MORTE E RECONCILIAÇÃO

 

Ele no quarto, deitado na cama de bruços, semi-nu, onde estava quase totalmente escuro. De claridade só uma tênue luz que vinha da cozinha. André estava semi-acordado. Estava cansado, primeiro a faculdade, a performance do intervado, a tarde e parte da noite no grupo de teatro StJaAr, de onde veio vestido com o seu personagem, a Olga de As três Irmãs de Tchekov. Então ficou totalmente acordado, agora sentia-se obrigado a levantar: tinha que dar consecução àquilo que devia fazer, pois tudo aquilo lhe assomava insuportável. Para ser mais exato, isso não era tarefa dele, e sim dela............... Principalmente porque no dia seguinte, sábado era obrigado a ir até São Luís de Montes Belos, para assistir ao casamento de seu irmão mais velho. Segundo ela um "puxa-saco" do pai. Lá de novo teria que confontrar seu pai e sua mãe. Então levantou-se... e olhou para a cama... olhou o corpo de André que ainda dormia. Então os olhos de Andressa despediu-se do corpo daquele parceiro que sempre lhe pareceu estranho. Tão masculino e magro, não exatamente feio. Ainda marcado pela sua juventude de 23 anos. Era um apartamento antigo do Centro de Goiânia, aparentemente da década de 70. Morava no quarto andar, sozinha. O lugar era bastante degradado. Paredes trincadas, piso de tacos roídos por cupins, que esfarelavam, água marron saindo pelos canos de metal. A fuligem estava grudada nas vidraças e nas esquadrias. O que era mais estranho era aquela pintura cinza em todos os cômodos, exceto na cozinha, toda azulejada de branco, e no papel de parede de seu quarto, cheio de borboletas e flores multicoloridas. Ela tentava adivinhar o espiríto dessa opção de pintura. Mas não conseguia. Foi para a cozinha, fez um café sem açucar, comeu 2 ou 3 cream-crakers, depois olhou sobre a mesa os apetrechos que tinha preparado na noite anterior. Olhou no relógio da cozinha, daqueles que em lugar de números tinha imagens de frutas: 10: 45. Alugou  o apartamento e veio junto com ele a mobília e decoração com aquela cara de gente antiga, grande parte já falecida. O conjunto exalava putrefação. Mas nunca se importou muito com isso. Mesmo porque foi sua mãe quem escolheu aquele lugar, aquilo ali não existia para atender seu gosto. Levantou-se, deu uma olhada nos apetrechos, e seguiu até o quarto onde dormia, seguindo pelo sombrio corredor. Entrou no quarto, acendeu a luz, e viu o corpo de André, parecia morto, num total abandono, como se não tivesse alma. Estava só... e de calcinha, tinha que se vestir. Tirou a calcinha, sem olhar no espelho, vestiu uma outra da mesma cor, totalmente vermelha, que entendeu ser apropriada para que o que pretendia fazer. Por cima colocou uma meia arrastão com a qual fazia suas performances, e que por estranho que pareça era figurino de seu personagem em As três irmãs. Uma versão patafísico-jarryniana da soturna Rússia do século XIX. O incrível era fazer Olga sobreviver dentro daquelas roupas. Mas Stanislavski nisso o permitiu ingressar, poderia até ficar nua, aparentemente Olga nunca ficava nua, que Olga estaria ali. Sua mãe disso nada sabia, nem sabia de seus dotes em costura. Ela mesma fazia suas roupas. Sobre a meia vestiu um estranho short preto de silicone. Sobre o soutiã carne uma blusa vermelha de seda, bastante transparente. Depois foi só se maquiar tipo Liza Minelli em Cabaret e colocar um chapéu retirado do figurino do mesmo filme. Nos olhos destoou da fonte de inspiração da maquiagem, maquiou-os no estilo Laranja Mecânica. Nos pés calçou um sapato plataforma que ganhou de presente do André, o pai daqueles exageros. Pegou uma bolsa de couro preta pequena e bastante gasta pelo tempo e pelo uso, então calçou luvas brancas. Deu uma olhada no espelho, então forçou um leve sorriso no canto da boca, parecendo indicar aprovação. Deu uma piscadela com o olho esquerdo, daquelas pesadas e demoradas. Então abaixou-se para se despedir de André, levou a mão querendo tocá-lo suavemente... mas desistiu da ideia, pois isso de agora em diante não seria mais possível. Assim como isso nunca foi comum entre ele e ela. Talvez nem fosse permitido. Reteve a mão e empertigou o corpo. Esperava que ele compreendesse o que iria fazer. Era para o bem dos dois. Mas ele sabia, mas não disse nada. Beijou sua própria mão e jogou um beijo para o homem que dormia. Calçou seu sapato plataforma vintage. Desligou a lâmpada e foi até a cozinha pegar as coisas que tinha preparado. Colocou tudo numa sacola de plástico colorida, daquelas de feira. Apagou as lâmpadas, passou a mão sobre o aparador que ficava próximo à porta de saída do apartamento, pegou os óculos e  os colocou no rosto. Deixou as chaves sobre o aparador e saiu deixando a porta completamente aberta. Faltavam 15 minutos para meia noite. Seguiu pelo corredor escuro, passou pelo elevador que estava estragado havia uma semana, e foi pelo acesso da escada. Olhou os degraus abaixo, então virou-se e subiu. Tinha que subir 14 andares, apoiando-se num parapeito metálico frio, áspero e enferrujado. O que ia fazer já cobrava seu preço em sacrifícios. Então ela disse:
_ Que merda!
Então tirou os sapatos plataforma. Deu uma gargalhada de ópera, curvando-se para trás. Então subiu. Parou três ou quatro vezes, pois a sacola estava muito pesada em função dos seus apetrechos. A porta de acesso ao teto do edifício estava só encostada, pois isso já estava combinado. O porteiro sabia até certo ponto o evento que ia fazer. Foi até o teto. Estava tudo bastante escuro.
_ Ótimo, do jeito que todos queríamos.
Depositou a sacola perto da saída do elevador e deu uma volta sobre o teto. Era noite sem lua de junho, e estava bastante frio. Grande parte da cidade que jazia lá embaixo, já adormecida. Do prédio do outro lado da Avenida Goiás, viu um cara alto e careca, aparentemente fumando maconha. Acenou-lhe, ele pareceu não ter percebido seu gesto. Então começou a organizar os apetrechos. Estendeu no chão uma toalha, ou quase isso, de batique toda colorida que o Celso (melhor não falar do Celso) tinha lhe dado. Pegou os castiçais e neles colocou quatro grandes velas amarelas, daquelas de 7 dias. Dispôs 3 incensórios, neles colocou incensos de canela, sândalo e lavanda. Sobre a toalha abriu uma edição antiga, de 1958, de A divina comédia, traduzida por José Pedro Xavier Pinheiro. Ela sabia italiano, que aprendeu quando resolveu adaptar Pirandello para o seu estilo Artaud-Jarry-Stanislavsi. Mas sua edição era de bolso. Imprópria para a ocasião. Leu a primeira estrofe do canto VIII do Inferno, que diz

"Acrescentar eu devo, prosseguindo
Que da torre ainda estávamos distantes,
Quando os olhos ao cimo dirigindo
".


Então disse em quase silêncio, a tal ponto que só ela ouviu:
_ Já estou aqui, não tenho medo, sei o que se segue,  meu caro Virgílio!
Então continuou na organização dos apetrechos. Colocou alguns pratos de comida que ali à meia luz eram indecifráveis. Podia ser qualquer coisa. Havia também, eu acho, um prato de pétalas de rosas. Bem como colocou ali uma garrafa de conhaque barato. Tirou um aparelho de som K-7 a pilhas, para nele tocar uma fita que tinha prepardo especialmente para aquele momento. Deu com ela uma batidinha na mão e a enfiou no aparelho. E o fez tocar. Tirou uma longa echarpe de seda roxa e a enrolou na cabeça. Comeu um pouco das pétalas. Bebeu o conhaque pelo gargalo. Enfiou a mão na bolsa e tirou um back de maconha. Sentada no chão com as pernas cruzadas fumou a maconha. O aparelho tocava Strange Love do Depeche Mode. Ela levantou-se e começou a dançar. Olhou para os lados... todos estavam ali. Naquele dia eles pareciam mortos, ou pelo menos desanimados de viver. Veio até a Greta, a mais esquiva e adorada deles todos. Chamou-os para dançar, mas eles não entendiam aquela música. Mudou para Regret do New Order e nada. Ela tinha fascínio por Glenn Miller, tocou Moonlight Serenade, aí sim tudo se transfigurou. Todos dançavam e rodeavam em torno de seu oratório. Durou pouco a epifania, aos poucos todos foram desaparecendo, e ao final Greta lhe deu um beijo longo na boca, e ela continuava dançando. Greta sumiu. Então lentamente se dirigiu ao aparelho, adiantou a fita até começar a ouvir Strange Fruit de Billie Holiday, gravada repetidas vezes em sequência, e então começou aquela música que muito tocava sua pele negra estragada pela cidade da qual nunca gostou. Era como se o sangue jorrasse de sua pele. Parou de cantar no começo da última estrofe quando praticamente gritou 
Here is fruit for the crows to pluck. Como na música sua pele queimava. Billie Holiday tocava, ela não cantava. Fez um pequeno corte no indicador esquerdo com os próprios dentes. Lágrimas brotaram de seus olhos. O sangue brotou e jorrou, seu sangue contaminado desse monstro que não suportava, monstro que o tornou um ser perigoso e quase intocável. Passou o sangue nos dois pulsos, como alguém que testa uma fragrância de colônia. Levantou-se, antes pegou papel dobrado de sua bolsa, que leu pela última vez. Deu uma olhada em Dante, odiava aquele livro de capa dura, que nunca conseguiu entender. Ela não entendia as coisas muito organizadas. Mas achava que ali havia um enigma que demandava decifração. Tipo um ícone ortodoxo. Dançava e andava com olhos fechados de um jeito que destoava da música. Seus ouvidos aos poucos se esqueciam de Strange Fruit. Olhou o relógio, 1:55 da manhã. A essa hora poucos estariam na rua. Foi deveaar até a mureta que separava o teto onde estava do imenso vazio cheio de ar que a rodeava. Olhou, o careca maconheiro não estava mais na janela. Fechou os olhos, ajeitou os óculos e a echarpe. Subiu na mureta e
p
u
l
o

..............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................No quarto, André acordou assustado de um sonho. Ou quase disso. Levantou de um súbito. Olhou ao seu redor. Não havia ninguém. Mas ele sabia disso. Olhou para o relógio: 1: 55. Pressentia que algo tinha acontecido. Aliás tudo o que aconteceu com Andressa aparecia com uma clareza meridiana, como se tivesse acontecido com ele. Saiu do quarto em direção à porta da sala que estava aberta, do que ele também sabia. Estava atrasado. Desceu afoito os quatro andares de escadas que o separavam do solo. Atravessou rápido um hall insípido e ultrapassado, abriu a porta de vidro que o separava da portaria:
_ Seu Dinamar, abra rápido, é urgente.
Seu Dinamar dormia pesado, recostado numa confortável poltrona forrada de tapetes de retalhos. Acordou assustado, bastante irritado com aquele grito desesperado.
_ O que o senhor quer, Seu André?
_ Preciso sair, é urgente!
Ele olhou André de cima abaixo... fez uma cara de desaprovação.
_ Desse jeito?
André olhou-se rapidamente no espelho que estava a sua frente. Estava semi-nu, unicamente vestido com uma calcinha, a calcinha vermelha da Olga.
_ Aaaabre!
Dinamar abriu a porta por ato mecânimo, indiferente ao código de posturas do município.
......................................................................................... André saiu para a rua, andou um pouco pela calçada, e viu Andressa caindo em sua direção. Enquanto caia, o que levou mais tempo que o bordar de uma meia, Andressa perdeu os óculos e a echarpe, desembaraçada da cabeça descoberta, esvoaçava. Andressa estava apreensiva: será que ele a esperava? Abriu os olhos, e viu que lá estava André também apreensivo. Então foi o baque de sua queda no chão, que foi seguido de um longo silêncio. Lá em cima Billie Holiday ainda cantava. As velas ainda queimavam, os incensos já estavam extintos. Pombos beliscavam a comida não identificada, que Andressa nem provou. Andressa caiu esmagada bem aos pés de nus de André. Que a olhava.
_ Levante Andressa? Vamos!
Andressa levantou-se. Ficou em pé diante daquele parceiro difícil, que nunca quis, mas que nunca a abandonava, estavam juntos, mas nunca se abraçavam, nem se tocavam. Entaõ aqueles dois corpos negros se abraçaram, numa placidez inefável... Durante o abraço profundo, sentiam que desapareciam um no outro. Um olhou pro outro.
_ Vamos!
Disseram simultaneamente. Como se fossem um só.Eles sairam felizes pela rua, saltitanto e dando cavalgadinhas feito crianças. E foram sumindo aos poucos no horizonte nebuloso da avenida. Até que sumiram por completo, escapando por definitivamente do alcance dos olhos, em meio a uma estranha revoada de borboletas que do nada apareceu.
...................................................................................................................................................................................................................... Dinamar viu tudo, ou o que ele achava que era tudo. Gritou um Não! Não se sabe para quem ouvir. Ligou um número:
_ Venham rápido! Um rapaz pulou do prédio. Acho que do quarto andar.
_ ...
_ Não sei. Mas parece que está vivo, são poucos andares. O nome dele é André e faz faculdade. Ele é meio esquisito, se veste de mulher. Ele é gay.
_...
_ Sim, foi no mesmo apartamenteo do outro suicídio. Na Avenida Goiás, no Edifício Crisálida... apartamento 402.
Desligou o telefone. Correu até a rua, onde já tinham se juntado duas outras pessoas. Dinamar olhou o corpo todo esmagado de Andressa, que jorrava sangue por todos os lados. Estava de bruços, com a cabeça esmagada.
_ Viu a roupa dele? Parece que era um rapaz inteligente, e faz uma besteira dessas! Nem sei o que Deus vai pensar.
Disse para os curiosos que assistiam aquilo. Dinamar notou que havia algo na mão direita de Andressa. Abaixou-se, abriu a mão dela, de onde retirou um bilhete dobrado. Era 1992, numa época em que procedimentos próprios nesses casos não eram exatamente observados. Ele desdobrou o papel e o leu em voz alta em atenção aos 4 curiosos, eles tinham aumentado:
_"O Pai deve compreender os filhos!". Cada coisa!
Jogou o papel no chão. Rapidamente chegaram a polícia e o corpo de bombeiros e... o carro do IML. Nâo acreditaram muito no porteiro.

Eram aproximadamente 5 horas da manhã em São Luís de Montes Belos. Luís Carlos ainda dormia, mas tinha que acordar por causa dos arranjos do casamento do Júnior. Então o telefone tocou. Atendeu e recebeu a notícia do que tinha acontecido com Andressa. Ouviu e ficou catatônico... 
_ Eu nunca entendi o André!
Era sua filha preferida, mas não a entendia. Talvez por isso mesmo a amasse tanto. Mas Andressa nunca soube disso. Então acordou Teresa, sua esposa.
_ Teresa... o André se matou.
Andressa não compareceu ao casamento de seu irmão mais velho. Porque o casamento foi suspenso por tempo indeterminado. Júnior sentiu um pouco de raiva do irmão, de quem nunca gostou muito. Mas de repente teve a desagradável descoberta de que o amava. O que o fez consumir-se de remorso.

 
Esse foi o texto mais chato de escrever que já fiz. Só o publico por causa do esforço. Os paradoxos, contradições e aparentes erros são intencionais