Verdades e mentiras

Numa noite de luar,
Lá pras bandas da fronteira,
Entre o Pará e o Amazonas,
Terra boa e prazenteira,
Que se deu todo este caso,
Sob o olhar da lua arteira.

Tava dormindo com Zé,
Lá na casa de farinha,
E de repente ouvi um grito,
Que me arrepiou todinha.
Mas, assim como acordei,
Fiquei assuntando quietinha.

É que o medo não deixava,
Nem se quer eu me mexer.
Nesta hora Zé roncava,
E desfaleci a tremer.
Pois, ao longe divisava,
Uma sombra se mover.

Entendi que aquele grito,
Que foi dado sobre a palha,
Tão horrendo, agudo, aflito,
Era da rasga mortalha,
Num presságio maledito,
Como golpe de navalha.

Minha rede tava atada,
Bem do lado da do Zé.
Quando ouvi batuque ao longe,
Cutuquei-lhe com meu pé.
Mas o Zé apenas disse:
__ Não me chute assim mulher!

A verdade minha gente,
É que o Zé tava fingindo.
Ele bem tava ciente,
Do perigo ali surgindo.
Pois, até batia os dentes,
Parecendo estar sorrindo.

O seu medo era tanto,
Que na rede se enroscou.
Fez até rolar o pranto,
Num menino se tornou.
Que vergonha e desencanto,
Pra quem tanto se amou.

Neste ponto vislumbrei,
Pelas frestas do luar.
Que a tal sombra movediça,
Era um índio a espreitar.
Arco e flecha numa mão,
E na outra, um maracá.

Estava em pé ali parado,
Como águia vigilante.
Corpo nu todo pintado,
Reluzindo o peito arfante.
Olhar duro, esbugalhado,
Contornava seu semblante.

Como adorno da cabeça,
Um penacho colorido.
Da cintura lhe pendia,
Um coddobie dividido,
Num trançado cuidadoso,
De embira era tecido.

Levantei-me de um só salto.
Gritei: Zé levante agora!
Índio está nos vigiando,
Seja homem, vá lá fora!
Pois, se vais ficar chorando,
Serás morto sem demora!

Zé gemendo disse a mim:
__ Eu não sou este homem forte,
Que me fiz acreditar.
Entrego a Deus minha sorte,
E a vergonha de viver,
Se escapar da triste morte.

Nisto ouvi grande rugido!
Disse: Zé fomos cercados!
Reze ao santo mais querido.
Peça já por teus pecados,
Pois, agora teus gemidos,
Não te valem teus brocados.

Pulou índio das touceiras,
Num estrondoso alarido.
Arrancaram Zé da rede,
Que tremia estarrecido.
Depois disto lhe amararam,
Foi levado ao rei da tribo.

O guerreiro então falou:
__Triste o homem que é covarde!
Não merece nem viver.
Seu caminho em fogo arde,
E sua língua é padecer,
Pois, em si nada é verdade.

Foram vós os homens brancos,
Com sua pérfida ganância,
Sua conduta deplorável,
Sem sossego e sem constância,
De poder incontrolável,
Revestido de arrogância.

Quando aportou a caravana,
Dos antigos ancestrais.
Nestas terras luzidias,
Nos aqui demos os ais.
Nos tomaram a inocência,
E beberam nossa paz.

Desonraram a beleza,
Desta mãe que tudo dá,
E se esquecem que são dela,
Hospedeiros a vagar.
Nem se quer no pensamento,
Pensam nela como lar.

Meus irmãos hoje vagidos,
Desta terra, dizimados.
Usurpados em sua essência.
Seus costumes transmutados,
Sem raiz, sem terra e nome,
São mestiços sem legados.

Inda achando que era pouco,
Atacaram a mãe África!
Pela cor do filho amado,
Subjugado sem ter súplica.
Derramaram vosso sangue,
Pelo bem da vossa estética.

E tendo ele terminado,
De cantar seu cancioneiro.
Bradou forte a todo eirado.
Disse a cada irmão guerreiro:
__Desamarrai-o da embira,
E libertai o prisioneiro!

Depois disto tudo feito,
Olhou Zé como Caim.
Posto inerte no terreiro.
Branco estava igual marfim.
Sentiu nojo, asco e pejo,
E num repente disse assim:

__Parti agora forasteiro!
Segue teu caminho errante,
Na tua falsa sapiência,
De crença pobre, inconstante!
Vais morrer é bem verdade,
Na imprudência, doravante!

Zé saiu cambaleante,
Sem se quer olhar pra trás.
Perdeu todo aquele orgulho.
As lembranças, tristes ais!
Embrenhou-se pelo mundo,
Não se sabe se tem paz.