kira, prazer. - estendeu a mão para o escritor.

-Não conheço nenhuma Ki...

-Clio na verdade, mas o tempo passa, sabe como é, né? - a mão permanecia estendida, firme e decidida, quase uma armadilha. Quando ele a apertou, um turbilhão de idéias abstratas demais para serem captadas atravessaram seu cérebro. Sensações, cheiros, lugares, momentos e outras coisas que nunca vivenciara agora estavam ali, mas escapando rapidamente de sua cabeça, antes que a linguagem comum pudesse ordenar e descrever.

-Você é uma...

-Inspiração. Sim. Feita carne às vezes, como a Beatriz de Dante, e por aí vai. Bom, você sentiu, não tem necessidade de ser dito.

-Sinceramente? Você está um pouco diferente da minha imagem de musa, de mulher.

-Estou? Será? E como explica a tal familiaridade quando me viu? Mas, de qualquer maneira, não é desse tipo de inspiração que me refiro, não ter a ver com beleza.

-Eu já entendi. Olha, você tem a péssima mania de vir à mim no banheiro. No banho, ou quando estou, enfim... E se não anoto na hora acabo esquecendo. Isso não se faz!

-Onde mais você se desliga e deixa de ser bombardeado pela mídia, por problemas, distrações? É a única hora que consigo me aproximar. Antes você preparava um ambiente, colocava música na madrugada, ficava em silêncio. Eu gostava de seus rituais, mas...

-Mas justo no banheiro, porra? Sacanagem.

-O fato é que você perdeu o foco. Estou aqui apenas como uma lembrança, para que volte aos trilhos.

-E como eu deveria começar?

-Os antigos começavam seus poemas com "Oh musa, blablabla...", e por aí seguiam.

-Não vou fazer isso. - ele sorriu entre os dentes, cínico.

-Claro que não. Nem seria original, apesar de ser um belo começo. Bons tempos, aqueles. Escreviam inspirados. Gostava dos poetas épicos: Homero, Virgílio, Dante, Camões...

-Seu inspirado Dante Alighieri, gênio da "Divina comédia" foi exilado e morreu longe de sua terra natal, que condenou até seus filhos. John Milton levou 10 anos escrevendo seu épico "Paraíso perdido", e pagaram apenas 5 libras por ele. Morreu cego, a verdadeira "agonia de Sansão".

-É nisso que se apega? Que alguns gênios literários foram incompreendidos? Então vou te dar um exemplo mais recente, sua inspiração direta - você escreve sobre vampiros, não é? - Bram Stoker: morreu quase na pobreza, sem conhecer o sucesso de seu livro e a fama de seu principal personagem: Dracula.

-Não que eu me apegue à isso; na verdade tenho medo de minha obra ser conhecida só depois de morto. Como esses caras.

-As letras podem te transformar num imortal. Vampiros não. Pense nisso. Agora, volte a escrever.

O escritor percebeu de repente o absurdo da situação. Daquela conversa, e com quem conversava. Reparou que a balconista não mascava mais, e olhava para ele com uma interrogação no rosto.

-Oh não, não me diga que isso não está acontecendo de verdade, e que estou falando sozinho aqui nesse lugar?

-Não sei. Isso fica à seu critério. Vou me levantar, e sair por aquela porta. Só estive aqui para te inspirar. É o que eu faço, lembra?

-Não me ajudou muito dessa vez, Clio. Ainda não sei o que escrever.

Ela voltou-se, sorridente: "Escreva sobre esse nosso encontro." Depois saiu da cafeteria, com sua graciosa pilha de livros.

Desviou o olhar para a cadeira onde ela estivera sentada. Parecia estar na mesma posição de quando ele chegou, mas nunca teria certeza. Perguntar à balconista mal-humorada se ela tinha visto Clio também não era uma opção. E não provaria nada, afinal. Relaxou, abriu um novo documento no laptop e começou a digitar...

Fim?